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Nobreza histórica

30 de junho de 2006

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Monarquia e República induzem a formas diversas de comportamento social, e, no Brasil, os valores monárquicos, éticos e estéticos, se enraizaram profundamente, e permaneceram. Não é de se estranhar, pois a mudança de regime não foi fruto de reivindicação do povo, mas obra de um restrito grupo de oficiais positivistas, que souberam aliar prestígio pessoal com insatisfação da tropa pela recusa do Imperador em aceitar imposições político-corporativas. Sabe-se que quando Deodoro se apresentou para assumir o comando da tropa amotinada, esta o saudou com o brado de “Viva o Imperador!”, como era praxe na época. Hábeis manobras do grupo positivista, que incluíram boatos sem fundamento sobre a prisão de reverenciados líderes militares, conseguiram transformar um mero ato indisciplinar em revolução.

Deposto o Imperador, a referência cultural do ancién regimen continuou a prevalecer. Ninguém cogita falar em “Presidente Pelé”, ou “Presidente Roberto Carlos”. É “Rei Pelé”, “Rei Roberto Carlos”, “Rei Momo”, “Rei do Baião”, “Rainha da Primavera”, e assim por diante.

Fato análogo sucedeu em Portugal, onde as próprias autoridades republicanas, através de leis, cuidaram de preservar certos valores monarquistas. Em 15.10.1910, ano do advento da república naquele país, decreto do Governo Provisório dispôs, em seu art. 4º, o que aqueles que haviam recebido no regime anterior títulos de nobreza “podem continuar a usá-los, mas nos atos e contratos que tenham de produzir direitos e obrigações será necessário o emprego do nome civil para que tenham validade”.

No mesmo sentido, lei de 02.12.1910, e o subsequente Código de Registro Civil, em seu art. 40, item 2, dispondo: “São permitidas referências honoríficas ou nobiliárquicas antecedidas do nome civil…”

Passou a coexistir, com a República, o que lá se chama “Nobreza Histórica”.

No Brasil, embora a Constituição Republicana haja “abolido” os títulos de nobreza, as denominações a ele relativas continuaram a ser usadas, inclusive em documentos oficiais. Acórdãos das primeiras décadas do Séc. XX são assinados por desembargadores e ministros que, ao nome civil acresciam os títulos que o Império lhes outorgara. O Conde de Afonso Celso, diretor da prestigiosa “Faculdade Livre de Sciências Jurídicas” expedia seus diplomas, até quase 1930, assinando “Conde de Afonso Celso”, e, sem nenhum problema, o notário reconhecia tais assinaturas. O costume cessou porque os títulos brasileiros, ao contrário dos portugueses, não eram hereditários.

Se a nobreza persistiu como parte do patrimônio cultural (histórico-imaterial) português, com maior razão haveria de, nas mesmas circunstâncias, persistir a Casa Real Lusa. Acresce que aquela não é patrimônio cultural histórico apenas de Portugal, mas igualmente do Brasil, pois foi comum a ambas até o 7 de Setembro de 1822. Vale acrescentar que, a rigor, o Brasil não teve independência, mas secessão. Quando do Grito do Ipiranga, de há muito não éramos colônia (portanto, “dependentes”), mas “Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil”. Como reino unido, havia uma só nação e território. Foi um país que se dividiu em dois, não uma colônia que se declarou independente. Havia, é certo, a ameaça de retorno ao status quo ante, mas isto é irrelevante para caracterizar como “independência” o que,  juridicamente, não o foi.

Como todos sabem, D. Pedro I, abdicando da Coroa brasileira, foi para Portugal, onde derrotou seu irmão D. Miguel, que havia usurpado o trono que aguardava a maioridade da filha lusitana de nosso Imperador. Irmão este, aliás, que com certa frequência autores colocaram a paternidade em dúvida, atribuindo-a não a D. João VI, mas ao Marquês de Marialva, pretendendo fosse mais um dos filhos extra-casamento de D. Carlota Joaquina, que se diz teria ela havido após o primogênito.

Consequência da derrota de D. Miguel, foi a lei de 1834 que o baniu do território português e a todos seus descendentes, proibindo retorno sob pena de morte, e excluindo-o e à sua linhagem da sucessão na Coroa.

Ninguém tinha dúvidas que a Chefia daquela Casa Real jamais poderia vir a ser ocupada por alguém do “ramo miguelista”, posto que seu patriarca havia sido privado, inclusive, do título de Infante (príncipe), a ele se referindo a lei de 1834 como “ex-Infante”!

Seguiu a sucessão normalmente pela linha legítima, a de D. Pedro I (lá D. Pedro IV). O problema surgiu quando, em 1910, foram assassinados o rei D. Carlos I, e seu herdeiro imediato. Assumiu seu filho mais novo, D. Carlos II, que reinou até 1912, quando deposto pelos republicanos, e, exilado, morreu sem descendência.

Aparentemente, criou-se um impasse, pois não haveriam sucessores, se não se fossem eles procurados na “linha miguelista”, e os daquela estavam, por expressa disposição legal, impedidos de suceder. Este impasse, contudo, era apenas aparente, eis que o falecido D. Carlos II tinha uma irmã paterna, Dª. Maria Pia Sax-Coburgo de Bragança, havida fora do casamento por D. Carlos I, mas por ele reconhecida em documento assinado como filha e infanta, com todos os privilégios inerentes. Fez D. Carlos batizá-la na Espanha, onde viveu sob a proteção do Rei D. Afonso XIII.

De início, guardou Dª. Maria Pia atitude discreta, mas não se conteve quando viu seu povo subjugado pela ditadura salazarista, abertamente simpatizante do Eixo na II Guerra, sendo a de jure herdeira bragantina antifascista notória. Esta circunstância fez com que Dª. Maria Pia viesse à público como legítima sucessora de D. Carlos II, e se colocasse em aberta oposição a Salazar, fato que, inclusive, anos mais tarde iria render-lhe prisão política quando em território português onde havia legalmente ingressado para render homenagem à memória de seu pai. Mas, o que importa, é que Salazar retaliou, fazendo aprovar e promulgando a Lei nº 2040 de 27.05.1950, dizendo que “São revogadas a Carta de Lei de 19 de Dezembro de 1834 e o Decreto de 1910 sobre banimento e prescrição”.

O decreto de 1910, expedido com a força de lei conforme o direito da época revolucionária, estendera o banimento a todos os ramos da Família Real, e apenas substituíra a pena de morte. Tacitamente revogara a lei de 1834, o que acontece quando lei nova dispõe integralmente sobre assunto tratado em lei anterior.

Não havia necessidade, pois, de se mencionar expressamente a de 1834. Ao fazê-lo, pretendeu-se, como desejava o ditador, reconduzir à sucessão na histórica Casa Real a “linha miguelista”, cujo dito pretendente lhe era politicamente simpático, e afastar a adversária, então em aberta aliança com o oposicionista General Humberto Delgado, que se exilara no Brasil. Era, à época, Dª Maria Pia a principal responsável pelo apoio logístico às andanças de Delgado pela Europa em suas articulações com outros resistentes democratas.

O expediente legislativo de que se valeu Salazar é inócuo para fins de sucessão real, seja porque a revogação de uma lei opera efeitos ex-nunc, e não ex-tunc, não atingindo os direitos adquiridos na vigência da revogada, seja porque obviamente não tem o Estado republicano poderes para legislar sobre matéria interna corporis da Casa Real que ele mesmo depôs e baniu. As controvérsias no seio daquela só podem ser resolvidas à luz do Direito Nobiliárquico, portanto da legislação anterior, que a República, por haver revogado, não tem como aplicar.

Daí decorre que, hoje, existe uma Casa Real Histórica legítima, e uma ilegítima. A primeira, chefiada por D. Rosário I, sucessor de Dª Maria Pia, e, a segunda, por D. Duarte II, primogênito dos descendentes de D. Miguel.

A Constituição brasileira dispõe, em seu art. 216, que “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira…”

Sendo a legítima (e apenas ela) Real Casa Portuguesa patrimônio histórico-cultural do Brasil, tanto como de Portugal, é dever legal do Poder Público exteriorizar posicionamento de forma a que os brasileiros não se deixem confundir. À propósito, vale observar que Dª. Maria Pia era, embora nascida em Portugal, filha de mãe brasileira, Dª. Maria Amélia Loredo, natural de Cavetá, no Pará, conforme se vê de sua certidão de batismo, o que mais ainda caracteriza como luso-brasileira a origem da autêntica Família Real. Não se pretende um reconhecimento diplomático, que, certamente causaria embaraços às relações entre os dois países, mas isto pode ser feito oficiosamente, mediante convênios com as entidades de cultura e assistência social que aquela patrocina, como, por exemplo, a “Cruz Azul”.

É o que deve ser considerado a bem da memória da época em que Brasil e Portugal formavam, em igualdade de condições, um único país.