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Notas sobre o procedimento monitório no direito comparado

5 de julho de 2003

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Noção

A tutela monitória manifesta-se e se circunscreve a dois modelos de sistemas: o puro e o documental.1  O primeiro (o puro), ordinariamente utilizado em causas de pequena monta, exige a mera afirmação do suposto credor, desprovida de qualquer prova documental, nas hipóteses expressamente admitidas em lei, de ordem de pagamento em desfavor do devedor indicado, por meio de um mandado de pagamento, que é apto a adquirir eficácia de título executivo, se não houver oposição, ou se ele existindo for inadmissível ou mesmo rejeitado.  A segunda (a documental) é dotada das mesmas características, desde que apoiada em instrumentos, comumente designado “prova escrita”.

Caracterizada no contexto das tutelas jurisdicionais diferenciadas, assim entendidas aquelas que visam alcançar a efetividade do processo nas hipóteses que as tutelas tradicionais ou ordinárias não atingiriam, responde ela à aspiração de tutelar imediatamente a pretensão do credor desprovido de título executivo, sem a  necessária submissão de sua pretensão a um processo no qual se desenvolva atividade de conhecimento.2

Os regimes injuntivos estabelecidos nas diversas legislações obedecem aos modelos “puro” e “documental”. Tal ocorre na lei portuguesa, italiana, austríaca, alemã, sueca e suíça, nesta última prevista na sua remotíssima lei federal sobre execução e quebras, datado de 1º de janeiro de 1889 (em vigor somente em 1892). No Brasil conhece-se apenas o documental.

A designação

A adoção no Brasil do termo “monitório” para designar o procedimento correspondente, não encontra correspondência nos regimes português, italiano e francês, que optaram pela expressão “injunção” (portuguesa), “injunzione” (italiana) e “injonction” (francesa e belga). Constituiu certamente fator inibitório a adoção em nosso país do termo acolhido em Portugal a previsão constitucional do “mandado de injunção”, cuja inspiração estadunidense conduziu a destino diverso e preciso dentre os direitos fundamentais previstos expressamente na atual Constituição, de 1988.

As origens mais recuadas do Direito Alemão e Austríaco, justificaram nestes dois países nomes originais e consagrados, sendo o “Mahnverfahren” e “Urkundenprozeb”, respectivamente o puro e documental alemães, e o “Mahnverfahren” e “Mandatverfahren” austríacos.3 Na Suíça, o “Rechtbot”.  Na Holanda permanece a designação unicompreensiva “dwangbevelprocedure”.4

Origem

O desenvolvimento econômico, a circulação da riqueza e a adoção do dinheiro nos negócios impuseram meios simplificados de formalização dos créditos e procedimentos adequados para satisfazê-los.  Ocorre que determinados créditos não eram revelados por documentos e por conta disso estabeleceu-se no direito medieval italiano, o uso de não citar em juízo o devedor, mas de obter diretamente do juiz a ordem de prestação que ensejava a execução. Assim surgiu o mandatum ou pracceptum de solvendo, que era acompanhado e justificado pela cláusula de que, se o devedor se propusesse a alegar excesso, podia opô-las dentro de certo prazo.5

Nas Ordenações Manuelinas conhecia-se a ação de assinação de dez dias ou ação decendiária e no Direito Brasileiro, pelo Regulamento nº 737, de 25 de outubro de 1850 encontram-se as primeiras reminiscências do procedimento medieval italiano. Modernamente, a adoção mais evoluída da injunção nas legislações continentais da Europa, especialmente na Alemanha, Áustria, Suíça, que alcançaram amplos efeitos práticos na sua utilização, muito influenciou o acolhimento no Brasil, mas certamente é o modelo italiano que aparentemente mais se aproximou do brasileiro, devendo ter sido determinante para o seu acolhimento.6

Natureza jurídica do procedimento monitório

Conquanto no procedimento monitório se destine à emanação de pronunciamento do juiz, a pedido do afirmado credor, a fim de que lhe seja satisfeito determinado e específico crédito, não encontra ele natureza jurisdicional em todos os ordenamentos nos quais foi instituído.  No Direito Português a injunção assume cariz administrativo até a oposição do requerido. Tal caracterização não é acompanhada por nenhum outro sistema conhecido. Em todos os demais a natureza jurisdicional é constatada pela disciplina no próprio sistema do código de processo, como ocorre na maioria dos países. A origem da disciplina da injunção por Decreto-Lei (nº 404-93) é decisiva como classificação, que desviada do contexto sistemático do Código de Processo Civil português, somente assim poderia, dada a sua origem, ser enquadrada. É digno de nota que a natureza de ato do Secretário-Geral do Departamento de Justiça, de 15 de outubro de 1942 e prorrogado por leis sucessivas não inibiu o reconhecimento da natureza jurisdicional na Holanda. No Brasil, a natureza jurisdicional decorre da própria disciplina no capítulo dos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa.

Fonte Normativa

É na codificação processual civil de cada país que normalmente se encontra a disciplina do procedimento injuntivo. Assim, por exemplo, se verifica na legislação italiana (art. 633 do Codice di Procedura Civile), alemã (§ 688-703 [puro] e § 592-605 [documental] da Z. P. D.), austríaco (§ 548 [puro] e § 549 [documental] da Z.P.D.), suíço (art. 69 da lei federal suíça sobre a execução e quebra). Na Bélgica, o Code Judiciaire a disciplina no art. 1.338 e seguintes; o mesmo ocorrendo com a nossa previsão estabelecida nas alíneas a, b e c do art. 1.102 do Código de Processo Civil. Em legislação extravagante encontramos na portuguesa (Decreto-Lei nº 404, de 10 de dezembro de 1993) e na holandesa (ato do Secretário-Geral do Departamento de Justiça, de 15 de outubro de 1942 e prorrogado por leis sucessivas). No Brasil, o procedimento decorre das modificações legislativas derivadas da Lei nº 9.079, de 14 de julho de 1995, que alterou a redação do Código de Processo Civil e incluiu o monitório dentre os procedimentos especiais de jurisdição voluntária.

O objeto da injunção

Na Itália, a possibilidade do procedimento injuntivo ocorre nos seguintes casos: 1) quem é credor de uma soma líquida em dinheiro ou de uma determinada coisa fungível; 2)quem tem direito à entrega de uma coisa móvel determinada; 3) os advogados, os chanceleres, os oficiais judiciários ou qualquer pessoa que tenha realizado o seu trabalho em razão de um processo, pelo pagamento de honorários devidos pela sua prestação; 4) os notários e outros exercentes de uma profissão ou arte sujeitas a uma tarifa legalmente aprovada pelos honorários ou reembolso de despesas. Na Áustria, para o regime puro, as ações de pequeno valor, independente de prova documental da obrigação e para o regime documental, prestam-se para reclamar o cumprimento de prestação em dinheiro ou de coisas fungíveis, de qualquer valor, quando o autor as pede com apoio ou instrumento autêntico, isto é, atos públicos ou particulares autenticados.7  O alemão admite o puro para as ações de qualquer valor e independentemente de prova documental; viram a satisfação de certas prestações de dar, ou seja, o pagamento de uma soma em dinheiro o a entrega de determinadas coisas fungíveis ou valores, uma vez que as prestações não se condicionaram à contraprestação, salvo a prova desta ter sido anteriormente feita, e para o regime documental, as ações tendentes a obter do devedor o pagamento de uma quantia em dinheiro ou determinada quantidade de coisas fungíveis.8 No Direito Português exige-se apenas tratar-se obrigação pecuniária decorrente de contrato cujo valor não exceda metade de valor de alçada do Tribunal de 1ª Instância. Na Bélgica, o Code Judiciaire no art. 1.338, e admite quando a dívida for líquida cujo montante não exceder o correspondente a sessenta e cinco mil francos. No Brasil, o objeto é soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel.

Forma de pedido

O procedimento injuntivo tem início com a demanda, que pode ser oferecida por escrito ou oralmente, dependendo do regime eleito por cada país. Deste modo, em Portugal, o pedido deve ser sempre escrito e apresentado na Secretaria do Tribunal. Também na Itália exige-se que o pedido seja escrito. Diferentemente a Áustria e a Alemanha adotaram a possibilidade oral para a forma da demanda, além da tradicional maneira escrita, nesse sentido o § 702 da Z.P.O.9

No Brasil, a regra do art. 1.102 b é expressa ao afirmar ser escrita a forma da demanda, que deve obedecer a regra geral das petições estabelecidas nos arts. 282 e 283 do código de Processo Civil. Demais disso, deve ele as instruí-las com a prova escrita, sempre desprovida a eficácia do título executivo, que constitui em verdade o próprio destino na monitória que é a formação célere de um título executivo.

Da eficácia executiva do ato injuntivo

Sob a perspectiva da eficácia do ato injuntivo, a lei austríaca e a alemã atribuem eficácia executiva ex legis se não há oposição admissível, de maneira que desnecessário se torna a prática de outro ato que lhe atribua eficácia10 como se dá na legislação portuguesa que exige do Secretário judicial a aposição de um “execute-se” a fim de que adquira força executiva, o mesmo ocorrendo na Itália, que o juiz declara executivo o decreto mediante a prática de um outro decreto (art. 654), que se tornará assim título executivo com todos os seus efeitos, de maneira a adquirir a autoridade de coisa julgada substancial independente de um sucessivo juízo relativamente ao objeto da demanda proposta sob o mesmo fundamento.11 No Brasil, a formação do título se dá incontinenti a inadmissibilidade (art. 1.102 c, caput) e a rejeição dos embargos (§ 3º do art. 1.102, do CPC).

Formas de comunicação

No direito português e no italiano é por meio de notificação que se faz a comunicação com o reú, fórmula distinta do direito alemão e do austríaco, que optaram pelo mandado12. Relativamente ao regime italiano, a lei exige que o afirmado devedor seja notificado em cópia autêntica, certamente pelos efeitos que produz, pois a notificação determina a pendência da lide, ou seja, a de produzir os efeitos substanciais e processuais próprios da demanda proposta em via ordinária (interrupção da prescrição, litispendência e conexão de causa), consoante o art. 64313. No Brasil também se dá por mandado a comunicação ao devedor.

A inadmissibilidade do procedimento injuntivo

Variadas são as formas de tratamento dos casos de inadmissibilidade da injunção. Em Portugal, a legislação limitou-se a atribuir ao Secretário o poder de não receber a petição simplesmente. Já o mesmo não ocorre na legislação italiana e alemã.  Na peninsular, cuida-se de tarefa do juiz, que poderá rejeitar a demanda por decisão motivada. De igual maneira na Alemanha, onde também ao juiz incumbirá o poder de indeferir o pedido se não forem atendidas as formalidades legais e dessa decisão não cabe qualquer recurso.14 No Brasil, a solução é a extinção do processo sem apreciação do mérito, em razão do indeferimento da petição inicial, consoante o art. 267, I, do Código de Processo Civil.

O decreto injuntivo

No Direito Português incumbe ao Secretário do Tribunal notificar o requerido, por carta registrada com aviso de recepção, remetendo cópia da inicial e dos documentos juntos, indicando de forma inteligível o objeto do pedido e demais elementos úteis à sua compreensão, sendo necessário, ainda, referir, expressamente o prazo para a oposição. A lei italiana, no entanto, é limitadora da competência do decreto injuntivo ao conciliador, pretor ou presidente do tribunal, que seria competente para a demanda proposta em via ordinária (art. 637, Z. P. O.). A austríaca mantém do mesmo modo a competência do juiz, que sem ouvir o devedor, ordena a expedição de ordem de pagamento contra este, com a notificação de que poderá impugnar o pedido no prazo de quatorze dias. O mesmo ocorre com o Direito Alemão que também atribui ao juiz o poder de ordenar, inaudita altera parte, a expedição da ordem requerida, para que o afirmado devedor pague ao credor no prazo de uma semana a contar da notificação.15

Do prazo e das formas para impugnar a ordem do juiz – a oposição

É de sete dias a contar da notificação no direito português. Na Itália, é de quarenta dias, embora o prazo possa ser reduzido a dez e aumentado para sessenta se ocorrer justo motivo. Na Áustria, são quatorze dias. Na Alemanha o prazo é de uma semana. Na Suíca, o prazo é de 10 dias (art. 74).

A oposição é o meio pelo qual o réu que entenda injusto o procedente injuntivo impugna o decreto. De um modo geral, a oposição tem o efeito de transformar o procedimento sumário em ordinário. Sobre a caracterização geral da injunção e a forma de impugná-la é de se dizer que, a falta de contrariedade segundo certa corrente seria o caráter predominante na monitória. No entanto, para Carnelutti é a eventualidade do contraditório.  Domina, no entanto, o pensamento de que a característica determinante é a inversão da iniciativa do contraditório (Calamandrei). Calamandrei a explicita ao afirmar que não há antagonismo entre sua posição e a de Carnelutti porque é eventual o contraditório em razão de a iniciativa de provocá-lo incumbir ao réu se entender que deva oferecer oposição.

Conseqüências da oposição

Na falta de oposição, o Direito Português atribui ao Secretário do Tribunal o poder de apor uma manifestação resumida no termo “execute-se” no requerimento de injunção. Solução idêntica ocorre no caso de desistência da oposição. No Direito Italiano a inexistência de oposição possibilita o juiz proferir o decreto e declara executivo, que se tem entendido como meio de aquisição de eficácia da coisa julgada. No Direito Austríaco, após o decurso do prazo sem impugnação, o mandado adquire eficácia de título executivo. No Direito Alemão, decorrido em branco o prazo, o mandado adquire força executória.

Havendo oposição, ela é submetida fundamentalmente ao juiz, passando a ter natureza jurisdicional – essa é a disciplina portuguesa. Na Itália, a oposição é proposta perante o juiz que emitiu o decreto injuntivo, no prazo de 20 dias. Na Áustria, o juiz aprecia e decide se o mandado deve ser confirmado ou declarado sem efeito. Na Alemanha o procedimento passa a ser ordinário e submetido às suas próprias etapas. No Brasil é com os embargos que a atividade do conhecimento é que se desenvolve e garante o exame efetivo das situações afirmadas e controvertidas.

A forma de oposição obedece a variada disciplina. No Direito Português exige-se forma escrita, assim também a nossa legislação no Brasil. O mesmo ocorre com a Itália. Solução diversa oferece a Áustria e a Alemanha, que admitem também a oral.

Conclusões

• Em todas as legislações examinadas o procedimento monitório é vocacionado a tutelar situações creditícias especiais, geralmente fundadas em valores ou quantias não excessivamente expressivas.

• Prevalece a dicotomia “puro” e “documental” para as formas de procedimento monitório, padrão esse invariavelmente encontrado nas legislações citadas.

• Decorre a injunção de um longo processo evolutivo no qual o direito português antigo constitui referência por meio da “ação de assinação de dez dias”.

• Em todos os sistemas a impugnação é feita mediante forma comum assemelhada aos embargos disciplinados no direito brasileiro.

• A inversão do contraditório, em razão da eventualidade da própria atividade de conhecimento é marca característica do instituto plenamente acolhido em todas as legislações.

• O procedimento injuntivo constitui uma das formas mais próprias encontradas nas legislações para tutelar os créditos de pequeno monte desprovidos de título executivo, segundo a sua estrutura formal e função a que é destinado.

Notas _____________________________________________________________________

1 É crédito reconhecido a Calamandrei o batismo em puro e documental, os nomes dos dois sistemas conhecidos de tutela monitória.

2 MARQUES, Wilson. Ação Monitória, Revista Forense, nº 348, p. 205. CRUZ E TUCCI, José Rogério. A Ação Monitória, 3ª edição. São Paulo: RT,  p. 18. ARMELIN, Donaldo. Tutela Jurisdicional Diferenciada. Revista de Processo, nº 65, p. 45-55.

3 AMARAL SANTOS, Moacyr. Ações Cominatórias no Direito Brasileiro, 1º tomo, 3ª edição. São Paulo: Max Limonad, 1962, p. 129 usque 133.

4 MARCATO, Antonio Carlos. O processo monitório. 2ª edição, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 41.

5 CARREIRA ALVIM, J. E. Procedimento Monitório. Curitiba: Juruá, 1995, p. 27 usque 29.

6 CARVALHO NETTO, José Rodrigues. Da Ação Monitória. São Paulo: RT, 2001, p. 28 e seguintes.

7 AMARAL SANTOS, Moacyr. P. 129 e seguintes.

8 Idem.

9 AMARAL SANTOS, Moacyr. P. 129 e seguintes.

10 AMARAL SANTOS, Moacyr. p. 129 e seguintes.

11 EVANGELISTA, Stefanomania. IANNELLI, Domenico. Manuale di Procedure Civile. Turim: VteT, 1996, p. 417.

12 AMARAL SANTOS, Moacyr. p. 129 e seguintes.

13 CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Op.cit. p. 53.

14 AMARAL SANTOS, Moacyr. p. 129 e seguintes.

15 AMARAL SANTOS, Moacyr. p. 129 e seguintes.