Justiça e Independência

27 de fevereiro de 2014

Compartilhe:

Luiz-Fernado1Na Declaração de Independência dos EUA, de 4/7/1776, redigida basicamente por Thomas Jefferson, está inscrito como postulado que as 13 colônias rompiam com a metrópole porque o rei da Grã-Bretanha, entre outros motivos, tentava impor sua tirania fazendo os juízes dependentes da sua vontade. Ali se lançava a semente da garantia fundamental de todas as pessoas receberem julgamento por um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou sobre o fundamento de qualquer acusação criminal, posteriormente reproduzida na Declaração Universal dos Direitos do Homem – aprovada em 10/12/1948 pela Assembleia da Organização das Nações Unidas. A partir de então, a garantia se consolidou no mundo civilizado, integrando todas as constituições contemporâneas, ainda que muitas vezes agredida e violada por déspotas e ditadores de variados matizes e colorações políticas, supostamente afrontados pela sua atuação.

Tais considerações vêm a propósito de uma indagação que deve sensibilizar a todos, especialmente aos que militam na área jurídica e, ainda mais especificamente, nas lides judiciais: será a independência dos juízes um elemento ainda essencial ao adequado cumprimento de sua relevante função social? Ou, pelo contrário, nestes tempos de globalização em que vivemos, terá essa independência, antes atributo primordial de qualquer julgamento, sido engolfada tanto pela “tsunami” da jurisdição massiva representada pelas súmulas com efeito vinculante, recursos repetitivos, etc., quanto pela necessidade de atender a metas e a outras exigências indevidamente centralizadoras do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?

Veja-se que este Conselho já se arvora até – parecendo atender à justa indignação popular contra todas as formas de corrupção – a inquirir alguns tribunais sobre suposto percentual insuficiente de condenações em matéria de improbidade administrativa. Isto, obviamente, sem conhecer o conteúdo dos processos e ignorando que, na quase totalidade dos casos, o Ministério Público não recorreu da absolvição.

Assim, joga-se para a plateia, e não é à toa que a ex-Corregedora do CNJ já se aposentou voluntariamente e surge como intrépida candidata, sem um recatado período de quarentena e tendo utilizado a tribuna do Conselho para pavimentar sua pretensão, à senadora pelo Estado da Bahia.

Agora, mais recentemente, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, alçado à condição de celebridade nacional pela relatoria da Ação Penal 470 (mensalão), decreta a prisão de um dos condenados (Deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara Federal), mas não assina o mandado antes de se retirar para um período de férias no exterior, permitindo-se ainda, lá de Paris, criticar apontada omissão dos Ministros Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que não o assinaram por considerar que a tarefa caberia ao relator e não a seus eventuais substitutos na Presidência do STF.

Ora, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que o juiz criminal que decreta a prisão de condenado deve, como ato de ofício e portanto como dever que não pode ser esquecido, assinar o mandado, cuja preparação imediata não apresenta qualquer dificuldade, daí não ser confortável a versão apresentada pelo relator de não havê-lo assinado pelo início das férias no dia seguinte.

Por outro lado, a crítica pública e emitida do exterior a seus colegas de Corte, um deles Vice-Presidente, que agiram pela convicção de que a tarefa de assinar o mandado era do relator, atinge também a independência judicial dos criticados, sendo mais um episódio de pressão agravado por se dirigir a juízes do STF.

`Bem se vê que a independência judicial pode ser afrontada da 1a instância ao STF, devendo ser, com valores social e jurídico resguardados pela Constituição Federal, defendida, independentemente da origem das agressões, sejam internas ou externas ao Poder Judiciário, merecendo repulsa ainda maior quanto mais elevado o cargo ou a posição jurídico-política do autor do atentado.

Mais importante, entretanto, é a verificação de que tais agressões à independência dos juízes debilitam o próprio estado democrático de direito e ferem de morte os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, tentando fazer de juízes, cuja instituição, como qualquer outra, também apresenta suas máculas, burocratas de toga ou fantoches de um reino de faz-de-conta onde, mais do que os direitos individuais e coletivos, deve contar a vontade dos opressores.

Até porque, a democracia não convive com a ideia da transformação dos juízes – por vocação institucional destinados a garantidores dos direitos fundamentais da pessoa humana – em insetos gigantescos como aquele em que o gênio inquietante de Franz Kafka transformou o caixeiro-viajante Gregor Samsa na obra-prima A Metamorfose.

Nota do Editor ______________________________________________________________

Um dos fatores que mais dignifica um magistrado na sua judicatura é, indiscutivelmente, a sua independência, livre de pressões, conchavos e interferências de quem quer que seja: governante, potentado, poderoso, político ou seja quem for.

O desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, é colaborador e um dos maiores incentivadores da Revista desde a sua primeira edição, em maio de 1999 – quando então exercia a presidência da Associação dos Magistrados Brasileiros –, onde participa e pontifica no Conselho Editorial com sua arguta inteligência e refinada culturas jurídica e humanista, defendendo, como sempre, a independência do Judiciário, o fortalecimento da instituição e da magistratura e apontando caminhos em defesa do Estado Democrático de Direito.