Não é este o nosso anonimato

14 de novembro de 2014

Ouvidor-Geral do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Membro da Associação Juízes para a Democracia

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Lamentamos profundamente não ter sido possível participar do Curso de Capacitação de Servidores para atuarem em Ouvidorias Públicas, ocorrido na Capital Mineira nos dias 25 a 29 de agosto de 2014, notadamente quando soubemos que a questão pertinente ao anonimato foi sobremaneira discutida, no caso, para se saber se as ouvidorias públicas devem ou não receber denúncias ou reclamações anônimas, isto em função da disposição contida no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal, verbis: Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: … Inciso IV – é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato.

 

Embora pareça desnecessária, a abordagem do tema, na esfera do serviço público, é de todo pertinente, inclusive e principalmente no âmbito das ouvidorias integrantes do sistema geral da segurança e justiça, isso dado ao posicionamento quase que unânime em não se receber reclamações e denúncias sob o argumento de se tratar de notícia anônima, o que nos causa particular perplexidade. Primeiro, porque não vislumbramos – finalística ou objetivamente – qualquer relação entre o termo “manifestação do pensamento”, adotado pelo legislador constitucional, com uma denúncia de caso de tortura, de suborno ocorrido, prevaricação ou qualquer outro crime, ou ainda com uma mera reclamação de serviço defeituoso, ineficiência, descaso ou morosidade de procedimentos afeitos ao serviço público, em todas as suas competências e instâncias. Segundo, ante a inconcebível opção por conceder preocupação maior ao anonimato, em detrimento do conteúdo da missiva, massacrando, dentre outros princípios que regem a administração pública, os da austeridade, da moralidade, transparência e o da impessoalidade.

 

O Constituinte de 1988 certamente não legaria à sociedade brasileira tamanha aberração. A vedação do anonimato, conforme preconizada no capítulo dos Direitos e das Garantias Individuais, tem como objetividade jurídica – no que se refere ao serviço público – resguardar a autenticidade e a autodeterminação nos negócios de estado, impondo aos órgãos e a seus agentes a manifestação inequívoca e transparente nas posturas, nas ideologias, nos embates, na postulação e na contestação de interesses de todo naipe, assegurando uma convivência institucional de alto nível, sem motivações e artifícios ocultos e subalternos.

 

Não se poderia, pois, abstrair qualquer coerência ou interpretação razoável em se transferir aquela vedação para o exercício da cidadania das populações carentes, vulneráveis e historicamente relegadas a políticas manifestamente excludentes, cujo conteúdo e caráter normalmente verificados em suas denúncias e reclamações já são um apelo contra a opressão, o desmando, o descaso e injustiças em níveis e intensidades deploráveis e muitas vezes inimagináveis. Seria então, razoável – e não saindo aqui do âmbito de competências de nossa atuação – exigir do cidadão vulnerável petição subscrita e autêntica contendo reclamação de tortura praticada por uma autoridade policial que reside no seu próprio quarteirão? Ou contendo notícia de prática de crime por um juiz? Ou, ainda, reclamando de arbitrariedade de membro do ministério público que pretende processá-lo?

 

Uma exigência dessa natureza constaria de uma Constituição Cidadã? É melhor uma comunidade de denunciantes anônimos que uma de infratores camuflados. Em verdade, a vedação do anonimato nesses casos, e em tantos outros nos diversos segmentos da administração pública, não passa de uma manobra com vistas a evitar a exposição das deficiências e mazelas da instituição ou ainda para servir a interesses corporativistas, facetas que enfatizam nosso anacronismo relutante e que perpetuam um modelo de serviço público divorciado da realidade sócio-política que marca nosso tempo. O resultado imediato dessas posturas é a não depuração dos serviços, o afastamento das instituições de seus legítimos objetivos e da própria população, consequentemente.

 

O direito ao anonimato, pois, ao invés de ser preconceituosamente indigitado e estigmatizado como coisa desqualificada, deve, ao contrário, ser tido como um instrumento legítimo de participação cidadã, devendo o estigma recair não sobre o direito ou seu usuário, mas em face do infrator, que, sendo servidor público, deve se defender da acusação, e não do anonimato. É evidente que o anonimato pode levar, e leva, a acusações improcedentes, a calúnias e difamações, mas isto também somente fortalecerá o servidor público verdadeiramente probo, assim como não pode ser óbice a um direito de tão relevante importância, sem falar que as estatísticas revelam número inexpressivo de denúncias e reclamações inconsistentes, e, quase inexistente, daquelas com fins ilícitos ou pejorativos, aliás, sempre repelidas de plano, é evidente.

 

Não destoa o entendimento do egrégio Supremo Tribunal FederaL, como evidenciado nos respeitáveis votos proferidos pela Ministra Cármen Lúcia e pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do Inquérito 1957/PR e do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29198/DF, dos quais recomenda-se a leitura, deveras esclarecedora.

 

De qualquer forma, ao anônimo criminoso, toda a santa ira da polícia investigativa. Daí que as Ouvidorias Públicas devem ser preservadas, protegidas e equidistantes de focos de pressões, servindo exclusivamente às necessidades e pretensões nobres da população, consistindo assim em um ÓRGÃO DE CALÇADA, onde nem tudo é anônimo, mas é o anonimato que dá o tom.

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