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Limitação temporal dos efeitos penais e os maus antecedentes

20 de setembro de 2013

Desembargador do TJMG e coordenador da Escola Nacional da Magistratura

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Doorgal AndradaPor imperativo constitucional, a Carta Magna veda expressamente penas de caráter perpétuo, conforme disposto no art. 5o, XLVII, “b”.

Essa garantia constitucional é basilar na atual sistemática do Estado Democrático de Direito. Nessa acepção, tratando-se de garantia constitucional de caráter fundamental, em uma interpretação extensiva visando tutelar direitos humanos, extrai-se desta norma que, por consequência lógica, os efeitos e decorrências das sanções penais não podem prevalecer sem limites no tempo. Ora, seria absolutamente sem razoabilidade se, embora não perpétuas, as penas gerassem repercussões perenes na vida do indivíduo, assumindo um caráter sancionatório eterno (inconstitucional), o que é vedado à própria pena principal assumir.

Assim, tem-se que Constituição Federal, no já citado art. 5o, XLVII, alínea “b”, veda terminantemente a pena de caráter perpétuo, donde decorre que se a pena principal não pode ter perpetuidade, muito menos os efeitos da condenação que a originou podem perdurar eternamente (maus antecedentes).

Desse modo, valendo-se de uma condenação antiga não se pode valorar negativamente de modo eterno e permanente a circunstância judicial da má-antecedência, dando perpetuidade aos efeitos de uma condenação (art. 59 do CP) mesmo após cinco anos decorridos da extinção da punibilidade, o que fere evidentemente os direitos e garantias fundamentais conferidas ao cidadão, preconizadas na Carta Magna do país, sustentáculo de uma nação guiada por preceitos acauteladores dos Direitos Humanos.

Coaduna com esse entendimento o aclamado doutri­nador argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, juntamente com o não menos renomado José Henrique Pierangeli:

A exclusão da pena perpétua de prisão importa que, como lógica consequência, não haja delitos que possam ter penas ou consequências penais perpétuas. Se a pena de prisão não pode ser perpétua, é lógico que tampouco pode ser ela a consequência mais branda do delito.1

Nessa esteira, em consonância com a norma constitucional em análise, há no art. 64, I, do Código Penal, expressa limitação do tempo em que advirão consequências em função da reincidência, evitando, por conseguinte, repercussões intermináveis em função de fatos passados há vários anos.

No entanto, o mesmo não se vislumbra, na prática, em relação aos maus antecedentes, que, através de uma duvidosa interpretação sistemática, conduz ao absurdo de estigmatizar o réu ad eternum. Tal contexto se revela de gravidade extrema e intenso vilipêndio aos Direitos Fundamentais, haja vista que acarreta situações demasiadamente desfavoráveis aos réus, já que se torna possível a elevação da pena base de novo delito cometido, durante toda a vida do réu, em razão até de um crime perpetrado há décadas, em outro tempo da vida do indivíduo. Cria-se uma consequência penal perpétua, que é contrária à Constituição Federal.

Noutro giro, a eternização de consequências jurídicas propiciada por construção jurisprudencial fere de morte a Dignidade Humana, já que atribui uma estigmatização insuperável à pessoa submetida a uma sentença penal condenatória.

Destarte, vive-se num contexto no qual produziríamos empiricamente “marginais perpétuos” em série, já que além de contarmos com uma das maiores populações carcerárias do mundo, atribuímos aos milhares e irrevogavelmente a subqualificação de marginal (criminoso), impedindo-os de superar os danos oriundos de uma conduta típica passada (distante) e de se restabelecer
enquanto cidadão pleno.

Impõe-se uma delimitação temporal para a vigência de consequências oriundas dos antecedentes criminais do sujeito, sob pena de mantença de um instituto claramente inconstitucional e desumano.

Em uma análise sistemática da ordem jurídica, denota-se que é possível estipular um prazo razoável, utilizando-se de analogia em relação ao único lapso fixado para um dispositivo semelhante aos antecedentes, qual seja, a reincidência. Sugere-se, por conseguinte, que, por interpretação analógica in bonam partem, utilize-se o prazo de 5 (cinco) anos previsto no art. 64, inciso I, do Código Penal, para a limitação temporal de resultados provenientes dos maus antecedentes.

Nesse sentido, também é o entendimento de Saulo de Carvalho:

Note-se que os antecedentes, além de fornecer uma graduação à pena decorrente do histórico de vida do acusado, representam um gravame penalógico eternizado, em total afronta aos princípios constitucionais referidos (princípio da racionalidade e da humanidade das penas). Assim, cremos urgente instituir sua temporalidade, fixando um prazo determinado para a produção dos efeitos impostos pela lei penal. O recurso à analogia permite-nos limitar o prazo de incidência dos antecedentes no marco dos cinco anos – delimitação temporal da reincidência –, visto ser a única orientação permitida pela sistemática do Código Penal2.

Os julgados que adotam entendimento contrário, ou seja, que se posicionaram a favor da consideração perene dos antecedentes, se mostram insuficientes num contexto em que as garantias constitucionais devem ser tomadas como diretrizes precípuas de aplicação normativa, além de não apresentarem fundamentação teórica suficiente. Senão vejamos excerto do RHC 106.814/MS:

Guilherme de Souza Nucci, ao discorrer sobre a definição de maus antecedentes anota que a corrente mais acertada, à qual me filio, é a de que devem ser consideradas como antecedentes, para fins de fixação da pena, “apenas as condenações com trânsito em julgado que não são aptas a gerar reincidência”.

Nessa esteira, o que se vê é que, mediante sustentação doutrinária, adotou-se uma argumentação extremamente expansiva que desconsidera as limitações que devem incidir sobre o Direito Penal. Ora, considerar como maus antecedentes tudo o que não é mais abarcado pela reincidência, de maneira abrangente, é fugir às estreitas fronteiras traçadas pela Carta Magna, ressaltando-se que a interpretação em relação à punibilidade deve ser sempre restritiva.

Ademais, a hermenêutica da aplicação dos antecedentes de forma ilimitada não apresenta um mínimo de razoabilidade, já que esta deve ser realizada se atentando valores constitucionais vigentes, sobretudo àquele já citado, de que as penas não devem ter caráter perpétuo. Se a própria reincidência que se baseia em condenações transitadas em julgado antes da perpetração do delito, portanto, dotadas de segurança jurídica, apresenta limitações temporárias expressas, não se vislumbra o porquê de se conceder jurisprudencialmente tamanhas irrestrições aos antecedentes.

Data venia, no Brasil, as consequências primárias e secundárias da pena não podem ter efeitos perpétuos, tendo em vista determinação e análise ampla do art. 5o, XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal. Ademais, o direito penal brasileiro sempre prestigiou os institutos de limitação no tempo, como a decadência, a prescrição, a reabilitação, a perempção, a conciliação civil nos Juizados Especiais, a improrrogabilidade dos prazos, etc., além de valorizar, a cada dia, todas as formas de ressociabilização e recuperação do condenado.

Notas _____________________________________________________________________

1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral / José Henrique Pierangeli. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 673.
2 CARVALHO, Amilton Bueno de, Carvalho, Saulo de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 52.