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Lei Maria da Penha: os desafios para os próximos dez anos

22 de setembro de 2016

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Maria Berenice Dias, fundadora e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família

Após uma década de sua promulgação, a norma legal traz como principais contribuições a capacidade de mensurar a violência doméstica e estabelece medidas específicas para melhor enfrentar este crime recorrente.

Reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência de gênero, a Lei Maria da Penha (Lei no 11.340/2006), principal norma legal brasileira neste escopo[1], está completando dez anos. Embora não tenha, ainda, todos os seus dispositivos efetivados, a LMP trouxe como maior contribuição a exposição da violência doméstica, que, até então, era considerada “normal” ou “assunto de casal”. Promulgada em 7 de agosto de 2006, a Lei representa um dos mais relevantes avanços legislativos desde a Constituição de 1988, pois removeu esse caráter de “problema de esfera privada”, reconheceu a violência contra as mulheres como violação dos direitos humanos e colocou o tema na agenda pública e governamental.

Além de garantir a conceituação precisa da violência doméstica e estabelecer diversas medidas específicas para enfrentá-la, a LMP foi fundamental para mensurar estas ocorrências em âmbito nacional. Esta é a opinião da jurista Maria Berenice Dias. “O grande mérito da lei foi permitir a quantificação, pois, até seu advento, não tínhamos ideia da dimensão deste que é o mais grave e o mais recorrente crime que se comete no Brasil”, afirma ela, que foi a primeira mulher a ingressar na magistratura no estado do Rio Grande do Sul, tendo atuado como desembargadora no Tribunal de Justiça daquele estado. Especializada no julgamento de ações que envolvem o Direito de Família e Sucessões, a advogada tem uma história de repercussão mundial no combate à violência doméstica e em favor dos direitos da mulher na sociedade e demais minorias. Ela também é fundadora e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

A jurista comenta que, antes da promulgação da LMP, os casos eram subnotificados, a violência doméstica estava “perdida” entre os delitos de pequeno potencial ofensivo. “A Lei determinou a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas houve uma desatenção muito grande por parte do Poder Judiciário da grande maioria dos estados, que levaram muito tempo, e ainda estão levando, para criar estes Juizados”, aponta.

Até o ano de 2006, este tipo de crime era processado pelas varas criminais comuns ou pelos Juizados Especiais Criminais (JECs). Com o advento da nova lei, todos os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher perderam o caráter de menor potencial ofensivo, sendo excluída a competência dos JECs para processá-los. Assim, de acordo com a nota técnica “A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil”, publicada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicas (Ipea)[2], em março de 2015, além dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, promotorias públicas especializadas ou núcleos de gênero do Ministério Público e núcleos de defensoria pública especializados, a Lei previu a criação de novos serviços, como casas de abrigo, delegacias especializadas, serviços de saúde e centros especializados da mulher.

Segundo dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres, o número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e de Varas Adaptadas de violência Doméstica e Familiar somados correspondia, em fevereiro de 2015, a 101 unidades. As Promotorias Especializadas e Núcleos de Gênero do Ministério Público eram, no mesmo período, equivalentes a 58. As Defensorias da Mulher somavam 42 unidades.

Esta estrutura legal é também integrada pelas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), que compõem a estrutura da Polícia Civil e são encarregadas de realizar ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal. Nessas unidades é possível registrar o Boletim de ocorrência e solicitar medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica contra a mulher. Dados de 2013 mostram que havia 217 unidades na região sudeste, 95 na região sul, 80 no nordeste, 67 no centro-oeste e 47 no norte (considerados não apenas as DEAMs, mas também incluso nessa contagem os Núcleos de Atendimento em delegacias comuns) – um total de 506 em todo o território nacional.

Para a doutora Maria Berenice, o número de DEAMs é significativo se comparado ao de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. “O único equívoco da LMP, que merecia ser alterado, é passar a atribuir a competência das varas criminais para apreciar medidas protetivas enquanto não forem instalados os Juizados. E eles não serão instalados em todas as comarcas. Durante este período de dez anos não houve esta resposta, não só do Poder Judiciário, mas de todas as demais autoridades públicas. E não apenas no que diz respeito à instalação dos juizados, mas para atender todas as determinações da Lei. Muito pouco foi feito até o momento”, avalia.

Estrutura de apoio

Para a jurista Maria Berenice Dias, os demais organismos da estrutura proposta pela LMP também são em número insuficiente.É o caso, por exemplo, dos Centros Especializados da Mulher, que, por meio de uma equipe multidisciplinar, atuam desenvolvendo ações e oferecendo serviços de cunho psicossocial, para auxiliar na ruptura das mulheres com a situação de violência. Em 2013, existiam 214 Centros Especializados da Mulher em 191 municípios, sendo 74 localizados na região Sudeste, 63 no nordeste, 31 na região sul, 28 na região norte e 18 no centro-oeste. Já as Casas Abrigo, que têm o objetivo de oferecer asilo e atendimento integral a mulheres em situação de risco de vida iminente, em decorrência da violência doméstica, estavam presentes, em 2013, em 77 municípios brasileiros, um total de 77 Casas de Abrigo.

“Falta vontade política de dar efetividade à Lei. Estas questões domésticas sempre foram reconhecidas como de interesse secundário. São aspectos que não absorvem muito comprometimento do estado, e na maior parte das vezes, o que se alega é a falta de verbas. Aqui em Porto Alegre existe uma casa de passagem, que ficou fechada durante muito tempo, e que abriga no máximo 28 pessoas. Isso não é nada. E temos que em cada beliche se concentra uma família inteira, a mulher e todos os filhos, independentemente do número”, declara a jurista.

Questionada sobre a efetividade dos programas de aconselhamento do agressor, Maria Berenice afirma que esta prática poderia ser imposta pelos juízes como pena, e não apenas como consequência do processo penal decorrente do crime de violência doméstica. “Isto pode ser determinado como medida protetiva. Porque a própria Lei diz que, além do afastamento do agressor, o juiz pode determinar outras medidas protetivas. Eu acredito que seria absolutamente salutar que sempre que a agressão for mais grave seja imposta a frequência em um programa de aconselhamento. E, a partir do momento em que isto não for cumprido, também poderá incorrer no aprisionamento por desobediência a uma ordem judicial. Mas me parece que não vem sendo dada a devida atenção à necessidade de mudar a mentalidade do agressor. Porque ele, o agressor, age acreditando que pode fazer aquilo, que é um direito seu. E não adianta apenas colocá-lo na cadeia, porque assim que sair irá bater na mesma mulher ou na próxima. Quando a gente observa que um agressor reconhece que estava errado ao praticar atos de violência contra a mulher, esta, para mim, é a melhor notícia que se poderia ter”, salienta.

A jurista acrescenta que é preciso mais atenção do poder público para que a mulher não desista de denunciar. “Ela faz isso quando não obtém do estado o suporte necessário para seguir em frente. É preciso um esforço muito grande dessa mulher para conseguir sair desta situação e denunciar o abuso. Ela não tem para onde correr e nem quem a ampare, o Estado não lhe dá esta resposta”, diz a jurista.

A violência em números

Dados consistentes sobre a violência contra as mulheres podem ser encontrados no site da campanha “Compromisso e atitude”, iniciativa da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). De acordo com os números do balanço de atendimentos realizados de janeiro a outubro de 2015 pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, 38,72% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente. Em 67,36% dos relatos, as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo.

Para Maria Berenice Dias, isso reforça o viés machista que sempre prevaleceu, do “a mulher é minha e eu faço o que quero”. “O homem se sente no direito de cobrar da parceira determinados comportamentos, dentro de sua expectativa das questões de gênero. Tanto, que toda denúncia de violência vem com uma justificativa, na qual a culpa é sempre atribuída à mulher, porque ela não agiu da forma que era esperado, não obedeceu, não cuidou dos filhos, pintou a unha de uma cor que ele não gostava. Então, a justificativa dada é que ele tomou uma atitude de caráter ‘corretivo’, como se eles tivessem este direito”.

Ainda de acordo com os dados da SPM-PR, em relação a todos os tipos de abuso sofridos, nos dez primeiros meses de 2015, do total de 63.090 denúncias de violência contra a mulher, 31.432 corresponderam a casos de violência física (49,82%); 19.182 de violência psicológica (30,40%); 4.627 de violência moral (7,33%); 1.382 de violência patrimonial (2,19%); 3.064 de violência sexual (4,86%); 3.071 de cárcere privado (1,76%); e 332 envolvendo tráfico (0,53%). Os atendimentos registrados pelo Ligue 180 revelaram que 77,83% das vítimas possuem filhos (as) e que 80,42% desses (as) filhos(as) presenciaram ou sofreram a violência.

Outra pesquisa, esta da Secretaria da Transparência do DataSenado, com 1.102 brasileiras ouvidas de 24 de junho a 7 de julho de 2015, mostra que reduziu-se o número de mulheres que acreditam na melhora da proteção à mulher, com a Lei Maria da Penha. Hoje, 56% apontam estar mais protegidas, enquanto que, em 2013, eram 66%. A análise por nível de instrução revela que, quanto maior a escolaridade, mais a mulher se sente protegida pela Lei. Entre aquelas que completaram o ensino superior, 70% acreditam na melhora. Para quem cursou até o ensino médio, o percentual fica em 53% e cai para 42% no grupo que tem até o ensino fundamental.

Embora a maioria das entrevistadas aponte que a violência aumentou, a proporção de mulheres que declaram já ter sofrido agressão permanece a mesma (em torno de 18%). Desse modo, aproximadamente uma em cada cinco brasileiras já foi alvo de algum tipo de violência doméstica ou familiar.

E são justamente as mulheres com menor nível de instrução as mais atingidas: 27% das respondentes com ensino fundamental informaram que já foram vítimas, percentual que cai para 18% e 12% quando consideradas as mulheres com ensino médio e ensino superior, respectivamente. A doutora Maria Berenice lembra que isso também se deve a um “caldo cultural” que temos em nossa sociedade. “Existem muitas mulheres que sentem que ‘mereceram’ o abuso, pois estariam de fato descumprindo o seu papel social. Isso é muito recorrente”, alerta a jurista.

Ainda de acordo com o levantamento do DataSenado, as mulheres estão mais suscetíveis a sofrer violência doméstica pela primeira vez quando têm entre 20 e 29 anos. Nessa idade, 34% das vítimas sofreram a primeira agressão. Se contadas as idades mais jovens, 66% das vítimas reconhecem terem sido violentadas inicialmente até os 29 anos. Somente 15% dos casos ocorreram pela primeira vez após os 40.

Ciúmes e bebidas alcoólicas continuam sendo os principais agentes provocadores da violência por 21% e 19% das mulheres agredidas, respectivamente. No universo de mulheres agredidas por pessoa próxima, 26% ainda convivem com o agressor e 14% delas continuam sendo vítimas dessa violência. Uma em cada cinco mulheres não fez nada quando agredida. Este percentual aumentou em relação a 2013, quando 15% das vítimas adotaram a mesma postura. Apesar de ainda existir quem, por motivos pessoais, opte por não fazer nada, a maior parte das pesquisadas procurou alguma forma de auxílio: 20% buscaram apoio da família, 17% formalizaram denúncia em delegacia comum e 11% denunciaram em delegacia da mulher.

As vítimas que optaram por não denunciar alegaram, como principais motivos: a preocupação com a criação dos filhos (24%), o medo de vingança do agressor (21%) e acreditar que seria a última vez (16%). A crença na impunidade do agressor e a vergonha da agressão foram citadas por 10% e 7%, respectivamente.

A pesquisa também avaliou a qualidade do atendimento às vítimas de violência nas delegacias, comuns ou da mulher. A maior parte das vítimas – 48% – qualificou como ótimo ou bom; 14% como regular e 38% como ruim ou péssimo.

Entre as que procuraram algum tipo de ajuda, 34% o fizeram já na primeira agressão sofrida; 9% depois da segunda agressão; e 31% após terem sido agredidas três vezes ou mais.

Redução nos homicídios

Um dos mais recentes estudos sobre a efetividade da LMP foi produzido também pelo Ipea, em março de 2015. Os pesquisadores utilizaram dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Sistema Único de Saúde (SUS) para estimar a existência ou não de efeitos da Lei na redução ou contenção do crescimento dos índices de homicídios cometidos contra as mulheres.

Os resultados indicam que a Lei fez diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídios contra as mulheres dentro das residências, o que “implica dizer que a LMP foi responsável por evitar milhares de casos de violência doméstica no país”. Os autores ressaltam, no entanto, que a efetividade não se deu de maneira uniforme no Brasil, por causa dos “diferentes graus de institucionalização dos serviços protetivos às vítimas de violência doméstica”.

As mudanças na legislação

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 07/2016, que altera a Lei Maria da Penha para permitir aos delegados de polícia conceder medidas protetivas de urgência a mulheres vítimas de violência doméstica e a seus dependentes. De acordo com o PLC, de autoria do deputado Sergio Vidigal (PDT-ES), os delegados só poderão atuar em caso de risco real ou iminente à vida ou à integridade física e psicológica da mulher e de seus dependentes. A medida, porém, terá que ser referendada, complementada ou revogada pela autoridade judicial a posteriori e a qualquer tempo. O texto também determina que o Ministério Público deverá ser consultado sobre a questão no mesmo prazo.

Uma das medidas é a proibição do agressor de se aproximar, de ter contato e de frequentar determinados locais a fim de preservar a integridade física e psicológica da vítima, de seus familiares e das testemunhas. Os delegados também poderão tomar providências complementares para proteção da vítima como o pedido de prisão do agressor, após pedido encaminhado ao juiz.

Maria Berenice Dias vê com bons olhos esta mudança na legislação. “Isto permitirá à autoridade policial, nos casos de violência grave, aplicar alguma medida protetiva, por exemplo, a mantença do afastamento do agressor por 24 horas. O tempo necessário para esta autoridade policial comunicar ao juiz, que irá ratificar ou revogar o pedido. É só esta singela alteração que vejo como indispensável na lei. Hoje, a pessoa denuncia e a autoridade policial tem 48 horas para enviar o pedido ao juiz. Há um compasso de espera. E para onde esta mulher vai? Para onde ela corre? Vai voltar para casa depois de ter ido à polícia? Porque se o agressor desconfiar que ela o denunciou será pior.”

A jurista opina que é claro que existem muitos exemplos em que tudo corre mais rápido, mas esta não é a regra. “Ademais, estamos falando no âmbito da vara criminal. O juiz tem um número grande de processos. E, assim, pode acontecer de, quando ele marcar a audiência, nesse meio tempo, a mulher tem voltado a conviver com o agressor. De modo geral, o homem tem a estrutura econômica mais sólida, em muitos casos ele ainda é o provedor único ou majoritário.”

Ela avalia que a Lei Maria da Penha ainda precisa ser aperfeiçoada. “Há algumas objeções ao PLC, mas eu ainda não encontrei uma que me pareça consistente com relação a isso. Porque a autoridade policial pode dar voz de prisão quando se trata de outros tipos de delito. Seria fácil para o policial ir até a casa da vítima e tomar alguma medida, seja uma condução coercitiva, que ao menos ouça o agressor para que seja consignado, por exemplo, exigir que ele saia de casa. E, assim, comunicar ao juiz a decisão tomada naquele momento. Porque se não fizer isso, a mulher pode fraquejar, se atrapalhar, ouvir os comentários dos vizinhos, enfim, se deixar influenciar. Porque existe sempre a turma do ‘deixa disso’. Existe uma série de fatores culturais a serem superados”, conclui a advogada.

 

Notas_____________________

1Além da Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 2015, colocou a morte de mulheres no rol de crimes hediondos e diminuiu a tolerância nesses casos.

2Trabalho efetuado por Ana Paula Antunes Martins (pesquisadora da Universidade de Brasília), Daniel Cerqueira (diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea) e Mariana Vieira Martins Matos (pesquisadora do subprograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional/PNDP do Ipea).