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Novo Marco Legal para a Primeira Infância

26 de abril de 2016

Desembargador do TJERJ, membro da Associação Juízes para a Democracia, membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania

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Siro-DarlanNo dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a presidenta da República, Dilma Rousseff, sancionou a Lei no 13.257, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal); a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008; e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012.

A lei cria a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância e amplia a atenção às crianças, apoiando o desenvolvimento infantil de forma integrada. O novo marco legal reforça o caráter intersetorial da Ação Brasil Carinhoso, iniciativa do Plano Brasil Sem Miséria lançado em maio de 2012 para combater a extrema pobreza nessa parcela da população.

O Brasil Carinhoso reforçou a perspectiva de atenção integral para a primeira infância ao desenvolver políticas de acesso à renda, à educação e à saúde. Com ele, as famílias com crianças e adolescentes de até 15 anos foram beneficiadas com um complemento de renda do Bolsa Família, que garante que 8,1 milhões de crianças se mantenham fora da extrema pobreza.

Por esse marco legal, as prefeituras foram esti-muladas a ampliar as vagas em creches públicas e conveniadas para as crianças de baixa renda. Entre 2011 e 2015, houve crescimento de mais de 56% de beneficiários do Bolsa Família com até 3 anos de idade matriculados em creches, chegando a 755,8 mil crianças no ano passado. Além delas, há mais 79,9 mil que estão na pré-escola, totalizando 833,7 mil crianças do Bolsa Família recebendo alimentação, cuidados e estímulos para uma vida mais plena.

Através desse Marco Legal da Primeira Infância adotou-se a proposta que determina um conjunto de ações para o início da vida, entre zero e seis anos de idade. Uma novidade auspiciosa é o aumento do tempo para os pais cuidarem dos recém-nascidos. O texto legal aumenta, por meio do Programa Empresa-Cidadã, para 20 dias a licença-paternidade. A atual legislação já estipula em seis meses a duração da licença-maternidade e os mesmos direitos estão assegurados a quem adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção.

O projeto amplia e regulamenta as medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e estabelece como questões prioritárias a serem cuidadas na primeira infância a saúde, a alimentação, a educação, a convivência familiar e comunitária, a assistência social, a cultura, o lazer, o espaço e o meio ambiente; fixa regras de proteção para as gestantes e as famílias com crianças na primeira infância que deverão receber orientação e formação sobre maternidade e paternidade responsáveis, aleitamento materno, alimentação complementar saudável, crescimento e desenvolvimento infantil integral, prevenção de acidentes e educação sem uso de castigos físicos, como prevê o inciso IV do artigo 129 do ECA. A ideia é a formação e a consolidação dos vínculos afetivos e o estímulo ao desenvolvimento integral na primeira infância.

A lei ainda expande a educação para as crianças de zero a três anos. As instalações e os equipamentos devem obedecer aos padrões de infraestrutura estabelecidos pelo Ministério da Educação. Além disso, o Poder Público deverá organizar e estimular a criação de espaços lúdicos em locais onde há circulação de crianças.

O Marco Legal também obriga a União a manter registros com os dados do crescimento e desenvolvimento da criança. Além disso, a União deverá informar à sociedade quanto gastou em programas e serviços para a primeira infância. As mesmas obrigações terão os Estados e Municípios.

Essa medida legal vem suprimir uma lacuna de políticas e ações voltadas à primeira infância no Brasil e o projeto é um reconhecimento dessa fase como base para todas as aprendizagens. Como é sabido, a neurociência classifica esse período como fundamental na estruturação do ser humano, por ser o período em que pelo menos 80% das conexões dos neurônios se formam. Estudos demonstram que a qualidade de vida de uma criança entre o nascimento e os seis anos de idade pode determinar ou não as contribuições que ela trará à sociedade quando adulta.

Trata-se de uma legislação muito avançada por estender o olhar sobre todos os direitos da criança na primeira infância e na sua relação com a família. Essa é mais uma lei de altíssima relevância e qualidade, mas resta saber se seremos capazes de proteger a nossa infância. Alguém já disse que se pode reconhecer o valor de um país pelo modo como trata suas crianças, portanto, é disso que trata o projeto de lei.

Destinar verbas do orçamento público para o desenvolvimento sadio de crianças e adolescentes não significa gastar na primeira infância. Não é despesa, mas sim investimento. Cada criança que não é bem cuidada nessa fase é um pedaço do futuro que é consumido no Brasil inteiro. Por essa razão, o Marco Legal da Primeira Infância pode impactar, inclusive, na melhoria da segurança pública.

O projeto sancionado abre caminho para o fortalecimento da profissão dos educadores da primeira infância, o que também é algo tratado de maneira improvisada no Brasil, embora seja um setor da área educacional extremamente complexo.

O legislador definiu como primeira infância o período que abrange os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida da criança e ampliou o conceito de prioridade absoluta em assegurar os direitos da criança, do adolescente e do jovem, nos termos do art. 227 da Constituição Federal e do art. 4o da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que implica o dever do Estado de estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam às especificidades dessa faixa etária, visando a garantir seu desenvolvimento integral.

A lei fixou as regras através das quais as políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos da criança na primeira infância devam ser elaboradas e executadas visando:

I – atender ao interesse superior da criança e à sua condição de sujeito de direitos e de cidadã;

II – incluir a participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito, em conformidade com suas características etárias e de desenvolvimento;

III – respeitar a individualidade e os ritmos de desenvolvimento das crianças e valorizar a diversidade da infância brasileira, assim como as diferenças entre as crianças em seus contextos sociais e culturais;

IV – reduzir as desigualdades no acesso aos bens e serviços que atendam aos direitos da criança na primeira infância, priorizando o investimento público na promoção da justiça social, da equidade e da inclusão sem discriminação da criança;

V – articular as dimensões ética, humanista e política da criança cidadã com as evidências científicas e a prática profissional no atendimento da primeira infância;

VI – adotar abordagem participativa, envolvendo a sociedade, por meio de suas organizações representativas, os profissionais, os pais e as crianças, no aprimoramento da qualidade das ações e na garantia da oferta dos serviços;

VII – articular as ações setoriais com vistas ao atendimento integral e integrado;

VIII – descentralizar as ações entre os entes da Federação;

IX – promover a formação da cultura de proteção e promoção da criança, com apoio dos meios de comunicação social.

 Estabeleceu ainda o protagonismo infantil firmando que a participação da criança na formulação das políticas e das ações que lhe dizem respeito tem o objetivo de promover sua inclusão social como cidadã e dar-se-á de acordo com a especificidade de sua idade, devendo ser realizada por profissionais qualificados em processos de escuta adequados às diferentes formas de expressão infantil.

Para fins de execução das políticas públicas fixou as prioridades para a primeira infância como sendo: a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica.

Estabeleceu normas para a implementação da Política Nacional Integrada para a primeira infância que deverá ser formulada e implementada mediante abordagem e coordenação intersetorial que articule as diversas políticas setoriais a partir de uma visão abrangente de todos os direitos da criança na primeira infância.

Descentralizou e compartilhou responsabilidades de todos os entes federativos estabelecendo que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir, nos respectivos âmbitos, comitê intersetorial de políticas públicas para a primeira infância com a finalidade de assegurar a articulação das ações voltadas à proteção e à promoção dos direitos da criança, garantida a participação social por meio dos conselhos de direitos.

O legislador ampliou o texto do artigo 3o do Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelece que crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana para aplicá-lo a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.

A lei também deu nova redação ao artigo 8o do ECA para fixar que todas as mulheres terão acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e às gestantes nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde, nos seguintes termos:

  • 1o O atendimento pré-natal será realizado por profissionais da atenção primária;

§ 2o Os profissionais de saúde de referência da gestante garantirão sua vinculação, no último trimestre da gestação, ao estabelecimento em que será realizado o parto, garantido o direito de opção da mulher;

§ 3o Os serviços de saúde onde o parto for realizado assegurarão às mulheres e aos seus filhos recém-nascidos alta hospitalar responsável e contrarreferência na atenção primária, bem como o acesso a outros serviços e a grupos de apoio à amamentação;

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§ 5o A assistência referida no § 4o deste artigo deverá ser prestada também a gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção, bem como a gestantes e mães que se encontrem em situação de privação de liberdade;

§ 6o A gestante e a parturiente têm direito a um acompanhante de sua preferência durante o período do pré-natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato;

§ 7o A gestante deverá receber orientação sobre aleitamento materno, alimentação complementar saudável e crescimento e desenvolvimento infantil, bem como sobre formas de favorecer a criação de vínculos afetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança;

§ 8o A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos;

§ 9o A atenção primária à saúde fará a busca ativa da gestante que não iniciar ou que abandonar as consultas de pré-natal, bem como da puérpera que não comparecer às consultas pós-parto.

§ 10. Incumbe ao poder público garantir, à gestante e à mulher com filho na primeira infância que se encontrem sob custódia em unidade de privação de liberdade, ambiência que atenda às normas sanitárias e assistenciais do Sistema Único de Saúde para o acolhimento do filho, em articulação com o sistema de ensino competente, visando ao desenvolvimento integral da criança.

 A nova lei ampliou as responsabilidades dos pais e determinou que os agentes que trabalham nas diversas áreas de atenção à primeira infância sejam capacitados com especialização e formação continuada, incluindo os conhecimentos sobre os direitos da criança e do adolescente e sobre desenvolvimento infantil.

Finalmente, a Lei no 13.257/16, publicada no dia 9 de março, alterou o art. 318 do Código de Processo Penal para acrescentar mais duas hipóteses em que será possível a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, além de deixar de exigir que este direito somente possa ser usufruído pela mulher gestante em risco ou acima do sétimo mês de gravidez.

Desse modo, com a alteração, deverá o Juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até doze anos de idade incompletos; ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até doze anos de idade incompletos.

Essa modificação foi extremamente salutar e põe em relevo a importância do princípio da dignidade da pessoa humana (especialmente das mulheres e das crianças) dando especial relevância ao princípio do interesse superior da criança e do adolescente.