Edição

Licitação de linhas que já operam pode trazer sequelas à população

5 de janeiro de 2004

Compartilhe:

Recente decisão da 5ª Vara de Fazenda Pública do Estado do Rio de Janeiro, atendendo a pedido do Ministério Público, criou um impasse para as empresas de ônibus que operam o transporte intermunicipal no Estado. Foi dado prazo de seis meses para que o Detro (Departamento de Transportes Rodoviários) publique edital de licitação para essas linhas. A medida atinge 108 empresas e um total de mais de mil linhas. O desembargador Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em entrevista à revista Ônibus, fala sobre as razões alegadas pelo MP, explica por que concessões de serviço públicos são prorrogadas e enfoca outros aspectos da polêmica questão.

No dia 28 de outubro, a pedido do MP do Estado do Rio de Janeiro, a 5ª Vara de Fazenda Pública deu prazo de 180 dias ao Detro para publicação de edital de licitação das 1.087 linhas intermunicipais, operadas no Estado por 108 empresas de ônibus.

Essa questão das licitações vem criando polêmica há muitos anos. Na sua opinião, em que se baseou o MP para tal iniciativa?

Pelo que vem noticiado na imprensa, o pedido do MP em ação civil pública, que se processa perante a 5ª Vara da Fazenda Pública, funda-se em alegada inconstitucionalidade das prorrogações das permissões de transporte rodoviário das 1.087 linhas de ônibus intermunicipais, dispostas pela Lei Estadual nº  2.831/97.

Algumas das empresas intermunicipais que operam atualmente começaram a operar quando era comum que usassem máquinas de sua propriedade para abrir caminhos e  manter as ruas em estado que permitisse o tráfego de seus ônibus. Seria impensável uma competitividade para atuar nessas condições, e, por esse motivo, a licitação não era exigida. A partir de quando essa exigência passou a existir?

Com  efeito, a situação do Estado, bem como do Município do Rio de Janeiro, é sui generis, apresentando peculiaridades  que remontam às duas situações políticas anteriores dessas unidades, ou seja, antes da criação do Estado da Guanabara e depois de sua fusão com o antigo Estado do Rio de Janeiro, muito  anteriores, portanto, à Constituição de 1988 e à Lei nº 8.987, que é bem mais recente, de 13 de fevereiro de  1995.

Em que dispositivo legal se basearam as prorrogações das concessões pelo prazo de 15  anos?

As prorrogações no âmbito dos serviços rodoviários do Estado se fundam na referida Lei Estadual nº 2.831/97, que, por sua vez, foi editada com abundante e rigoroso atendimento da legislação em vigor no País, a saber:

1º – do que prescreve o art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que determina aos  Estados, Distrito Federal e Municípios que atendam as peculiaridades das diferentes modalidades de seus  serviços;

2º – do comando do art. 37, XXI, da Constituição, que ressalva da aplicação do princípio licitatório os casos especificados  na legislação;

3º – do comando do art. 22, XXI, da Constituição, que limita a competência da União a baixar normas gerais sobre licitação e contratação;

4º – por óbvio, também do dispositivo constitucional do art. 24, § 1º, da Constituição, que, nesta hipótese, de estar limitada a competência da União a estabelecer normas gerais, abre o campo de competência concorrente às demais unidades políticas para estabelecer normas específicas, a fim de atender a suas peculiaridades, na linguagem da própria Carta;

5º – também, à toda evidência, do art. 25, que reserva aos  Estados as competências que não lhes sejam vedadas pela própria Constituição, como é o caso, em que não só inexiste vedação como, até mesmo um comando para  que suplementem as normas gerais.

O legislador criou condições para a realização de novas licitações, levando em consideração investimentos anteriores das transportadoras e a existência de atrativos para que novas empresas se disponham a atuar nesse  mercado?

Por certo, para exercer essa sua  competência específica, com vistas a atender as peculiaridades locais de cada uma das unidades políticas competentes, o legislador levou em conta as condições diferenciais de cada uma, que, por certo, não deveriam, como tampouco poderiam, ser tomadas em conta para afeiçoar normas gerais editadas às idiossincrasias das legislações específicas  de todos os estados membros, do Distrito Federal e dos milhares de municípios  brasileiros.

No  caso de outros serviços públicos operados indiretamente pelo Estado, existem  prorrogações de concessões, ou apenas no transporte  coletivo?

Prorrogações existem em todos os subsistemas administrativos que deles necessitem, por força das prescrições citadas, e não poderia ser de outro modo, a começar pela própria União, que, em inúmeros diplomas, tem flexibilizado a aplicação do princípio licitatório, ponderando-o com outros e não menos importantes princípios que regem a atividade estatal, a ação administrativa e os serviços públicos, em particular.

Alguns juristas especializados na área sustentam que há suporte para manutenção das  atuais permissões e que a decisão da 5ª Vara de Fazenda Pública pode causar um efeito paralisante sobre as transportadoras que, na incerteza de se continuarão a prestar o serviço, evitariam fazer novos investimentos. O Sr. concorda ou discorda dessa  opinião?

Substituir decisões legislativas  e administrativas, como, no caso, as que estão em tela de juízo, por uma decisão  judicial, principalmente com caráter liminar, é, pelo menos, um exercício muito perigoso, máxime nessas matérias em que as informações econômicas, técnicas e sociais, de que não dispõem os magistrados, que são  especialistas em Direito, têm que ser necessariamente consideradas.

No momento em que houver uma licitação, o que acontecerá com os bens das empresas  que operaram até agora? E os trabalhadores que nelas atuam? Existirá um dispositivo legal que se possa garantir os seus empregos?

Por isso mesmo, esses aspectos mencionados pela entrevistadora como desemprego em massa, indenizações vultosas e caos na prestação dos atuais serviços – aparentemente não foram considerados como o deveriam e, em razão disso, podem advir essas e outras seqüelas preocupantes para a população.

Um  dos argumentos do MP é o de baratear as tarifas. De que forma a substituição das atuais empresas ou a contratação das mesmas, através de nova licitação, como ocorreu em outros estados, poderá garantir um barateamento das tarifas?

O barateamento de tarifas tomado como razão de fato do pedido feito ao Judiciário, é uma possibilidade e não uma certeza, pois dependerá de eventos futuros, sobre os quais nem o Legislativo, nem a Administração nem, por certo, o Judiciário têm condições de  prever com certeza e, muito menos, de assegurar por atos legislativos, administrativos ou jurisdicionais um barateamento de tarifas… trata-se, pois, de um mero wishful thinking, que, a meu juízo, não pode servir de embasamento fático a uma ação civil pública.

Outro argumento do MP é a necessidade de se incluir a obrigatoriedade da assunção das gratuidades no transporte pelas empresas, no edital de licitação. O próprio Tribunal de Justiça do Estado reconheceu recentemente a necessidade de uma fonte de custeio para as gratuidades. Existe uma Frente Parlamentar no Congresso Nacional e um movimento formado por ONGs de todo o  país (o MDT) que também reconhecem essa necessidade. Não há uma incoerência nesse raciocínio do Ministério Público, uma vez que para assumir as gratuidades, mantendo o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, as empresas teriam de transferir esse custo aos passageiros  pagantes?

A questão das gratuidades nos serviços públicos não pode ser considerada sob uma simples visão assistencialista, pois os recursos públicos necessários para custeá-las devem estar previstos, já que não se pode violar o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos lançando unilateralmente os ônus do transporte gratuito  sobre os respectivos prestadores de serviços.

Para encerrar, registre-se que, no meu modesto entender, não se deve substituir a prudência pensada pela precipitação bem intencionada. Como existe uma Representação de Inconstitucionalidade contra a Lei Estadual nº 2.831/97, cuja liminar está sendo cumprida para inibir novas prorrogações, ainda pendente de julgamento pelo Colendo do Rio de Janeiro, o avisado seria aguardá-lo. Que mais não seja, em reverência aos princípios da boa fé objetiva, que se reconhece por parte dos prestadores atuais, o da continuidade dos serviços prestados, que se deve ao público, e, em síntese, o da segurança jurídica, que fundamenta e justifica todo o Direito.