Mutirão judiciário e o princípio do Juiz Natural

30 de junho de 2011

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1.  Fundamentos contra o mutirão carcerário

Um conhecido procurador de justiça do Estado da Bahia,  em entrevista recente aos órgãos de comunicação, referiu-se ao Mutirão Carcerário, afirmando que este não passa de uma ação midiática, comparando-o a uma pessoa que tem péssimos hábitos alimentares, não pratica qualquer exercício físico e, para resolver sua obesidade, faz uma lipoaspiração a cada seis meses, sendo que, no caso do mutirão, os problemas estruturais não são enfrentados e então se faz o mutirão para tentar desinchar as cadeias e presídios.

A Associação dos Magistrados do Maranhão, em 29.04.2010, outrossim, firmou o entendimento de que os mutirões carcerários, realizados sem a participação do juiz do processo de conhecimento ou da execução penal, ofende o princípio do Juiz Natural e institui “um tribunal de exceção”. Por essa razão, apresentou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Pedido de Providências n.º 00003157-59.2010.2.00.0000, destacando que aquele Colendo Conselho de Justiça já havia decidido que não se podia cogitar o afastamento dos juízes titulares das varas beneficiadas (PCA n.º 043/2005/CNJ):

“Outros juristas entendem que mesmo que os Tribunais designem magistrados para atuarem concorrentemente com o juiz natural, a ofensa ao princípio do juiz natural ainda persistirá, vez que,  no mutirão carcerário, os feitos serão encaminhados para juízes incompetentes. A competência é a medida da jurisdição e esta é intransferível, intransmissível, indelegável.”

 2.  O princípio do Juiz Natural e o Juízo de exceção

O princípio do juiz natural e a garantia de que não haverá juízo ou tribunal de exceção, encontram-se inscritos nos incisos LIII e XXXVII do art. 5° da Constituição Federal vigente.
Tem por escopo  garantir a imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal. O juiz natural é somente aquele integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias institucionais e pessoais previstas na Constituição Federal, devendo, esse princípio,  ser interpretado em sua plenitude, de forma a não só inibir a criação de Tribunais ou juízos de exceção, como também a  exigir respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e a imparcialidade do órgão julgador.

O Juiz Natural é princípio albergado, no ordenamento pátrio, desde a Constituição Política do Império do Brasil, publicada em 25 de março de 1824, em que previa em seu Título VIII – “Das disposições geraes, e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brazileiros”, extenso rol de direitos humanos fundamentais, entre eles o princípio do Juiz Natural, repetido, igualmente, por nossa 1ª Constituição Republicana, de 24 de fevereiro de 1891, que, em seu Título III – Seção II, o previa na Declaração de Direitos, assim como nas demais Cartas Republicanas que se seguiram.

Dessarte, o direito a um juiz imparcial constitui garantia fundamental na administração da Justiça num Estado Democrático de Direito, servindo de substrato para a previsão, em matéria de direito processual,  das hipóteses de impedimento e suspeição do magistrado, sempre no intuito de garantir a imparcialidade do órgão julgador.

3. O princípio da dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal alberga tal princípio no Artigo 1º. Inciso III:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – …
II – …
III – a dignidade da pessoa humana…”

Torna-se claro que foi dado a esse princípio destaque especial, na Magna Carta de 1988, pois o faz figurar no artigo primeiro, no qual lança os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Portanto, os demais princípios e garantias parecem todos ser decorrência desse super-princípio que paira acima dos demais, apresentando-se como vetor principal do Artigo 5º, no qual  estes  foram elencados e se encontram.

Nesse sentido, o direito ao Juiz Natural encontra-se ínsito no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo dele decorrente.

Vários são os juristas que conceituaram o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Alexandre de Moraes (1) entende que:

“A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”

Nelson Nery(2), de outra banda e sob outro enfoque, entende que: “É o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro.”

4.  Outros fundamentos

O Superior Tribunal de Justiça, em casos diversos, vem  decidindo  que  não considera como absoluto o princípio da identidade física do juiz, sendo que a ausência do Juiz Natural só gera nulidade do acórdão se houver violação ao contraditório e à ampla defesa.

Aquela Corte, outrossim, em outros tipos de julgados, como por exemplo, da convocação de magistrados para os Tribunais, vem entendendo que tal convocação somente se justifica em caso de excesso de trabalho, não podendo, entretanto, os juízes convocados, proferirem julgamento, mas, tão somente, auxiliar os juízes de segundo grau em suas decisões. Este o entendimento de três dos cinco magistrados que compõem a 5ª Turma daquela Corte: Min. Gilson Dipp, Min. Napoleão Maia Filho e Adilson Vieira Macabu, em julgamento não encerrado, de Habeas Corpus, em razão do pedido de vista da Ministra Laurita Vaz.

Ora, segundo a Loman, a substituição de desembargadores é permitida somente nos casos de férias ou afastamento do magistrado por mais de trinta dias, devendo o nome do magistrado convocado ser aprovado por maioria absoluta do Plenário do Tribunal ou da Corte Especial. Portanto, a convocação do juiz de primeiro grau para auxílio no segundo grau, não lhe concede jurisdição para julgar, em Corte Superior.

Portanto, conforme posicionamento do Ministro Gilson Dipp, a lei ordinária não disporá sobre convocação para auxílio,  fundada na  previsão de convocação para substituição, prevista na lei complementar nº35/1979; diploma competente para tratar da questão.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em julgado recente no qual foi reconhecida a Repercussão Geral, entendeu da seguinte forma, RE 597133/RS( pub.05.04,2011), relator Min. Ricardo Lewandowski, verbis:

“Não viola “o postulado constitucional do juiz natural o julgamento de apelação por órgão composto majoritariamente por juízes convocados, autorizado no âmbito da Justiça Federal pela Lei 9.788/199.”

Nada obstante, a questão do mutirão afasta-se um pouco da convocação de magistrados para o segundo grau, já que, na verdade, tudo se passa em primeiro grau de jurisdição. No entanto, remanesce a dúvida, vez que as demandas são atribuídas a um determinado magistrado e serão julgadas por outros.

O STJ firmou entendimento, no sentido de que não há ofensa ao Juiz Natural. Nesse sentido, a ementa do acórdão (Ag828862/PR, sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, em 23/10/2007): “Ausência de pré-questionamento…. regime de ‘mutirão’. Violação do princípio do juiz natural. Não ocorrência….”.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual vem coordenando os mutirões, por certo, tem entendimento firmado no mesmo sentido, decidindo no sentido de que não há ofensa ao princípio do Juiz Natural, em todos os procedimentos de controle administrativo.

Os argumentos daquele Conselho são bastante convincentes:

1-Os mutirões têm por escopo agilizar os processos e, para tanto, contam com o auxílio de juízes titulares e substitutos, desde que criados, através de ato da presidência do Tribunal;
2-Nestes, os juízes titulares não são afastados das demandas. Não havendo assim ofensa ao juiz natural, bem como não cria tribunal de exceção;
3- Os mutirões beneficiam os presos;
4- O Judiciário, como guardião das garantias e direitos individuais, não pode, em razão da morosidade, passar a ser o obstáculo do exercício desses direitos e garantias;
5- O direito ao Juiz Natural e a garantia contra tribunais de exceção,  não podem se erigir como impedimento a outros princípios constitucionais como a duração razoável do processo e o princípio da dignidade da pessoa humana.

5- Conclusão

Não resta dúvida de que há uma convergência, no mundo jurídico, no sentido de que o mutirão carcerário tem sido uma ação benéfica para a sociedade, para o Judiciário e especialmente para os presos.

No entanto, a análise de possível ofensa ao princípio do Juiz Natural deve passar antes pela ponderação dos princípios constitucionais envolvidos  à luz da proporcionalidade, prevalecendo o princípio de maior peso.  Ou seja, na existência de um conflito entre o princípio do Juiz Natural e o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, qual é o princípio que irá prevalecer.

Ora, não é preciso que se percorra o Ordenamento Jurídico na sua integralidade para vislumbrar que o Princípio da Dignidade Humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, em que se constitui a República Federativa do Brasil.

Ou seja, entre todos os princípios constitucionais, o princípio-vetor, isto é, o princípio que fundamenta e que serve de base para a Democracia e a partir do qual os demais serão estabelecidos é, sem dúvida, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.  Portanto, um princípio que prevalece sobre os demais.

Além disso, tenho que merece analise, nesse contexto, o princípio jurídico, importado do direito francês: “pas de nullité sans grief”, cuja tradução literal é: “não há nulidade sem prejuízo”.

Nessa esteira, não se declara nulo nenhum ato processual que não tenha resultado em prejuízo para as partes e que não haja influenciado na decisão da causa ou na apuração da verdade real, nos moldes dos artigos 563 e 566 do Código de Processo Penal.

“Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.”

“Art. 566. Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa”

A jurisprudência vem sufragando esse entendimento:

HC 148251 / GO, HABEAS CORPUS
2009/0185529-7
Relator(a) ministro GILSON DIPP (1111)
Órgão julgador
T5 – QUINTA TURMA
Data do julgamento
05/04/2011
Data da publicação/fonte
DJe 15/04/2011

Ementa
CRIMINAL HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. PRISÃO CAUTELAR. LIBERDADE PROVISÓRIA. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA.
PREJUDICIALIDADE. NULIDADE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. INTIMAÇÃO DO LAUDO DA PERÍCIA DE RECONSTITUIÇÃO DOS FATOS.
CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA.
I. A prolação de sentença condenatória prejudica a análise da alegação de vícios na segregação cautelar, apta à concessão da pretendida liberdade provisória, diante da existência de novo título a respaldar a custódia.
II. No processo penal, eventual nulidade dos atos exigem a comprovação do prejuízo, sendo aplicável à espécie o princípio do pas de nullité sans grief. No caso concreto, a defesa não se desincumbiu de demonstrar a ocorrência de prejuízo que justificasse tal nulidade.
III. Afere-se dos autos que a nova perícia de reconstituição dos fatos foi requerida pela própria defesa que acompanhou todo o procedimento e que, ciente do teor do laudo pericial, foi intimada a apresentar alegações finais, inexistindo, pois, violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
IV. Ordem parcialmente conhecida e denegada.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça. “A Turma, por unanimidade, conheceu parcialmente do pedido e, nessa parte, denegou a ordem”. Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi e Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ) votaram com o Sr. Ministro Relator.

Finalmente, insta ressaltar posicionamento de  Fernando da Costa Tourinho Filho,  no sentido de que “em matéria de nulidade, e para simplificar o rigorismo formal, foi adotado o princípio do pas de nullité sans grief. Não há nulidade sem prejuízo. Para que o ato seja declarado nulo é preciso haja, entre a sua imperfeição ou atipicidade e o prejuízo às partes, um nexo efetivo e concreto. Se, a despeito de imperfeito, o ato atingiu o seu fim, sem acarretar-lhes prejuízo, não há cuidar-se de nulidade” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. vol. 3. Ed. Saraiva, 17ª Ed., p. 115).

BIBLIOGRAFIA_________________________
1-Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. Alexandre de Moraes, 5ª edição, São Paulo, Editora Atlas S.A-2005, página 128
2- NERY JUNIOR, Nelson;  NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo/SP: Revista dos Tribunais, 2006.

ANEXOS
1 “RE 597133 / RS – RIO GRANDE DO SUL
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI
Julgamento:  17/11/2010 Órgão julgador: Tribunal pleno
Publicação
REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO
DJe-065 DIVULG 05-04-2011 PUBLIC 06-04-2011
EMENT VOL-02497-02 PP-00273
Parte(s)
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
RECTE.(S): IORQUE BARBOSA CARDOSO
ADV.(A/S): AMADEU DE ALMEIDA WEINMANN E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S): PAULO DARIVA E OUTRO(A/S)
RECDO.(A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Ementa
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUAL PENAL. JULGAMENTO DE APELAÇÃO POR TURMA JULGADORA COMPOSTA MAJORITARIAMENTE POR JUÍZES FEDERAIS CONVOCADOS. NULIDADE. INEXISTÊNCIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. RECURSO DESPROVIDO. I – Não viola o postulado constitucional do juiz natural o julgamento de apelação por órgão composto majoritariamente por juízes convocados, autorizado no âmbito da Justiça Federal pela Lei 9.788/1999. II – Colegiados constituídos por magistrados togados, integrantes da Justiça Federal, e a quem a distribuição de processos é feita aleatoriamente. III – Julgamentos realizados com estrita observância do princípio da publicidade, bem como do direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. IV – Recurso extraordinário desprovido.

Decisão
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, negou provimento ao recurso extraordinário, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que o provia. Votou o presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausentes, neste julgamento, os senhores ministros Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Plenário, 17.11.2010.
2  – AgRg no Ag 828862 / PR
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO
2006/0205541-8
Relator(a)
Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (1123)
Órgão julgador
T2 – SEGUNDA TURMA
Data do julgamento
23/10/2007
Data da Publicação/Fonte
DJ 23/11/2007 p. 458

Ementa
AUSÊNCIA DE PRÉ-QUESTIONAMENTO. SÚMULAS NS. 282 E 356 DA SUPREMA CORTE. ANÁLISE DE LEI LOCAL IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REGIME DE “MUTIRÃO”. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. NÃO-OCORRÊNCIA. REEXAME DE PROVA. SÚMULA N. 7/STJ.
1. A ausência de pré-questionamento da questão federal suscitada impede o conhecimento do recurso especial (Súmulas ns. 282 e 356 do STF).
2. É inviável, em sede de recurso especial, o exame de eventual ofensa a dispositivos de legislação estadual, circunstância que atrai a aplicação, por analogia, da Súmula n. 280 do Supremo Tribunal Federal.
3. A orientação jurisprudencial do STJ firmou-se no sentido de que o regime de “mutirão” não fere o princípio do juiz natural, notadamente quando a questão discutida nos autos independe da produção de provas em audiência.
4. Descabe ao STJ, em sede de recurso especial, revisar a orientação adotada pelas instâncias ordinárias quando alicerçado o convencimento do julgador em elementos fático-probatórios presentes nos autos (Súmula n. 7/STJ).
5. Agravo regimental improvido.

Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Humberto Martins, Herman Benjamin e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Castro Meira.