Edição

Justiça não é vingança

5 de janeiro de 2002

Compartilhe:

Nos últimos tempos temos visto, com maior freqüência, fatos que muitos acreditavam jamais vir a contar aos netos. São as prisões de envolvidos nos chamados “crimes de colarinho branco” e outros que tipificam as estripulias da elite com dinheiro ou interesse publico.

Um aqui, outro ali, e de repente não e mais tão incomum assistir a descida dos poderosos ao inferno antes só reservado aos pobres. Naturalmente, ha infernos e infernos. Não chegamos ao estagio do tratamento igualitário aqueles que tem as ditas contas a pagar com a sociedade. A começar da penca de advogados disponíveis para um caso e não para outro. Alem disso, para cada colarinho branco pego pela Justiça, deve haver uma fila praticando, incólume, falcatruas semelhantes.

Ha vários motivos para a nova experiência nacional, de ver a justiça chegar aos andares de cima. Um é o surgimento, na área da Justiça, de uma geração de homens e mulheres dispostos a colar seu nome a valores e não a interesses, querendo ser lembrados como instrumentos da aplicação efetiva da justiça e não da perpetuação da impunidade com base em critérios de classe social.

Um risco, nessa situação, é interpretar justiça como vingança. Seria ate compreensível um sentimento generalizado de revanche, de satisfação diante de ícones do poder econômico ou político humilhados, algemados, enfrentando vaias, empurrões. Mas é preciso não confundir justiça com catarse coletiva de um ódio meio indefinido por tudo que e injusto no pais, para que não se acabe por deturpar a ideia fundante de que aquele que comete um crime, de que natureza for, deve pagar segundo determinam as leis vigentes. E só.

Ainda que a realidade seja rica em exemplos revoltantes de como essa ideia e deixada de lado, para a desgraça do pobre e o alivio do rico, é importante salvaguardá-la como principio do qual devemos nos aproximar cada vez mais. O desejo de vingança via instrumentos de justiça cria área de risco de violência subjetiva nos assuntos coletivos que se espalha como erva daninha. Ela pode sufocar a crença nas vias institucionais e estimular moral publica persecutória que potencialmente atinge a todos e acrescenta ingrediente sempre assustador as relações sociais: a realimentação continua do ódio e a incapacidade de ater-se a regras universais. Sempre se demanda um pouco mais e esse “pouco” e, em geral, algum tipo de violência.

Tomemos o caso especifico dos políticos. O Congresso e uma espécie de tribunal polemico que muitas vezes revolta a população dado o seu corporativismo. Preocupa quando parece ser atalho para fugir da Justiça comum, por meio da perversão da imunidade parlamentar, que passa a ser vista como esconderijo eficaz para quem atentou contra interesses sociais ou cometeu crimes na esfera privada. Também são desalentadoras manobras partidárias para proteger seus membros, livrando-os de prestar contas de seus atos e criando um vácuo de aplicação de justiça que gera justa indignação. Mas o histórico do Congresso mostra também ações exemplares para investigar e punir no plano político. Ainda é pouco, mas indica que ha uma representação legitima que ganha terreno contra a impunidade, num jogo as vezes difícil de ser entendido.

Maiores avanços serão diretamente proporcionais a capacidade da sociedade capitalizar cada episódio – tanto os positivos quanto os decepcionantes – na forma de pressão para aperfeiçoar os instrumentos de investigação e punição de políticos com passivo anti-social. E preciso pressão por visibilidade, para que todas as votações que envolvam cassação de mandato ou licença para processo sejam nominais, jamais secretas. E preciso punição eleitoral da população a partidos que dificultam o acesso da Justiça a seus membros. É preciso resposta rápida, de manifestação de desagrado e reprovação, quando o Congresso da espetáculos lamentáveis de corporativismo. E é preciso, também, apoio e reforço quando age corretamente.

Essa seria, como se costuma dizer hoje, a agenda positiva da cidadania no campo da justiça política. A negativa seria, como falávamos, exaurir as chances de avanço em demandas de ódio e vingança, que costumam gastar todas as energias em casos isolados e esquecer a fase de construção de mecanismos universais de julgamento e punição mais rigorosos, mais incontornáveis, mas impessoais. Deve-se levar em conta, ainda, que a passionalidade do ódio tem outra face, que e a vitimização do criminoso, levando a uma segunda confusão, que e a do perdão pessoal e espiritual com o julgamento pela lei. Não existe perdão para crimes para os quais a sociedade institui formas e meios legítimos de punição. Não ha como advogar ausência ou alivio da pena social com base no sentido do perdão espiritual. Mas ha como lutar para que a lei seja aplicada com justiça e equidade.

Afinal, uma sociedade efetivamente democrática e justa é o maior castigo que se poderia aplicar as bandas podres que, talvez cinicamente, achem que ainda é mais vantagem enfrentar o ódio e o desprezo da população, tentando uma chantagem emocional, do que a aplicação pura e simples da justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense de 15/06/2000.