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A Justiça Restaurativa como fator de fortalecimento do direito social à segurança

20 de novembro de 2017

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Constituição de 1988 foi pródiga na consolidação de direitos fundamentais.

Assumiu categoricamente uma concepção democrática e social e impôs deveres de cunho prestacional aos poderes constituídos.

Essa conformação se verifica também na consolidação do direito à segurança como um direito fundamental, catalogado no rol dos direitos sociais.

A presente abordagem visa trazer alguns contornos do direito fundamental à segurança como direito ­social prestacional que impõe uma obrigação de cunho positivo consistente no desenvolvimento de politicas públicas afetas à Justiça Restaurativa.

Traçamos um panorama sobre conceitos atinen­tes à teoria dos direitos fundamentais que são importantes para construção do que se defende: a consolidação do direito à segurança não impõe apenas ao Estado a implantação de institutos atinentes a uma lógica retributiva (policiamento ostensivo, reforma e manutenção do sistema carcerário, etc.), mas também uma lógica preventiva que pode muito bem ser tratada com as balizas do que se denomina justiça restaurativa.

A conformação do direito à segurança como direito social, embora expressa na Constituição no artigo 6o, é pouco abordada e demanda uma reflexão aprofundada da sua natureza jurídica. Para tanto, como já exposto acima, importante repisar alguns conceitos basilares da teoria dos direitos fundamentos.

Conforme lição corrente na doutrina clássica do direito constitucional contemporâneo, consolidaram-se nas Constituições do pós-guerra os direitos fundamentais sociais, ditos de segunda geração ou dimensão. Paulo BONAVIDES explica que com as revoluções americana e francesa do século XVIII advieram os direitos de primeira geração consistentes nas liberdades e no direito de propriedade. No século seguinte, iniciou-se a luta pelo reconhecimento dos direitos sociais, de segunda geração, que visavam assegurar condições de existência material digna. Posteriormente, demandou-se por uma nova dimensão de direitos, pertencentes não ao indivíduo, mas à coletividade, como o direito à paz, ao desenvolvimento e ao meio ambiente, tendo estes direitos sido incorporados às diversas Constituições (BONAVIDES, 2002, p.518).

Aponta-se, ainda, que a concepção de Estado
Social e Democrático de Direito apresenta um acréscimo em relação à concepção de Estado Social, pois a realização dos direitos sociais se torna condição de possibilidade da própria democracia.

Em síntese, opera-se a seguinte mudança histórica de orientação: transita-se do Estado Liberal, confiante na capacidade de autorregulação da economia, para o Estado Social (programático) e, ao final, para o Estado Social e Democrático de Direito, que exige a concretização dos direitos fundamentais.

Paralelo a esta transformação, alargou-se o objeto dos direitos públicos subjetivos que além de se caracterizarem pelo poder de exigir uma omissão estatal, passam a abarcar o poder de exigir uma atuação.

Nesta senda, Robert ALEXY aponta que as normas de direitos fundamentais atribuem aos indivíduos três posições jurídicas básicas: direitos a algo, liberdades e competências (ALEXY, 1997, p. 186).

Interessa mais para a presente abordagem a primeira categoria, mas para fins conceituais, entende-se que as liberdades jurídicas consistem em posições jurídicas subjetivas que habilitam o indivíduo tanto a agir como a não agir de determinada maneira e as competências criam a possibilidade de atos jurídicos e a capacidade de modificar situações jurídicas, bem como uma posição de sujeição para aquele em face do qual a competência é exercida e, por decorrência, uma posição de não sujeição fora do âmbito da competência concedida.

Já os direitos a algo englobam os direitos a ações negativas e a ações positivas por parte do Estado. Os direitos a ações negativas abarcam os direitos a que o Estado não impeça determinadas ações, não afete determinadas situações e não elimine determinadas posições jurídicas. Os direitos às ações positivas se dividem em direitos a prestações fáticas e direitos a prestações normativas.

Observe-se, todavia, que um mesmo dispositivo da Constituição pode trazer normas de direitos fundamentais que atribuam posições jurídicas subjetivas diferenciadas ao seu titular.

Os direitos a prestações normativas são direitos à imposição de normas, cuja concretização foi objeto de intenso debate na doutrina brasileira por longos anos. Isso porque não é possível que o Judiciário faça as vezes do Legislativo, editando normas em caráter geral e abstrato. Contudo, é possível o desenvolvimento de atividade substitutiva restrita ao caso concreto ou ainda com efeitos gerais no caso do mandado de injunção. Assim, consolidou-se recentemente o entendimento de que no âmbito do mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia o texto normativo que faltava diante da omissão legislativa.

Porém, o direito subjetivo a prestações normativas não deve ser compreendido como direito à emanação de normas geral e abstrata, mas sim como dever específico do Legislativo de disciplinar deter­minada matéria. Caso o legislador permaneça inerte, cabe­ria ao Judiciário possibilitar a fruição do direito asse­gurado constitucionalmente.

Já os direitos às prestações fáticas são identificados com os direitos sociais, apesar de também apre­sentarem feição de direito à ação negativa, como o direito de greve.

Desta forma, de regra, exigem o comportamento ativo por parte do Estado. A efetivação judicial destes direitos depende de condições materiais, razão pela qual se entende comumente que o Judiciário não pode efetivá-los de forma geral, pois apenas o Executivo e o Legislativo encontram-se legitimados para a elaboração do orçamento público. Aqui reside o debate sobre a denominada reserva do possível.

Importante ressaltar, de outro lado, que a disciplina constitucional dos gastos públicos não se restringe à imposição de previsão orçamentária, devendo também observância aos fins materiais impostos pela Constituição.

Contudo, não necessariamente apenas os direitos sociais prestacionais impõem um custo aos poderes públicos. Há muito se defende que este raciocínio se assenta em um pressuposto falacioso: a ideia de que apenas os direitos a prestações positivas demandam investimentos estatais.

Justamente para demonstrar que inclusive a garantia das liberdades exige despesas, Stephen HOLMES e Cass SUNSTEIN (HOLMES, SUNSTEIN,1999), professores da Universidade de Princeton e Chicago, respectivamente, desenvolveram a teoria do custo dos direitos.

Já na introdução da obra, os autores relatam casos de incêndios prontamente atendidos pelo corpo de bombeiros. Apresentam, também, dados orçamentários norteamericanos (ano de 1996) que demonstram a destinação de 11,6 bilhões de dólares, provenientes da arrecadação tributária, à proteção da propriedade privada. No entanto, traçam o seguinte diagnóstico “americans seem easily to forget that individual rigths and freedoms depend fundamentally on vigorous state action.” Ou seja, inclusive os direitos de defesa ou a ações negativas demandam dispêndio de recursos públicos, caso contrário os cidadãos não poderiam usufruir a propriedade privada ou qualquer outro direito individual da forma como o fazem.

Verifica-se, portanto, que os direitos de defesa ou direitos a ações negativas pressupõem tanto quanto os direitos prestacionais a cooperação social e o financiamento governamental. Aí que se confunde a natureza do direito fundamental à segurança, que assume a função de tutela das liberdades individuais, mas também tem um conteúdo nitidamente prestacional.

Assim, após o estudo, Holmes e Sunstein demonstram que todos os direitos envolvem prestações positivas – “all rigths are positive rigths”. Ou seja, o argumento da reserva do financeiramente possível não pode frustrar a concretização dos direitos prestacionais.

De fato, o que vivenciamos no Brasil é que a concretização dos direitos prestacionais apresenta-se mais como uma questão de prioridades, pois mesmo os direitos a ações negativas demandam considerável aporte de recursos públicos.

O tema segurança pública vem tomando, mais e mais, espaço nas discussões acadêmicas e cotidianas, face à crônica crise em que todo o sistema penitenciário do país se vê imerso.

O Estado deve ser capaz de garantir, a todos aqueles que estão sob sua égide, a tranquilidade de viver em um local onde seus direitos são respeitados e, caso haja violação, que seus atores sejam responsabilizados. Não pode o ser humano sentir-se vulnerável, diante da conduta de outrem.

É também direito fundamental, contudo, quando se trata de direitos sociais, sempre vem à mente dos estudiosos aqueles referentes ao trabalhador e, portanto, o direito à segurança acaba ficando escanteado, até mesmo nos compêndios de Direito Constitucional.

A escolha dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no catálogo dos direitos fundamentais, ressalta, por sua vez, de forma incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já que nas cartas anteriores os direitos sociais encontravam-se positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter meramente programático.

Conforme voto da Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie:

O direito à segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo a tal serviço.

As chamadas condições objetivas que possibilitam acesso a serviços de segurança, citadas no voto, perpassam não somente a garantia de que o Estado terá órgãos repressores para conter a escalada criminosa, mas também, em análise ampliada, que deverá ele atuar para que padrões mínimos de segurança sejam alcançados, por meio da certeza da responsabilização dos autores de atos ilícitos. Quando se fala em órgãos repressores, logo vêm à mente o Sistema Penitenciário brasileiro e toda lógica repressiva que permeia o sistema de Justiça nacional.

Entretanto, no atual cenário, não se pode deixar de considerar que a concretização do direito à segurança é uma urgência, mas que não pode ser traduzida apenas no incremento do aparato policial, pois é certo também que a justiça retributiva não dá conta de assegurar o direito à segurança.

O mais recente estudo do Conselho Nacional de Justiça aponta para uma população carcerária de mais de 700 mil pessoas, número esse que, desde o ano 2000, não para de crescer, chegando a aumentar quase 200% em 15 anos.

Dados do Ministério da Justiça que analisam a situação carcerária no país, num comparativo que iniciou em 2000, apontam que naquele referido ano o Brasil tinha 232.775 mil presos e, que em 2015, o número chegou a 711 mil presos.

Todo esse incremento no número de pessoas presas, ou seja, um aumento na repressão por parte do Estado, não se converteu, como era de se esperar, no aumento da sensação de segurança entre os brasileiros.

Ao contrário, muito embora a população carcerária tenha mais que duplicado em 15 (quinze) anos, não há qualquer sinal de que a população se sinta mais segura do que no início deste século.

Isso ocorre porque o modelo repressivo punitivo não leva em conta o resultado de todo o processo penal. No que tange a todos os atores envolvidos, a vítima e a comunidade não fazem parte da preocupação do Estado, quando na condução de um processo crime.

Não se tem olhos para a reparação do dano e para a restauração das pessoas envolvidas no ato ilícito, quer-se apenas, encontrar-se o culpado e puni-lo pelo que ele fez.

Tal situação leva a um processo exclusivo, que não permite que a vítima expresse suas necessidades (que quase sempre não são atendidas quando da sentença condenatória de seu algoz).

Essa alienação estatal perante as consequências de um evento criminoso para a sociedade, onde não se busca a responsabilização de quem violou as normas penais, gerou uma horde de apenados que, por vezes, sequer entendem os motivos de sua condenação.

Claro que a linguagem rebuscada típica dos operadores do Direito também contribui para tal desconhecimento, entretanto, não é a única causa.

O modelo repressivo-punitivo não tem qualquer comprometimento com o futuro, busca sempre resolver o passado. Esse é o grande equívoco. Até porque no passado não se pode mexer e é no futuro que vítima, ofensor e comunidade terão que saber se portar, após finda atuação do Estado-juiz no conflito.

Quando o Estado rouba o conflito pertencente às partes, retira delas também a autodeterminação e a possibilidade de resolverem aquele ocorrido de maneira a voltarem a sentir a segurança para seguir sua vida.

Em alternativa a esse sistema repressivo que pouco resultado eficiente vem trazendo à sociedade, vem a Justiça Restaurativa, que propõe chamar a participar da resolução do conflito todos os por ele atingidos, ou seja, ofensor, vítima e comunidade.

Com efeito, a Justiça Restaurativa foi consolidada como política nacional do Poder Judiciário por meio da Meta no 08 que visa inserir uma perspectiva de solução de conflitos centrada na criatividade, sensibilidade, na escuta das vítimas e dos ofensores, buscando uma aproximação entre vítima, agressor, suas famílias e a sociedade na reparação dos danos causados por um crime ou infração.

Ou seja, a justiça restaurativa consiste em prática a ser inserida no contexto do direito fundamental à segurança impondo políticas reintegradoras do evento danoso e também preventivas por meio da atuação com a comunidade. Em assim se fazendo, se poderá afirmar que o Estado brasileiro atravessa a fronteira segregadora, na qual apenas direitos fundamentais ditos prestacionais puros são protegidos e assegurados, para adentrar na concretização do direito social à segurança em sua forma mais ampla, e quiçá, mais abrangente e democrática, qual seja, a de garantir a segurança na forma da prevenção da violência, por meio de ferramentas que estimulem o diálogo, a compreensão do evento danoso e sua reparação.