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“Ninguém me pauta”

1 de agosto de 2013

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Luiz Roberto BarrosoA bem recebida nomeação do professor Luís Roberto Barroso, ilustre membro de nosso Conselho Editorial, para compor a Corte do Supremo Tribunal Federal, agradou a gregos e troianos. Sua designação era aguardada desde o governo de Fernando Henrique, quando seu nome surgiu como um dos mais conceituados e dignos juristas sugeridos para participar do excelso Tribunal.

As declarações feitas à imprensa e as respostas dadas aos senadores que o sabatinaram na Comissão de Constituição e Justiça, no Senado Federal, reafirmaram a aprimorada cultura jurídica e humanista do consagrado jurista, aprovado no Plenário por 59 votos dos senadores presentes.

São oportunas e vale transcrever algumas das importantes e definidas respostas e declarações dadas pelo Ministro Roberto Barroso durante a sabatina:

Aborto de fetos anencéfalos:

“Se o feto depende do corpo da mãe, e a mãe, no exercício de sua autonomia, não deseja levar a gestação a termo, obrigá-la a fazê-lo seria instrumentalizá-la para um projeto de vida que não é seu, transformando-a em um meio e não um fim em si mesmo.”

“Ativismo judicial”:

“Onde há uma decisão política, respeita-se; onde não há uma decisão política é preciso resolver o problema e, mais do que isso, onde haja um direito fundamental e de uma minoria, o Judiciário precisa ser mais diligente.”

Lei da Anistia:

“Quem tem competência política é que deve decidir se a hora é de uma missão de justiça ou se a hora é de uma missão de paz”, se referindo à divergência – que para ele deve ser resolvida pelo Congresso – criada com a decisão do STF que validou a Lei da Anistia e com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por não punir torturadores.

Liberdade da Imprensa:

“Acho que a melhor forma de lidar com a liberdade de expressão e com eventuais abusos da liberdade de expressão é multiplicar a liberdade de expressão, dar voz a todos, inclusive, tentar dar voz a quem não tem.”

Manifestações:

“Eu acho que as instituições têm o dever de levar em conta a voz das ruas e procurar atender às demandas sociais. Acho que há demanda social por reforma política, há demanda social pelo fim da corrupção e, portanto, as instituições têm que estar atentas a isso e ser capaz de dar respostas adequadas à população.”

“Mensalão”:

“Vou fazer o que acho certo, o que meu coração disser. Ninguém me pauta: nem governo, nem imprensa, nem opinião pública, nem acusados.”

STF x Congresso:

“Acho ruim para o país e para as instituições que o Supremo se transforme no terceiro tempo da disputa política do Congresso”.

Em entrevista recente o Ministro Barroso apoiou a atuação do Supremo ao garantir direitos que depende­riam, ordinariamente, de lei aprovadas pelo Congresso. Segundo Barroso, “o ativismo judicial tem sido parte da solução, e não do problema”, afirmando que “o Judiciário tem contribuído para o avanço social em momento de imobilismo do Congresso”. Entretanto, para Barroso, é preciso mudar esse cenário: “Precisamos pensar, e com urgência, uma forma de recompor o Poder Legislativo porque não há democracia sem um Poder Legislativo com credibilidade, atuante e com funcionalidade”.

União homoafetiva:

“As pessoas, na vida, têm direito de escolher seus projetos existenciais, sem interferir no direito de ninguém.”

A apresentação do Ministro Luís Roberto Barroso na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, transcrita a seguir, na íntegra, configura a sua grandeza jurídica e humanista.

“Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, Senador Vital do Rego; Excelentíssimos Senhores Senadores; Autoridades presentes, queridos amigos, colegas, senhoras e senhores:

É um prazer e uma honra estar aqui e poder merecer a atenção de Vossas Excelências. Eu espero estar inspirado e, sobretudo, à altura do cargo para o qual submeto o meu nome à deliberação desta Casa.

Penso ser um direito do Senado Federal e da sociedade brasileira saberem um pouco mais sobre minha trajetória, minha concepção de mundo e minha visão das instituições. Este é um momento de transparência e de prestação de contas.

De modo que mais por dever do que por desejo, e certamente inibido com a exposição pública, passo a me desincumbir da tarefa, com empenho e humildade. E lembro-me agora, como me lembro sempre, da advertência de Ortega y Gasset, um antídoto contra a presunção: ‘Entre o querer ser e o crer que já se é, vai a distância entre o sublime e o ridículo’.

Origem e trajetória

Eu nasci em Vassouras, uma adorável cidade do interior, próxima ao Rio de Janeiro. Curiosamente, três antigos Ministros do Supremo Tribunal Federal também nasceram lá: Sebastião de Lacerda (1912), Edgar Costa (1945) e Ary Franco (1956). Por isso mesmo, sempre achei que a cota da cidade estava completa e que, portanto, esta era uma aspiração que eu não deveria ter.

Meus pais se formaram na antiga Faculdade Nacional de Direito, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Minha mãe foi uma das raras mulheres a se tornarem advogadas, naqueles tempos ainda patriarcais da década de 50. Em 1963, nossa família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde meu pai prestou um concurso para promotor de justiça. Gosto de brincar que, mais do que ninguém, eu sei o que é ter o Ministério Público em casa.

Fiz o ensino fundamental, então denominado curso primário, na Escola Roma, na Praça do Lido, em Copa­cabana. Tive uma professora notável – Da. Zoraide –, cujo nome jamais esqueci. Fiz a maior parte do ensino médio, à época ginásio e científico, em uma escola pública modelo chamada Colégio Estadual Pedro Álvares Cabral, também em Copacabana. Acho, desde sempre, por experiência própria, que oferecer ensino público de qualidade, da pré-escola até o final do ensino médio, é a coisa mais importante que um país pode fazer por seus filhos.

Formei-me em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde ingressei em 1976. Dividi meu tempo entre os estudos e uma intensa militância no movimento estudantil. Ao final da Faculdade, tive de fazer uma escolha entre a vida acadêmica e a política. Escolhi a academia e iniciei minha carreira de professor em 1982. Mesmo não tendo seguido carreira política, tornei-me, desde bem cedo, um observador engajado da vida nacional.

Fiz graduação, doutorado e livre-docência na UERJ. Sou perenemente grato a dois professores extraordinários que tive, pessoas que iluminaram meu caminho: Jacob Dolinger e José Carlos Barbosa Moreira. Ao longo de mais de 30 anos, só estive longe da UERJ em alguns poucos períodos, por motivos acadêmicos ou profissionais. Foi assim quando fiz o meu mestrado na Universidade de Yale, no final da década de 80, ou no tempo em que passei na Universidade de Harvard como visiting scholar.

Salvo esses intervalos eventuais, nunca me ocorreu ficar mais longamente distante do Brasil. Mesmo quando as opções se ofereceram. Todos os meus afetos e sentimentos estão aqui. Eu certamente poderia dizer, parodiando Pablo Neruda: mil vezes tivera de nascer, e eu queria nascer aqui. Mil vezes tivera de morrer, e eu queria morrer aqui.

Minha concepção de mundo

Filosoficamente, eis o meu credo: creio no bem, na justiça e na tolerância.

Creio no bem, mesmo quando não posso vê-lo. Como uma energia positiva e crescente, que vem desde o início dos tempos. A força propulsora do processo civilizatório, que nos levou de uma época de aspereza, sacrifícios humanos e tiranias diversas à era dos direitos humanos, da democracia e da busca por dignidade humana.

Creio, também, na justiça, apesar de todas as circunstâncias e vicissitudes. Mesmo sabendo que ela tarda, às vezes falha e que tem uma queda pelos mais ricos. Toda sociedade precisa de um sistema adequado de preservação de direitos, imposição de deveres e distribuição de riquezas.

E creio na tolerância. O mundo contemporâneo é marcado pelo pluralismo e pela diversidade. Diversidade racial, diversidade de orientação sexual, diversidade religiosa, diversidade política. A verdade não tem dono. Não existe uma fórmula única para a vida boa. Cada um é feliz à sua maneira.

É claro que existe um núcleo essencial do bem. Nem tudo é relativo. Mas não é possível trafegar pela vida com uma mochila cheia de certezas plenas e verdades absolutas. O tempo dos dogmatismos passou. Bastar-se a si próprio, escreveu Vinicius de Moraes, é a maior solidão.

O respeito e a consideração pelo outro, por aquele que é ou pensa diferente de mim, é o símbolo da tolerância, da fraternidade e da compaixão. Levar em conta o outro não significa abrir mão de si. Há um lindo verso do poeta espanhol Ramón de Campoamor que espelha essa ideia de que na vida existem múltiplos pontos do observação. Escreveu ele:

En este mundo traidor
Nada es verdad, ni mentira.
Pues todo tiene el color
Del cristal con que se mira.

As coisas na vida têm a cor da lente pela qual se olha.

Minha visão das instituições

Considero que o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram. Também referido como Estado democrático de direito, o constitucionalismo democrático é o produto da fusão de duas ideias que têm origens históricas diversas, mas se aproximaram para produzir o arranjo institucional considerado ideal no mundo contemporâneo.

O constitucionalismo moderno surge com o Estado liberal – isto é, com as revoluções liberais do final do século XVII e do século XVIII – e significa Estado de direito, poder limitado, respeito aos direitos fundamentais.

Democracia , por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. Constitucionalismo democrático, portanto, quer dizer governo da maioria, observadas as regras do jogo democrático e os direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias.

A teoria, nessa matéria, é relativamente clara. Decisões políticas, que são a concretização do governo da maioria, devem ser tomadas pelos agentes públicos eleitos, isto é, pelo Congresso Nacional e pelo Chefe do Executivo. De outra parte, decisões jurídicas – isto é, aquelas que interpretam a Constituição e as leis – devem ser tomadas pelo Judiciário, com distanciamento crítico e imparcialidade.

No mundo ideal, política é política, direito é direito. São domínios diferentes. No mundo real, todavia, as fronteiras nem sempre são demarcadas de maneira nítida. E, assim, surgem tensões inevitáveis. Quando isso ocorre, é preciso critérios para equacionar a questão. Penso ser próprio aqui distinguir duas situações: a) quando tenha havido uma atuação do Legislativo ou do Executivo em relação ao tema; e b) quando não tenha havido tal atuação.

A primeira situação, portanto, se dá quando o Legislativo, por exemplo, tenha deliberado acerca de determinada matéria. Por exemplo: (i) a edição de uma lei permitindo e disciplinando as pesquisas com células-tronco embrionárias; ou (ii) a edição de lei disciplinando a ação afirmativa em favor de negros. Nesses dois casos, embora exista controvérsia política, o Judiciário deve ser deferente para com as escolhas feitas pelo Legislativo. Não cabe ao Judiciário sobrepor a sua própria valoração política à dos órgãos cujos membros têm o batismo da representação popular.

Situação diversa é a que ocorre quando o Legislativo não atuou, porque não pôde, não quis ou não conseguiu formar maioria. Aí haverá uma lacuna no ordenamento. Mas os problemas ocorrerão e o Judiciário terá de resolvê-los. Por exemplo: a) o Congresso não havia ainda regulado a greve no serviço público. A despeito disso, as greves ocorriam, surgiam disputas e o STF viu-se na contingência de estabelecer as regras que deveriam ser aplicadas até que o Congresso viesse a dispor a respeito. Ou b) o caso das relações homoafetivas. Elas existem. São um fato da vida, independentemente do que cada um pense a respeito. Não há lei a respeito. Pois bem: o Judiciário tem de decidir se há direito de herança, direito à pensão alimentícia, patrimônio comum.

Portanto, o papel do Judiciário, quando não tenha havido deliberação política, é mais abrangente do que quando ela tenha ocorrido. Se há lei, o STF só deve invalidá-la se a afronta à Constituição for inequívoca. Se não há lei, o Judiciário não pode deixar de decidir a questão alegando omissão normativa. Nesse caso, seu poder se expande. Portanto, no fundo no fundo, quem tem o poder sobre o maior ou menor grau de judicialização é o Congresso: quando ele atua, ela diminui; e vice-versa.

Conclusão

É boa hora de concluir, fazendo uma síntese do que sou e penso. O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa da nossa geração. Nele se condensam as grandes promessas da modernidade: governo do povo, poder limitado, centralidade da dignidade da pessoa humana, proteção dos direitos fundamentais e – quem sabe? – até felicidade. Trata-se de uma fé racional, que ajuda a acreditar no bem e na justiça, mesmo quando não estejam ao alcance da vista.

O Estado democrático de direito significa o ponto de equilíbrio entre o governo da maioria, o respeito às regras do jogo democrático e a promoção dos direitos fundamentais. Naturalmente, se em uma sala houver seis cristãos e três muçulmanos, os cristãos não podem deliberar sobre jogar os muçulmanos pela janela. A maioria pode muito, mas não pode tudo.

A judicialização das relações políticas e sociais – que é inevitável em algum grau – não pode, no entanto, suprimir o espaço da política, eliminar o governo da maioria. O Judiciário não pode presumir demais de si mesmo. Na frase feliz de Gilberto Amado: ‘Querer ser mais do que se é, é ser menos’.

É preciso buscar, permanentemente, o equilíbrio adequado a cada momento entre supremacia da Constituição, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário.

A vida institucional, assim como a vida social e a vida individual de cada um, é a busca permanente de equilíbrio. E a vida é a travessia contínua de uma corda bamba. Ora se inclina um pouco para um lado, ora um pouco para o outro lado. Por vezes, o público poderá ter a ilusão de que o equilibrista está voando. Não há problema nisso. A vida é feita de certas ilusões. Mas o equilibrista tem que saber que não está voando. Porque se ele acreditar nisso, se ele presumir ser mais do que pode ser, não haverá salvação. Ele vai cair.

Um juiz da Suprema Corte, na minha visão, deve atuar do modo como a vida deve ser vivida: com valores, com determinação, com uma dose de humor e com humildade.”

Em síntese, essa explanação, proferida pelo Ministro Roberto Barroso no Senado, é a base do discurso por ele declamado no jantar em homenagem à sua posse no Supremo Tribunal Federal. Por oportuno, cabe transcrever apenas a conclusão do discurso do magistrado, diferente do acima apresentado, e que reflete perfeitamente a sua crença e ideologia.

Em suma: creio no bem, na justiça e na tolerância como valores filosóficos essenciais. Creio na educação, na igualdade, no trabalho e na livre-iniciativa como valores políticos fundamentais. E no constitucionalismo democrático como forma institucional ideal.
Essa minha fé racional, procurarei expô-la de modo simples, claro e autêntico. Espero ser abençoado para continuar fiel a ela e a mim mesmo no Supremo Tribunal Federal.