Mandado de segurança para exame de atos judiciais

30 de abril de 2009

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O escopo do presente trabalho não deixa de levar em consideração que se cuida de apreciar a questão referente ao confronto entre a técnica processual e a efetividade do ordenamento jurídico como um sistema harmônico e complexo.

Isso porque, como sabido, a questão trazida a exame não deixa de envolver elementos básicos da teoria geral do processo, posto que, em primeiro lugar, o que se deve ponderar é a ocorrência, ou não, de possibilidade de reexame de uma decisão judicial.

Assim, em sede inicial, a primeira preocupação que se deve ter é a de identificação do objeto que se analisa no presente trabalho, posto que, como se sabe, e tal resta ensinado por balizada doutrina, os atos judiciais se distinguem dos atos das partes e podem ser divididos em atos processuais materiais e atos decisórios, ou provimentos.[1]

Com relação aos primeiros, a parte prejudicada deverá suscitar que o juiz se manifeste em sede decisória a respeito dos mesmos, para que, então, se tenha que o ato material acabe por se converter em ato decisório (provimento), a fim de que, então, se possa impugná-lo mediante o recurso adequado (como igualmente é sabido, embora exista divergência acerca do caráter de direito fundamental do instituto, o duplo grau de jurisdição, ainda que implicitamente, está previsto na Constituição Federal[2]).

Diante disso, tem-se que, por uma doutrina mais tradicional, a forma de impugnação de um ato judicial, mormente se cuidar de um provimento, será a interposição de uma peça recursal que seja adequada àquela situação.

Reforça tal entendimento, sob um prisma eminentemente técnico-processual, a constatação segundo a qual, em sendo o mandado de segurança uma ação autônoma de conhecimento, com rito especial previsto pela Lei no 1.533/51, o mesmo se sujeita ao preenchimento de todas as condições da ação e pressupostos processuais para que seja viável o exame de seu mérito.

Assim, para que se torne possível a impetração de um mandado de segurança, devem se fazer presentes as condições da ação, dentre as quais se inclui o interesse de agir, sendo certo que tal interesse, como destacado por copiosa doutrina, tem sido entendido como decorrente da conjunção de dois requisitos, a saber: a necessidade (enquanto utilidade) e a adequação.[3]

Daí, se houver recurso adequado para a impugnação de um determinado ato judicial em respeito a esses dogmas técnicos, parece inescusável que não haveria necessidade de impetração de uma ação de mandado de segurança, a qual, inclusive, não seria adequada para tanto, de modo que haveria falta de interesse de agir a viabilizar o exame do meritum causae (a ação mandamental estaria fadada, nessas condições, a ser julgada extinta, sem o julgamento de seu mérito, por força da norma contida no artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil).

Outro dado a se considerar é o de que a própria lei de regência do procedimento, em sede de mandado de segurança, a Lei no 1.533/51, foi expressa em consignar, na sua norma contida no artigo 5o, inciso II, a vedação da possibilidade de concessão de segurança quando se cuidar de situação em que o ato judicial (na forma de provimento jurisdicional ante o destacado nas linhas acima) puder ser reexaminado por recurso previsto nas leis processuais ou por correição.

Atenta a essa gama de fatores, a jurisprudência pátria não tardou a cristalizar o entendimento de que, em regra, não seria possível a impetração de mandado de segurança contra ato ilegal perpetrado por Magistrado, o que somente seria possível acaso se cuidasse de ato não passível de reexame por recurso (remédio processual típico ao reexame de provimentos) ou correição (atividade aferidora de desvios funcionais do magistrado, se os seus atos se derem em contrariedade aos termos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional — Loman ou Lei Complementar no 35/79 [4]).

Tanto assim que o Supremo Tribunal Federal cuidou a respeito do tema, acabando por editar a sua Súmula 267, que tem como enunciado, em linhas gerais, o óbice ao cabimento de mandado de segurança acaso se cuide de ato judicial passível de reexame por recurso ou correição.

Mas, por outro lado, o que não se pode perder de vista é o fato de que o mandado de segurança, não obstante assegurado por norma legal ordinária (a norma contida no artigo 1o da referida Lei no 1.533/51), encontra fundamentação em norma de índole superior, qual seja aquela contida no artigo 5o, inciso LXIX, da Carta Política de 5/10/88.

E, sob o pálio da norma constitucional, tem-se que será cabível o mandado de segurança toda vez que uma pessoa residente e domiciliada no País (artigo 5o, caput, do texto constitucional em comento), tiver direito líquido e certo (aquele que pode ser documentalmente comprovado, tornando desnecessária a produção de prova oral[5]) violado por ato ilegal (coator), de autoridade pública ou seu agente.

Desta feita, percebe-se que o texto constitucional não limita a extensão da proteção, prevendo o conhecido writ of mandamus apenas e tão somente em face do administrador público, o que, deste modo, não impede que se utilize a expressão autoridade pública, numa acepção mais ampla, inclusive, abrangendo outros agentes políticos do Estado, como, verbi gratia, os juízes de direito e demais membros do Poder Judiciário.

E, dentro desta ordem de ideias, tendo em vista que a Constituição Federal da República Federativa do Brasil acolheu o sistema da pirâmide normativa — pelo qual o que confere validade a uma norma jurídica é justamente, outra norma jurídica que lhe é superior, estando ambas em conformidade[6] —, se o texto constitucional (o qual somente não seria superior ao conceito de norma hipotética fundamental) não limita a extensão da liberdade pública, não poderia a lei inferior (no caso, a Lei no 1.533/51, lei federal infraconstitucional) restringir-lhe a eficácia e o alcance, sob pena de se tê-la como lei não recepcionada pela ordem constitucional.

Mas a questão não é tão simples como delineado acima, em mera lógica formal, posto que, igualmente, se tem como outra garantia constitucional o respeito ao devido processo legal (artigo 5o, inciso LIV, da Constituição Federal), ou seja, garantia constitucional pela qual as pessoas residentes e domiciliadas no território nacional têm direito a ser processadas nos limites das normas processuais que disciplinam os ritos.

Ora, tem-se, desta feita, outra norma constitucional, portanto de mesma hierarquia, promulgada na mesma data e que não pode ser tida como especial ou geral em relação àquela que garante a impetração do mandado de segurança contra atos ilegais de autoridade pública e seus agentes, violando direitos líquidos e certos, trazendo disciplina aparentemente antagônica a esta, eis que pregaria o respeito às formas processuais estabelecidas.

Tudo isso sem prejuízo do próprio princípio do acesso ao Poder Judiciário, previsto pela norma contida no artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal, que garante a todos o acesso ao Poder Judiciário, em casos de lesão ou ameaça de lesão a direito.

Ora, tal acesso não deve ser tido como meramente formal, mas, ao contrário, deve ser tido como o mais amplo possível, e não apenas no que tange ao ingresso da demanda, como também no que se refere à efetividade da máquina judiciária em conseguir deferir tempestivamente as tutelas pretendidas, garantia constitucional que poderia ser afrontada, do ponto de vista prático, com a vulgarização de mandados de segurança, irregularmente empregados como sucedâneos de recursos, de modo a que se pretenda, em toda e qualquer situação, obter-se liminares para efeitos suspensivos recursais sequer imaginados pelo legislador pátrio, o que não se pode conceber, por razões óbvias.

Assim, verifica-se, sem grande dificuldade, que os principais parâmetros para a solução de conflito aparente entre normas não podem resolver a questão suscitada, ou seja, não há uma norma que seja inferior ou superior à outra (ambas são incisos do artigo 5o da mesma Constituição Federal), e, diante disso, tem-se que ambas foram promulgadas na mesma data, qual seja, 5/10/88 (logo, igualmente, não se resolve tal conflito aparente, ou antinomia[7], pelo princípio segundo o qual lei posterior revoga lei anterior).

Por fim, ambas acabam, neste contexto, se referindo ao processamento de uma ação de conhecimento (no caso, o mandado de segurança), de modo que, igualmente não se pode aduzir que uma seja geral, ou mesmo especial, em relação à outra, o que impede a resolução da polêmica pela regra segundo a qual lei especial revoga, no particular, a lei geral.

Em situações como esta o que se tem é que o conflito somente será resolvido pela aplicação do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, eis que necessário será o sacrifício de um dos dois princípios pela aplicação da lógica do razoável, enquanto critério de consecução da justiça.[8]

E isso ganha maior relevância, se for constatado que a própria norma contida no artigo 5o, inciso XXXV, da mesma Constituição Federal traz, como outra liberdade pública, a garantia do direito de ação, como aduzido acima, na medida em que se estabelece que não se excluirá de apreciação pelo Poder Judiciário, lesão ou ameaça de lesão a direito.

Desta feita, estando o juiz (em sentido lato) adstrito ao papel constitucional de prestar a jurisdição, ou seja, de analisar lesões ou ameaças de lesões a direitos, parece mais consentâneo com a garantia de tal liberdade pública, o entendimento pelo qual se deva privilegiar a impetração de mandados de segurança contra atos judiciais, ainda que em detrimento a cânones de direito processual, para preservar a intenção do legislador constituinte, de facilitar a defesa dos particulares contra atos ilegais de autoridades públicas, o que atenderia ao princípio da proporcionalidade a que se fez referência acima.

Mas isso não pode ser tido e vulgarizado como uma regra geral, de modo que possa ser entendida como uma verdadeira válvula de emperramento do aparato judicial estatal, permitindo-se, de forma quase que automática, concessões de medidas liminares, sustando-se a eficácia de decisões judiciais, sistematicamente, sobretudo contra legem (o que ocorreria acaso se pretendesse a concessão de uma medida liminar, desta natureza, em mandado de segurança contra ato judicial impugnável por recurso em relação ao qual não seria previsto efeito suspensivo).

Parece óbvio, no entanto, que como o que se tem é uma análise de razoabilidade, não se pode pretender o estabelecimento de uma regra exata, com precisão matemática, devendo-se analisar caso a caso as situações em que se admitiria a aplicação de tal proporcionalidade.

Isso ganha denotada importância, sobretudo em momentos próximos aos pleitos eleitorais, em matéria de direito processual eleitoral, no qual, pelas peculiaridades que revestem a matéria, os processos devem ser resolvidos de forma célere, sob pena de se ter acarretado danos irreparáveis.

Ora, sabe-se que as questões e os incidentes surgidos no bojo de uma campanha eleitoral devem ser julgados ainda dentro do certame, posto que, caso contrário, se não houver celeridade, o efeito do tempo será altamente deletério à garantia de direitos líquidos e certos em pauta.

Nessas condições, atento aos parâmetros destacados acima, se a interposição de um recurso não se fizer acompanhar de efeito suspensivo, ou se tal efeito suspensivo for provocar graves danos ao interesse da parte (o que, torna-se a insistir, deve ser analisado casuisticamente, da forma mais parcimoniosa possível), e, se a Instância Superior puder constatar ab initio a ilegalidade do ato do Juiz Eleitoral, ter-se-iam como presentes o fumus boni juris e o periculum in mora, o que implicaria na própria necessidade de acolhimento e análise de um mandado de segurança impetrado pelo interessado, ainda que contra ato judicial e não obstante o teor da orientação destacada na supramencionada Súmula 267 STF.

Tal solução encontraria respaldo inclusive no poder geral de cautela do Juiz, para a análise das chamadas tutelas de urgência e de segurança[9], pela douta Superior Instância, evitando que, por questões técnicas e burocráticas, às vezes destituídas de maior relevância, um direito líquido e certo, constitucionalmente assegurado, acabe se tornando inefetivo, o que não se pode conceber, por razões óbvias.

Diante disso, o que se conclui, sem maiores dificuldades, é que, muito embora, em regra, não se possa utilizar o writ of mandamus, como sucedâneo do recurso ou ato correicional, de forma indiscriminada (se for constatado abuso doloso e intencional, a parte não estará livre de ser responsabilizada com a reprimenda destinada aos litigantes de má-fé, nos termos dos artigos 17, 18 e seus consectários do Código de Processo Civil), o que deve ser feito com parcimônia e responsabilidade, em certas situações de risco autorizadoras da proporcionalidade, notadamente quando patente o fumus boni juris (ou seja, quando a ilegalidade for patente, constatada ictu oculi) e, sobretudo, quando não se puder aguardar longos e complexos trâmites recursais, não resta vedada, ou ao menos impossível, a busca da tutela pela via do mandado de segurança, liberdade pública assegurada pela ordem constitucional vigente.

Talvez, em observância a todos esses fatores, não têm sido incomuns decisões do próprio Tribunal Superior Eleitoral, em variadas situações, admitindo a impetração de mandados de segurança contra atos judiciais, em sede de Direito eleitoral.

Neste sentido, à guisa de mera exemplificação, de se pedir vênia para destacar, dentre inúmeros outros, os seguintes julgados:

MANDADO DE SEGURANÇA – ATO DO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE PERNAMBUCO QUE AFASTOU O IMPETRANTE DAS FUNÇÕES DE JUIZ DA 41a ZONA ELEITORAL DE CARUARU – ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA INAMOVIBILIDADE DE QUE CUIDA O ART. 121, § 1o, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – Segundo o disposto no parágrafo único do art. 32 do Código Eleitoral, onde houver mais de uma Vara, o Tribunal Regional Eleitoral designará aquela ou aquelas a quem incumbe o serviço eleitoral, não se vislumbrando no ato impugnado, outrossim, ofensa à Constituição.[10]

Como também:

MANDADO DE SEGURANÇA – EMANCIPAÇÃO DE DISTRITO – SENTIDO DA EXPRESSÃO: “…CONSULTA PRÉVIA, MEDIANTE PLEBIS-CITO, ÀS POPULAÇÕES DIRETAMENTE INTERESSADAS”, DO ART. 18, § 4o, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ELEITORES APTOS A VOTAR – É pacífico o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, no sentido de que estão aptos a votar, no plebiscito para criação de Município, todos os eleitores inscritos no distrito emancipando, que se expressam como legítimos representantes da população diretamente interessada. Assim, estando o eleitor vinculado à Seção Eleitoral indicada em seu título eleitoral (art. 46, § 3o, do CE), salvo caso de transferência, ainda que resida fora do Distrito, pode votar na consulta plebiscitária para a sua emancipação, como em qualquer outra eleição. Concedida segurança para cassar a decisão do TRE, e restabelecer julgado do Juiz Eleitoral, que considerou não atingido o quorum legal para a emancipação do Distrito. Confirmada a liminar. Precedentes da Corte[11].

E, ainda, no mesmo sentido:

RECURSO ELEITORAL – PLEBISCITO DE EMANCIPAÇÃO MUNICIPAL – A admissibilidade de mandado de segurança não exclui o cabimento de recurso especial contra decisões de Tribunal Regional Eleitoral em matéria plebiscitária, que se afigura, ao contrário, corolário imperativo da Constituição e do Código Eleitoral. A alusão, no art. 22, inciso II, do Código, a recurso especial, “inclusive os que versarem matéria administrativa”, faz induvidosa que a esfera de admissibilidade do apelo não tem por critério de demarcação a natureza da decisão a quo, mas independentemente dela, a existência de questão federal, nos termos do art. 276 do mesmo diploma. A Constituição, por sua vez, contém cláusula restritiva da recorribilidade das decisões jurisdicionais do Tribunal Regional Eleitoral, como, também, ao contrário, contempla expressa previsão de recurso contra decisões regionais que, frequentemente, serão despidas de caráter jurisdicional (CF, art. 121, § 4o, inciso III). Insurgência contra jurisprudência da Corte para, no caso, em tese, admitir o recurso especial. Recurso não conhecido, todavia, no caso concreto[12].

O próprio Supremo Tribunal Federal, admite, em vários arestos, que a regra originária da Súmula 267, vem sendo abrandada em casos excepcionais. Neste sentido, verbi gratia de se consignar o trecho da decisão que se segue:

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL – PETIÇÃO – OBJETO – DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI — INADMISSIBILIDADE: LEGITIMIDADE ATIVA (ART. 103, INCISOS I A IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL) – MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO JUDICIAL – SÚMULA 267 – 1. Diz o enunciado 267 da Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição. 2. No caso, cabia, em tese, Agravo Regimental contra a decisão judicial de Ministro do STF, que negou seguimento à Petição na qual o peticionário pleiteava a declaração, em tese, de inconstitucionalidade de Lei. E não foi interposto. 3. É certo que esta Corte, abrandando a rigidez da Súmula 267, tem admitido Mandado de Segurança quando, do ato impugnado, puder resultar dano irreparável, desde logo cabalmente demonstrado. 4. Não é, porém, o caso dos autos, já que manifesta a inexistência de direito do peticionário de submeter ao controle de constitucionalidade do STF, mediante simples petição, com esse único objeto, a impugnação do artigo de Lei, nela focalizado. 5. Falta possibilidade jurídica àquele pedido, sendo, ademais, o impetrante, parte ilegítima para propositura de ação direta de inconstitucionalidade de Lei (art. 103, incisos I a IX, da Constituição Federal). 6. Seguimento negado, pelo Relator, a Mandado de Segurança impetrado pelo peticionário contra aquela decisão, prejudicado o requerimento de medida liminar. (STF — AGRMS 22.623 — SP — TP — Rel. Min. Sydney Sanches — DJU 7.3.1997)[13].

Com igual orientação:

MANDADO DE SEGURANÇA — ATO JUDICIAL — Decisão de juiz que, após receber a apelação de sentença por ele proferida, inova no processo, determinando, em ação de execução, baixa na hipoteca do imóvel. Alegação de dano irreparável acolhida, no caso concreto. CPC, arts. 521, 463 e 515. Súmulas 279, 282 e 356. (RJ 177/96)[14].

A questão que se analisa, no entanto, não é uníssona, mansa e pacífica, em sede doutrinária, e, muito menos jurisprudencial, como se pode observar acima, devendo o intérprete se revestir da máxima cautela em tais ponderações, buscando-se, no caso concreto, a interpretação que melhor propicie o acesso às garantias constitucionalmente asseguradas, que não podem se tornar letras mortas, sob pena de criação de perigosos precedentes judiciais.

E, muito embora, a grande relevância esteja concentrada, como examinado acima, em pleitos de natureza eleitoral, campo em que são mais propícias e relevantes as discussões ora encetadas, isso não exaure a possibilidade de aplicação e incidência do mandado de segurança em face de atos judiciais amparáveis por recursos, posto que outros campos de atuação processual seriam aptos a tornarem relevantes essa discussão.

Não é preciso, por exemplo, muito esforço para se conceber que nem todos os atos do Juiz no processo penal, embora a grande maioria se incline nesta orientação, possam redundar em atos de privação do direito de ir e vir (jus ambulandi) do indivíduo.

Ora, isso resta patente em sede de questões cíveis que sejam pertinentes e correlatas ao processo crime, como, por exemplo, numa situação de perdimento de bens, ou mesmo num indeferimento de guarda ou depósito de um bem apreendido.

Numa situação como essa, pareceria exótica a impetração de um habeas corpus para reexame da decisão, e, não obstante, a mesma até pudesse ser tida como recorrível acaso não fosse concedido o efeito suspensivo (no caso da perda do bem), ou até mesmo um efeito ativo (no que tange ao exemplo do depósito) a tais recursos, a potencialidade de ocorrência de danos seria patente (pense num carro do ano apreendido que poderia ficar aguardando a solução da pendência por anos, em um pátio, sem cobertura, sujeito a uma série de intempéries, dilapidações e danificações, sem contar a própria possibilidade do mesmo modelo de veículo ser superado pela moda ou pela tecnologia vigentes).

A questão, inclusive, não é nova, e são vários os precedentes judiciais que podem ser destacados em relação ao tema. Neste sentido, de se pedir vênia, para transcrever, dentre outros, os seguintes arestos que poderiam ser colacionados:

MANDADO DE SEGURANÇA – APREENSÃO DE VEÍCULO – PEDIDO DE LIBERAÇÃO – AUTORIDADE JUDICIAL QUE DEIXA DE EXAMINAR A LEGITIMIDADE DO ATO CONSTRITIVO – INEXISTÊNCIA DE ILÍCITO PENAL – SEGURANÇA CONCEDIDA – A recusa em analisar pedido de liberação de veículo que se encontra apreendido, fere direito líquido e certo do impetrante, de acesso ao Judiciário e de não ser privado de seu bem sem o devido processo legal[15].

Com igual teor:

FRAUDE PENAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ATO JUDICIAL. DANO IRREPARÁVEL – Mandado de Segurança. Impetração contra ato judicial. Apreensão de veículo determinada por juiz criminal, no exercício de plantão. Inocorrência de fato típico. Hipótese de lide civil. Inocorrência, outrossim, dos pressupostos do processo cautelar: ponderabilidade jurídica e risco de lesão irreparável. A alegação de inexecução de contrato de compra e venda de veículo consistente na falta de pagamento de parte do preço convencionado, não tipifica fraude penal nem atinge direito de terceiro adquirente de boa fé. Segurança concedida[16].

Diante de toda essa gama de fatores a serem considerados é que se tem por viável que, torne-se a insistir, com muita parcimônia, se passe a reinterpretar a vetusta orientação pretoriana em relação ao tema, não obstante se cuide de matéria sumulada.

Referências Bibliográficas__________________

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. “Introdução ao Estudo do Direito”. São Paulo: Atlas, 1988.

FREITAS, Vladimir Passos de. “Corregedorias do Poder Judiciário”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

FUX, Luiz. “Tutela de Evidência, Tutela de Segurança”. São Paulo: Saraiva, 2001.

GRECO FILHO, Vicente. “Curso de Direito Processual Civil Brasileiro”, São Paulo: Saraiva, 2002. vol.I

GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos Araújo. “Teoria Geral do Processo”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

KELSEN, Hans. “Teoria Pura do Direito”. Lisboa: Calouste Gubenkian, 1988.

LAFER, Celso. “A Reconstrução dos Direitos Humanos”. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

NERY JUNIOR. Nelson. “Princípios do Processo Civil na Consti­tuição Federal”. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. “Constituição de 1988 e o Processo”. São Paulo: Saraiva, 1989.

 



[1] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos Araújo. “Teoria Geral do Processo”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 102.

[2] NERY JUNIOR, Nelson. “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p.278.

[3] GRECO FILHO, Vicente. “Curso de Direito Processual Civil Brasileiro”, vol.I, São Paulo: Saraiva, 2002. p.167.

[4] FREITAS, Vladimir. Passos de. Corregedorias do Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.18.

[5] TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. “Constituição de 1.988 e o Processo”. São Paulo: Saraiva, 1989. p.59.

[6] KELSEN, Hans. “Teoria Pura do Direito”. Lisboa: Calouste Gubenkian, 1988. p. 136.

[7] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. “Introdução ao Estudo do Direito”. São Paulo: Atlas, 1988. p.123.

[8] LAFER, Celso. “A Reconstrução dos Direitos Humanos”. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.39.

[9] FUX, Luiz. “Tutela de Evidência, Tutela de Segurança”. São Paulo: Saraiva, 2001. p.15.

[10] TSE – MS 2.364 – PE – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – DJU 6/12/96.

[11] TSE – MS 1.511 – DF – Classe 2a – Rel. Min. José Cândido – DJU 5/6/92.

[12] TSE – Rec. 9.522- GO – Classe 4a – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 10/8/92.

[13] STF – AGRMS 22.623 – SP – TP – Rel. Min. Sydney Sanches – DJU 7/3/97.

[14] STF – RE 100.691-9 – AL – 1a T. – Rel. Min. Néri da Silveira – DJU 6/3/92.

[15] TJMS – MS – Classe B – I – N. 56.139-5 – Ponta Porã – 2a S.C – Rel. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte – J. 24/11/97.

[16] TARS – MSE 189.016.454 – 3a CCiv. – Rel. Juiz Ivo Gabriel Da Cunha – J. 19/4/89.