Juízes para a democracia

25 de agosto de 2017

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Uma nova classe de juízes está surgindo e ao menos 400 desses novos profissionais integram a Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não corporativa criada em 13 de maio de 1991. Recentemente eleita para o cargo de presidente do Conselho Executivo, a juíza do Trabalho Laura Benda explica que a escolha da data, que marca a abolição da escravatura no Brasil, não foi por acaso. A ideia é mesmo remeter ao caráter de resistência que permeia a AJD. “É uma associação formada por juízes e juízas com matizes ideológicas variadas, mas sempre posicionada no campo do progressismo, na defesa dos direitos humanos”, afirma a magistrada.

Criada no ambiente de renovação e esperança que reinava no País no período da redemocratização, logo após o regime militar, a Associação atua na promoção dos valores democráticos em sentido amplo, mas, em particular, na defesa dos direitos sociais. Integrada inicialmente por juízes e juízas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), e agora abrangendo associados de todo o Brasil, a entidade tem um número de membros flutuante – alguns se aposentam, outros se descredenciam, mas, nos últimos dois anos, o ritmo das novas adesões se a

celerou. “Temos percebido um crescimento muito significativo de integrantes, com pessoas oriundas de diversas localidades do País e, também, de outras especialidades, como a Justiça Federal e a do Trabalho, como é o meu caso”.

Os membros da AJD divergem do perfil clássico dos juízes, que faz parte do imaginário popular: aquele que fica encastelado na “torre” de sua atuação profissional, sem se pronunciar sobre o que não está nos autos do processo. A Associação é justamente integrada pelo tipo oposto: pessoas com opiniões muito bem fundamentadas e pensamento crítico estruturado, que se manifestam sobre os diferentes pontos que defendem. E juiz pode ter opinião? Pode, sim. Se não está fazendo isso em uma audiência, não há problema algum. Mesmo assim, os membros da AJD não escapam de sofrer alguma rejeição de colegas magistrados. O bom é que não é a maioria. “A maior parte da magistratura, ainda que eventualmente não tenha uma identificação ideológica total com os nossos ideais, acha interessante que a Associação exista”, diz Laura Benda. O ruim é que a minoria que rejeita aberta e expressamente a AJD é bem ruidosa. “Até porque rejeitam tudo que é diferente deles”, emenda a magistrada.

Engana-se quem pensa que esse grupo é formado por pessoas de uma geração mais velha, de um tempo em que fugir dos padrões era inadmissível. “O grupo inclui pessoas que estão entrando agora no Judiciário, que têm um perfil mais reacionário. Talvez seja até um reflexo desse clima político do País que tem adquirido um caráter muito sectário”, avalia. Esse sectarismo também pode ajudar a explicar o recente impulso na adesão à Associação. “Na medida em que o País ficou muito dividido e que o radicalismo de direita ficou muito crescente no Judiciário, acredito que quiseram buscar um espaço mais democrático, plural, aberto e progressista”.

Em rápida observação no site da entidade na internet é possível ver a ampla gama de tópicos defendidos pela AJD. “Algumas pautas são históricas para nós e outras têm a ver com as demandas do momento”. De acordo com a presidente, a questão da democratização do Judiciário é um dos assuntos para o qual sempre será dado foco. “Seja no sentido da ampliação da participação social, seja no acesso por concurso ou na escolha dos membros dos Tribunais Superiores, seja, também, no sentido do controle externo da sociedade em relação ao Judiciário.”

Outra pauta frequente e pulsante é a questão da perseguição aos juízes. “Estive agora, ao lado de outras entidades parceiras, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos para fazer uma denúncia do Estado brasileiro por perseguir juízes e juízas, não apenas no exercício jurisdicional, mas também em sua liberdade de expressão fora dos autos”, afirma Laura Benda. Questionada sobre o motivo mais frequente desse tipo de ocorrência, a presidente da AJD afirma que isso, em geral, ocorre em casos vinculados à atuação específica de juízes garantistas na área criminal, por exemplo, quando um juiz progressista demonstra mais preocupação com a questão dos direitos humanos. “Suas decisões costumam ser objeto de representação”, diz ela.

Uma das pautas do momento está relacionada aos direitos trabalhistas. Um dos recentes manifestos públicos da entidade é sobre este tema, com objetivo de mostrar que existe uma parte da magistratura que se mostra resistente às mudanças na CLT trazida pela reforma. “É uma pauta com a qual a gente tem trabalhado neste ano e faremos uma série de atividades e publicações a esse respeito”.

Riscos à democracia
E quais são as ameaças à democracia no Brasil de hoje? Ainda que a pergunta seja complexa, e que sua resposta renda uma tese, a juíza Laura Benda tenta fazer uma síntese. “Eu diria que é o desrespeito à Constituição, pois a isto estão relacionadas muitas outras ameaças. A nossa democracia é fundada no estado democrático de Direito Constitucional e uma série de desrespeitos vêm sendo praticados. O governo desrespeita garantias de direitos humanos. O Judiciário desrespeita garantias ao julgado. O Poder Legislativo desrespeita garantias ao legislar. O Estado brasileiro como um todo está seguindo nesse sentido de relativizar, e isso tudo está ameaçando o nosso processo democrático. Não é só o retrocesso de direitos, mas uma desestabilização do sistema”, declara.

A presidente da AJD também se posicionou sobre o tema da crise de representação democrática, que afeta o mundo de diferentes maneiras. “A questão é que a democracia representativa já nasce com um déficit, que é a distância entre o representado e o representante. Na medida em que as sociedades são compostas por muitas pessoas e por demandas múltiplas, que surgiram principalmente do século 20 para cá, é evidente que essa distância aumenta. Isso é constatável empiricamente, por exemplo, no nosso caso. Qualquer pessoa pode ver que as demandas do Congresso Nacional pouco têm a ver com a realidade concreta da vida do brasileiro”. Segundo a magistrada, o problema pode começar a ser resolvido com o fortalecimento das instituições, e que estas respeitem a Constituição. “Em um sentido mais profundo, existem diferentes instrumentos, a exemplo da democracia participativa, que poderiam ajudar a diminuir esta distância e deveriam ser pensados para serem aplicados a qualquer país, para qualquer realidade. Infelizmente, me parece que seguimos em sentido oposto. Práticas de promoção da participação social, como os conselhos populares, estão morrendo.”

A presidente da AJD também falou sobre outra tendência marcante nos governos de diferentes países: o fenômeno do populismo, seja ele de direita ou de esquerda. “O populismo marcou, em maior ou menor grau, todos os governos que tivemos desde sempre, por uma série de razões históricas. O que ocorre é que muitos governos preferem dar benesses, sem necessariamente fazer transformações sociais. E esta é uma característica dos nossos governos, mas, na medida em que estes são mais de direita ou de esquerda, esse perfil é mais ou menos profundo, se dá de formas diferentes.”

Outro aspecto apontado pela magistrada é a questão do personalismo. “As pessoas tendem a procurar heróis e achar que resolveremos o problema substituindo um indivíduo ou um grupo de indivíduos por outro, como se essa fosse a questão. Não se escolhe ninguém em uma eleição com base em plataforma partidária. Além disso, na prática, os governos acabam sendo muito parecidos entre si, pois são movidos por grandes acordos, grandes alianças”, declara.

Defender estes e outros pontos de vista poderia parecer estranho para um juiz? Para algumas pessoas até pode ser incomum, mas a verdade é que a opinião, o pensamento crítico e todas as manifestações são expostas em nome da Associação e não de um único magistrado. Trata-se de um conjunto de pessoas que expõem seu modo de pensar sobre determinado assunto. “Todo cidadão tem uma opinião, que pode ou não ser bem fundamentada. No nosso caso, que entendemos do ordenamento jurídico e do sistema constitucional, também é assim. É claro que no exercício da profissão, nossa opinião não conta. Aplicamos as leis que existem, da maneira que são. São cuidados que devemos ter. Eu não posso ter uma atividade político-partidária, mas nada me impede de defender um projeto político de um ou de outro partido. De um modo geral, podemos falar sobre quase tudo”. E uma das exceções é a manifestação sobre o julgamento recente do juiz federal Sérgio Moro, que condenou o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva a nove anos e meio de prisão. “Não temos opinião e não podemos nos manifestar de modo específico sobre este assunto”, sintetiza.

Por outro lado, a presidente da AJD opina sobre o instrumento da delação premiada e da privação de liberdade como prova de obtenção de provas, recursos que vem sendo utilizados em larga escala nas investigações relacionadas à Operação Lava Jato. “A delação premiada é um instituto delicado. Ele existe, há uma legislação que o prevê, mas nessa própria legislação há uma série de limites na forma como ele pode ser aplicado. Então o que eu posso dizer é que ele deve ser aplicado com cuidado, por uma questão de bom senso, inclusive. Primeiro para que não se desrespeite a garantia constitucional de ninguém. Pode ser delicado para a obtenção de algumas provas até, mas é um instrumento que tem a sua importância”.

A força da palavra
Se hoje a população sabe o que é delação premiada, privação de liberdade e condução coercitiva, muito devemos à tecnologia e as redes sociais. A internet é um dos instrumentos de relevância para os objetivos da Associação. “A nossa liberdade digital é relativa, mas, de um modo geral, a rede social é positiva. Sem isso teríamos apenas uma fonte de informação. Com a internet, as mídias alternativas pelo menos podem resistir.”

A força da palavra é o principal instrumento de trabalho da AJD, que produz e dissemina um volume muito grande de conteúdo crítico, informações que são transmitidas por meio de notas públicas, artigos, entrevistas e, claro, redes sociais. A Associação também promove cursos e palestras gratuitas em sua sede – no centro da capital paulista – ou em locais maiores, quando o público alvo não é apenas a classe da magistratura, mas a sociedade civil como um todo. “Nosso objetivo é produzir conteúdo de qualidade para contribuir com a resistência. Ao estar em contato com outros associados, o magistrado escuta, debate e isso também interfere em sua própria produção de conteúdo, em sua bagagem e até em sua atividade jurisdicional. O que produzimos acaba atingido um número cada vez maior de pessoas, não só do Judiciário, mas da sociedade como um todo.” Um pouco desse conteúdo pode ser conhecido no livro “2016: O histórico ano dos 25 anos da AJD”, organizado pelo juiz André Augusto Salvador Bezerra, presidente do Conselho Executivo no triênio 2014-2017, disponível para download no site da Associação.

Resistência e progressismo são as palavras de ordem na AJD. E, apesar do complexo cenário da política nacional, a juíza Laura Benda defende que é preciso continuar lutando. “Eu acredito que este é um dos momentos mais graves pelos quais o País já passou. Não temos perspectivas e acho que as pessoas não estão se dando conta da gravidade do que está acontecendo. Mas justamente por isso é que temos que acreditar que conseguiremos resistir e avançar”, conclui a magistrada.