Marcus Vinicius Furtado, defensor da liberdade e da ética

23 de agosto de 2013

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Marcus ViniciusReforma política, estrutura do Poder Judiciário, mudanças nos cursos de Direito, conquistas recentes e projetos futuros da OAB Nacional são alguns dos temas abordados nesta entrevista com o atual presidente da entidade que congrega mais
de 750 mil advogados em todo o País.

Marcus Vinicius Furtado é firme em suas respostas. Não titubeia e encanta por sua articulação. Não poderia ser diferente para esse advogado militante, que superou dificuldades pessoais, desenhou conquistas e, hoje, preside a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Nacional).

Filho de um escrivão judiciário e de uma professora primária, o maranhense Marcus Vinicius nasceu na cidade de Paraibano. Ele perdeu o pai quando tinha apenas quatro anos de idade e, aos 11, mudou-se para Teresina (PI), onde seguiu com seus estudos como aplicado aluno. Formou-se pela Universidade Federal do Piauí (turma de 1993), fez pós-graduação pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutorado em Direito Processual pela Universidade de Salamanca, Espanha. Em janeiro deste ano, Marcus Vinicius venceu as eleições para a presidência da OAB Nacional com 64 votos dos conselheiros federais e comandará a entidade pelos próximos três anos.

À Revista Justiça & Cidadania, ele fala abertamente o que espera da postura da entidade que preside e de seus congregados, opina sobre as recentes manifestações públicas que agitaram todo o País e dá seu amplo parecer sobre a crise política do atual governo, apresentando o anteprojeto de reforma que a OAB defende, denominado “Eleições Limpas”.

Justiça & Cidadania – O senhor está completando o primeiro semestre de seu mandato. Quais desafios e conquistas foram obtidos até o presente momento?

Marcus Vinicius Furtado – Foi, sem dúvida, um semestre intenso. Costumo brincar dizendo que o tempo está passando rápido demais. Temos muitas vitórias e conquistas a registrar nesse período e outros tantos desafios pela frente, naquilo que chamamos, desde o início, de gestão compartilhada. No plano do fortalecimento da advocacia, posso destacar a campanha em defesa dos honorários e a instituição da Ouvidoria dos Honorários, reforçada pela criação da Procuradoria Nacional das Prerrogativas, entre outros importantes avanços. Temos, também, avançado na questão do Processo Eletrônico, o PJe, uma inovação que não podemos ignorar e que está levando a OAB a instituir núcleos de inclusão digital para advogados de todo o País, especialmente os que trabalham em comarcas mais distantes e ainda se ressentem da falta de telefonia em banda larga. Tivemos, também, a aprovação, na Câmara dos Deputados, do projeto de lei que institui os honorários da advocacia trabalhista, e a alteração do parecer da Advocacia Geral da União no sentido de que as verbas de honorários sejam pagas aos advogados públicos. Sem esquecer, claro, da histórica decisão do Supremo Tribunal determinando o pagamento dos precatórios devidos. No momento, estamos lutando pela aprovação de lei para incluir os serviços de escritórios de advocacia no sistema do Simples Nacional, que já passou no plenário do Senado. Essa mudança estabelecerá um regramento jurídico, alcançando milhares de advogados que ainda se encontram na informalidade.

JC – Qual é o significado do slogan de campanha: “OAB Independente, Advogado Valorizado”?

MV – Ao assumir o cargo, tive a oportunidade de me dirigir aos advogados militantes como sendo os nossos “Cíceros” da labuta diária. O slogan decorre justamente do entendimento que temos da advocacia nos dias de hoje, um universo de mais de 750 mil profissionais que esperam uma atuação efetiva de sua entidade representativa em defesa de seus direitos. Para que possamos nos aprofundar na realidade da advocacia, cujo perfil tem se alterado radicalmente nos últimos anos a partir da ampliação de oferta de cursos jurídicos, do ingresso de novos profissionais no mercado e das demandas de uma sociedade também em transformação, precisamos de uma OAB independente e forte.

JC – O senhor tem defendido que a OAB deve se manifestar como protagonista de importantes causas sociais, e não apenas como mera coadjuvante. Quais causas sociais são prioritárias no atual momento do País?

MV – Na verdade, eu defendo que a OAB seja protagonista de causas, e não comentarista de casos. Isto porque, agindo dessa maneira, acredito que está de acordo com o pensamento da advocacia e com sua missão institucional. A OAB deve pugnar pela justiça social, pelo Estado Democrático de Direito e pela Constituição Federal. Hoje, temos um quadro social em ebulição, como se constatou nas manifestações que atingiram os principais centros urbanos do País. Que causa melhor do que essa? A grande mudança que a população está cobrando começa, justamente, no nosso modelo político-eleitoral. Por isso, essa se tornou a bandeira da OAB para mudar a cara do Brasil nos próximos anos.

JC – Quais são as outras bandeiras defendidas em campanha e ora colocadas em prática?

MV – Todas as ações da atual gestão estão em completa sintonia com o nosso programa de trabalho, que, aliás, disse no primeiro dia que seria a nossa “Bíblia”. Constituímos comissões que estão desenvolvendo trabalhos que vão desde a valorização da mulher advogada até a causa indígena, por sinal, presidida por uma advogada de etnia wapichana. A OAB, historicamente, desempenha um papel vigilante diante do quadro social do País, do aumento da violência e da criminalidade, do descuido ético dos governantes, das violações aos direitos humanos e ao meio ambiente. Agimos como consciência crítica, dando voz à sociedade ao denunciar todas as formas de opressão e violência que atentam contra a cidadania.

JC – Em seu discurso de posse, o senhor afirmou que pretende estreitar as relações com os poderes públicos. Qual vem sendo a estratégia para colocar essa ação em prática?

MV – Nos inserimos na agenda nacional dispostos a manter um diálogo de alto nível com os poderes, e assim tem sido. Independentemente da reforma política e dos projetos de interesse da advocacia no Congresso Nacional, temos construído uma agenda bastante positiva com a classe política e avançado sobre temas que interessam a toda a sociedade. Mas o melhor exemplo desse diálogo deu-se em junho, quando tivemos a oportunidade de alertar, durante audiência com a Presidente Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, para os problemas que poderiam advir da proposta de convocar uma Constituinte exclusiva como forma de debelar a crise. Como resultado, o governo retirou o assunto de pauta.

JC – Existe, também, uma preocupação muito grande desta gestão em evitar ao máximo a “personalização” da entidade. De que modo alinhar a atuação das Seccionais da OAB, uma vez que sabemos que existem algumas unidades da Federação cuja Seccional é extremamente atuante, participativa e frequentemente consultada pela mídia?

MV – Os presidentes de Seccionais têm ampla liberdade para expressar seus pontos de vista a respeito de temas que lhes são submetidos, e não poderia ser diferente. Somos uma entidade democrática, visceralmente comprometida com a liberdade de expressão e apaixonada pelo debate.

JC – Outro ponto defendido pela OAB está na liberdade de expressão plena e no fortalecimento da democracia no País. Recentemente, tivemos episódios em que a liberdade de expressão foi exercitada por meio das novas tecnologias de redes sociais – suplantando até mesmo gigantes da mídia. O senhor acredita que esse é um bom caminho para a defesa da liberdade e o exercício pleno da democracia?

MV – Esse assunto está na pauta do dia. Para a OAB, o direito de expressão contido na Constituição precisa ser exercitado em todos os meios de comunicação disponíveis, inclusive em períodos de eleições. Aliás, isso faz parte do anteprojeto que estamos apresentando para a reforma política. Por outro lado, reconhece que o direito de informar e de se expressar, em uma democracia, pressupõe responsabilidade de seus protagonistas. Ninguém, por exemplo, pode gritar “fogo!” dentro de um recinto fechado e achar que o artigo 5o da Constituição lhe dá esse direito. Por essa razão, constituí recentemente uma Comissão de Liberdade de Expressão, que está sendo presidida por nada menos do que o
ex-ministro Carlos Ayres Britto. É um tema palpitante.

JC – Qual a opinião da OAB Nacional sobre as recentes manifestações públicas que pressionaram decisões do Legislativo – como a votação que derrubou a PEC 37, por exemplo?

MV – Ninguém, em sã consciência, pode ignorar o que está acontecendo nas ruas. Não se trata de algo meramente espontâneo, como algumas pessoas a princípio imaginaram. Isso reflete o acúmulo de anos de insatisfação, de frustrações e de reivindicações não atendidas. O fato de ter se iniciado com o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus tirou da inércia uma multidão de insatisfeitos com outros serviços públicos. Diante do esforço do governo em erguer estádios milionários para a Copa do Mundo, os cidadãos viram que, quando existe vontade política, tudo é possível. Então, por que não dotar a administração pública do mesmo padrão? Essa é a grande lição.

JC – O senhor se declara um defensor da reforma política no País. De novo, por força da população, a Presidente Dilma Rousseff está tratando desse tema com mais urgência. O plebiscito é mesmo o melhor caminho para isso? 

MV – A OAB não se opõe a nenhum tipo de consulta popular, mas entende que o plebiscito, neste momento, ao invés de ajudar, pode se transformar em uma cortina de fumaça diante da crise real, que é a de legitimidade das instituições. O momento é propício a uma reforma política naquilo que é essencial para que afastemos de uma vez por todas o problema da corrupção eleitoral. Temos de atacar a causa, que é o financiamento de campanhas por empresas. Está provado que o sistema eleitoral está falido. Por isso, estamos recolhendo assinaturas para o anteprojeto de lei de iniciativa popular que prevê a instituição do financiamento democrático de campanhas, vedando e criminalizando a prática do caixa dois. Nessa luta, a OAB lidera um movimento que envolve mais de cem entidades representativas da sociedade civil organizada.

JC – Qual seria a reforma política ideal?

MV – O anteprojeto de reforma que a OAB defende, que denominamos “Eleições Limpas”, pode ser resumido da seguinte forma: em primeiro lugar, o voto transparente em dois turnos, ou seja, o eleitor vota inicialmente no partido e em sua lista de candidatos, e, após, escolhe o candidato de sua preferência. O primeiro turno garantiria a opção em torno de um determinado projeto, enquanto, no segundo, seria escolhido aquele em quem o eleitor confia para executá-lo. Em segundo lugar, o fim do financiamento de campanhas por empresas privadas para impedir que o poder econômico influencie o processo político. Isso vai possibilitar, também, o barateamento das campanhas, de tal modo que o atual recurso utilizado para o financiamento de partidos no Fundo Partidário seja utilizado nas campanhas eleitorais. E, em terceiro lugar, queremos garantir a liberdade de expressão na internet.

JC – E no que diz respeito ao Poder Judiciário, o senhor acredita que seja necessário algum tipo de reforma? Como enxerga hoje os tribunais estaduais quando observados sob o prisma da independência econômica e administrativa?

MV – O Judiciário ainda padece de um sério problema estrutural. A partir da Constituição de 1988, a demanda por Justiça cresceu, mas os tribunais, infelizmente, não receberam a atenção que deviam e, hoje, sofrem uma crise de credibilidade perante a sociedade em razão da morosidade nas decisões. O descompasso entre o volume de processos que entram e os que são baixados é enorme. A fila, ao invés de diminuir, só cresce, prejudicando principalmente o primeiro grau, que concentra o maior volume de processos. Esse problema afeta a todos e, o que é pior, gera insatisfação e descrédito.

JC – O senhor também afirmou recentemente que “não vai admitir que o advogado seja usado como bode expiatório da morosidade do Judiciário”. Onde está a morosidade do Judiciário?

MV – Infelizmente, alguns setores do Judiciário, à falta de uma explicação razoável, jogam toda a culpa pela morosidade dos processos no trabalho de defesa dos advogados. Em vez de admitir os problemas internos, buscam meios de limitar ou mesmo acabar com os recursos. A OAB não concorda com propostas de mudanças no sistema recursal por meio de emendas à Constituição, pois entende que qualquer instrumento restritivo à tutela jurisdicional representa uma afronta às cláusulas pétreas e ao sagrado direito de defesa. Esse é o sentido de nossa crítica.

JC – Em um ano em que a Constituição Federal completa 25 anos de promulgação, gostaria de saber do senhor, que é um advogado constitucionalista, qual a sua opinião sobre a efetividade e a eficiência daquilo que está no texto da Carta, lembrando-se de que, enquanto alguns críticos apontam o alto de número de emendas sofridas, outros elogiam a prodigalidade do texto.

MV – Em junho, ao promover um seminário sobre os 25 anos da Constituição, o Conselho Federal da OAB propôs a inclusão de um novo inciso no artigo 5o da Carta Magna. Por que isso? Para assegurar o direito dos investigados, em qualquer procedimento investigatório, de apresentarem Razões assistidos por advogado. Esse gesto representa nossa crença em uma Constituição que não é apenas uma norma de Direito, mas também um projeto de nação, que deve ser defendido e semeado. Há quem diga que se trata de um texto longo, quando comparado com constituições de outros países democráticos. Já houve até quem sugerisse torná-lo mais enxuto. Contudo, penso que, com a evolução da sociedade, não mais é suficiente um texto constitucional sintético, limitado ao conteúdo das constituições de três séculos atrás. A não efetividade de diversas normas constitucionais não é motivo para a sua supressão, mas deve servir como orientação para a ação da sociedade e do Estado no sentido de seu cumprimento. É o que estamos fazendo.

JC – Em cooperação com o Ministério da Educação (MEC), a OAB pretende redefinir o marco regulatório do ensino jurídico no Brasil. Quais são os objetivos da Ordem com essa medida?

MV – Por mais de uma década, a OAB vem alertando para o risco da banalização do ensino jurídico a partir da abertura desenfreada de faculdades de Direito. Temos mais faculdades do que os Estados Unidos, para se ter uma ideia. A OAB reclamava, mas o governo, por intermédio do Ministério da Educação, fazia ouvidos moucos e continuava autorizando o funcionamento de novos cursos. Dessa vez, porém, como resultado daquilo que chamo de diálogo de alto nível, foi diferente. Nas palavras do próprio ministro da Educação, o balcão foi fechado. Decretou-se uma moratória no sistema de autorizações. E fomos além ao estabelecermos um grupo de trabalho com vistas a definir um novo marco regulatório para o ensino jurídico no Brasil. É um fato histórico. Queremos ouvir a sociedade brasileira, em especial a comunidade jurídica e em particular a comunidade acadêmica, sobre a qualidade do ensino jurídico. Ao todo, estão previstas 13 audiências estaduais, terminando com uma plenária no mês de setembro em Brasília.

JC – Isso seria um reflexo do desempenho que vem sendo obtido pelos bacharéis que prestam o Exame da Ordem?

MV – O Exame de Ordem aprova uma média de 20 mil bacharelandos por vez. Como são aplicados três vezes por ano, isso dá um número de 60 mil novos advogados. É mais que uma França de profissionais da advocacia. O Exame de Ordem cumpre papel importante, inclusive para proteger o cidadão do profissional sem qualificação. Em pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas, revelou-se que a ampla maioria dos bacharéis é favorável à sua permanência. Essa é também a opinião de professores de Direito e de diretores das boas faculdades, que não querem ser niveladas por baixo. Os cursos que primam pela qualidade aprovam quase todos os alunos e bacharéis logo na primeira submissão ao exame.

JC – Recentemente, a OAB inaugurou no Estado do Rio de Janeiro um núcleo de inclusão digital. Parece que há um direcionamento da Ordem nesse sentido, o de ampliar o número de advogados aptos a peticionar de forma on-line e a operar com o processo judicial eletrônico. Como se apresenta esse cenário na atualidade, qual é a realidade dos advogados e quais são os planos de instalação de novos núcleos como esse?

MV – Estamos realizando um grande esforço nesse sentido a partir de uma constatação: ainda é grande o número de advogados que, por motivos diversos, ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet. Somos um país continental, com realidades distintas dependendo de cada região. Mesmo em grandes cidades, há locais de acesso à telefonia de banda larga e, em outros, não. A Escola Nacional de Advocacia (ENA) está formatando um programa de inclusão digital para o fornecimento de computadores e softwares, e, em uma etapa avançada, a instalação de centros de inclusão digital em todo o País, que terão professores-monitores treinados pelas Escolas da Advocacia. Estes irão orientar e capacitar advogados, sem custos, no uso das tecnologias para o processamento eletrônico de petições. Calcula-se que haja a necessidade de instalação de 1.100 centros dessa natureza, o que se dará de forma gradual e progressiva, na medida das necessidades e dos recursos disponíveis.

JC – O senhor tem uma história pessoal de superação. Qual recado deixaria aos jovens que estão ingressando na carreira agora?

MV – Por onde ando, sempre ouço falar que o exercício da advocacia tornou-se, nos dias de hoje, cada vez mais difícil. Há quem fale em crise na advocacia, crise no ensino, crise no Direito. No entanto, prefiro tratar desses problemas como desafios, sobre os quais devemos refletir e reagir. Essa é, portanto, minha mensagem. Mas gostaria, também, de lembrar que a conduta individual do advogado se reflete na sua imagem coletiva. Isso o torna comprometido com a ética. O advogado é indispensável à administração da justiça e não deve ter nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade. Nessas relações, impõe-se o respeito mútuo. É o que diz a lei, o nosso Estatuto. Mas, para finalizar, lembro as palavras do nosso patrono, Rui Barbosa, que, falando aos jovens advogados, clamou para que no perigo das lutas nos seja dado o heroísmo da coragem, ungindo o espírito da verdade para amar o estudo, ungindo o espírito da regeneração para detestar o abuso e ungindo o espírito da obediência para guardar a lei.