O alcance da proteção processual ao trabalhador idoso em face do princípio da anterioridade da penhora

14 de fevereiro de 2013

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Uma pesquisa realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em 2010, revela uma elevação de quase 13% no nível de emprego dos trabalhadores com mais de 65 anos. O aumento da expectativa de vida da população brasileira amplia sobremaneira o tempo em que o trabalhador se mantém economicamente ativo.

Nesse contexto, as reclamações trabalhistas ajuizadas por trabalhadores idosos constituem uma realidade inegável: no Tribunal Superior do Trabalho, até novembro de 2012, havia mais de quatro mil processos com pedido de tramitação preferencial com amparo no Estatuto do Idoso, o qual criou um arcabouço de proteção que exorbita a esfera do direito material, delineando garantias processuais.

Tais dados impõem uma importante reflexão sobre o princípio da razoável duração do processo do trabalho sob o prisma da proteção ao trabalhador idoso. Para Luiz Eduardo Alves de Siqueira e Marcelo de Almeida:

A Lei nº 10.741, de 01.10.2003, denominada Estatuto do Idoso, insere-se, dentro do que já era prática recorrente pelos legisladores brasileiros, como um microssistema jurídico. Essa denominação, ofertada por Foucault em seu Microfísica do poder (1998), tem em vista normas setoriais que procuram, o mais minuciosamente possível, tratar os mais amplos aspectos relacionados ao tema. Assim é que o Estatuto do Idoso contempla normas de proteção social, bem como dispositivos de natureza criminal, processual, administrativa, com a observação de que há especificidade, mas não isolamento, sob pena de fragmentação do sistema jurídico, sem a necessária coesão que as normas devem apresentar, tendo na Constituição Federal um núcleo agregador. (O Idoso e o Direito ao Trabalho: Alguns Lineamentos. Revista de Direito do Trabalho. volume 144, p. 60, out.-dez./2011)

Não há dúvida de que é no procedimento de execução que se efetiva a recomposição do direito vulnerado, satisfazendo-se a parte credora através da transferência do bem da vida objeto da controvérsia judicial. Tanto o Estatuto do Idoso ( Lei nº 10.741/2003) quanto o Código de Processo Civil asseguraram a prioridade de tramitação dos processos e procedimentos, incluindo-se a execução, salvaguardando a prioridade na execução dos atos e diligências judiciais.

De outro lado, os artigos 612 e 711 do Código de Processo Civil dispõem no sentido de que a anterioridade da penhora implica a preferência do credor sobre os bens penhorados. Diante da literalidade desses dispositivos e reduzindo-se o corte epistemológico do objeto de estudo ao processo do trabalho, indaga-se: O alcance da proteção processual ao trabalhador idoso se sobrepõe ao princípio da anterioridade da penhora que detém um trabalhador comum?

A controvérsia, antes mesmo de um conflito aparente de normas, envolve uma colisão de princípios: de um lado, a proteção ao idoso, de outro, a anterioridade da penhora.

Acerca da colisão de princípios, invoco a lição de Robert Alexy, cuja doutrina é explicitada por Paulo Bonavides no seguinte excerto:

Afirma Alexy: ‘Um conflito entre regras somente pode ser resolvido se uma cláusula de exceção, que remova o conflito, for introduzida numa regra ou pelo menos se uma das regras for declarada nula (ungültig).’ Juridicamente, segundo ele, uma norma vale ou não vale, e quando vale, e é aplicável a um caso, isto significa que suas conseqüências jurídicas também valem.

Com a colisão de princípios, tudo se passa de modo inteiramente distinto, conforme adverte Alexy. A colisão ocorre, p. ex., se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, hipótese em que um dos princípios deve recuar. Isto, porém, não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção nele se introduza.
Antes, quer dizer — elucida Alexy — que, em determinadas circunstâncias, um princípio cede ao outro ou que, em situações distintas, a questão de prevalência se pode resolver de forma contrária.

Com isso – afirma Alexy, cujos conceitos estamos literalmente reproduzindo – se quer dizer que os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, e que o princípio de maior peso é o que prepondera.

Já os conflitos de regras – assevera o eminente Jurista – se desenrolam na dimensão da validade, ao passo que a colisão de princípios, visto que somente princípios válidos podem colidir, transcorre fora da dimensão da validade, ou seja, na dimensão do peso, isto é, do valor.

Da posição de Alexy se infere uma suposta contigüidade da teoria dos princípios com a teoria dos valores. Aquela se acha subjacente a esta. Se as regras têm que ver com a validade, os princípios têm muito que com os valores. (Curso de Direito Constitucional, 17ª Edição, Ed. Malheiros, 2005, p. 279-280).

A prevalência de um determinado princípio não repercute no âmbito de validade do arcabouço legal amparado no outro princípio em colisão, isso porque a técnica da ponderação de valores dar-se-á no caso concreto, a fim de que se possa extrair a máxima efetividade dos postulados.

O princípio da proteção ao idoso nada mais é que um corolário da dignidade da pessoa humana, diante da presunção de que o indivíduo idoso encontra-se em situação de vulnerabilidade, daí a merecer especial proteção do Estado. Assim, o princípio da razoável duração do processo e da garantia dos meios que assegurem a celeridade de sua tramitação, lapidado no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, comporta alcance diverso para o jurisdicionado idoso, em face da reduzida expectativa de vida que lhe resta, de modo que uma justiça em prazo razoável para o trabalhador comum nunca será uma justiça eficaz para o trabalhador idoso, se já falecido.

A interpretação conferida aos artigos 71 da Lei nº 10.741/2003 e 1.211-A do CPC deve considerar as peculiaridades do seu destinatário, cotejando-se com a amplitude do princípio contido no inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna. Ao determinar a “prioridade na tramitação dos processos” e “na execução dos atos e diligências judiciais”, a redação dos artigos 71 do Estatuto do Idoso e 1.211-A do CPC alcança também a prioridade na ordem de penhora, pois, no caso concreto, considerando a técnica de ponderação de valores e o escopo de obter-se a máxima efetividade dos postulados, impõe-se a prevalência do princípio da proteção ao idoso, como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido já decidiu a Subseção II de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, em sede de mandado de segurança, da minha relatoria, assegurando ao trabalhador idoso o direito de preferência de tramitação na penhora:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGU­RANÇA. PREFERÊNCIA DE EXEQUENTE IDOSO NA ORDEM DE PENHORA SOBRE CRÉDITO FUTURO DA EXECUTADA. ARTIGO 71 DO ESTATUTO DO IDOSO E ARTIGO 1.211-A DO CPC. ALCANCE. 1.Mandado de segurança pretendendo prioridade de tramitação processual de idoso na ordem de penhora. A reclamação trabalhista foi proposta em 1995 e o reclamante, ora impetrante, conta 78 anos de idade, sem perspectiva de satisfação do seu crédito. 2. No caso em exame, antes mesmo de um conflito aparente de normas, a controvérsia envolve uma colisão de princípios: de um lado, a proteção ao idoso, de outro, a anterioridade da penhora. Na esteira da doutrina perfilhada por Alexy, explicitada por Paulo Bonavides, a prevalência de determinado princípio não repercute no âmbito de validade do arcabouço legal amparado no outro postulado em colisão. A proteção ao idoso nada mais é que um corolário da dignidade da pessoa humana, diante da presunção de que o indivíduo idoso encontra-se em situação de vulnerabilidade, daí a merecer especial proteção do Estado. O princípio da razoável duração do processo e da garantia dos meios que assegurem a celeridade de sua tramitação, insculpido no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, comporta alcance diverso para o jurisdicionado idoso, em face da reduzida expectativa de vida que lhe resta, de modo que uma justiça em prazo razoável para um indivíduo comum nunca será uma justiça eficaz para o idoso, se já falecido. Assim, a interpretação a ser conferida ao art. 71 da Lei nº 10.741/2003, bem como ao art. 1.211-A do CPC, deve considerar as peculiaridades do seu destinatário, cotejando-se com a amplitude do princípio contido no inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna. Dessa feita, a redação dos citados dispositivos, ao determinar a “prioridade na tramitação dos processos” e “na execução dos atos e diligências judiciais” alcança também a prioridade na ordem de penhora de créditos futuros da empresa executada, pois, no caso concreto, considerando a técnica de ponderação de valores e o escopo de obter-se a máxima efetividade dos princípios, exsurge a imperiosa prevalência do princípio da proteção ao idoso, como consectário, inclusive, do princípio da dignidade da pessoa humana. Recurso ordinário conhecido e parcialmente provido. (TST-ROMS-174300-50.2004.5.01.0000, Relator Ministro Emmanoel Pereira, SBDI-2, Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho de 06 ago. 2010).

Ao argumento de negativa de vigência aos artigos 612 e 711 do CPC, impõe-se afirmar que não se está contestando a validade às normas neles contidas, mas, apenas, reduzindo sua carga deôntica, a fim de compatibilizá-los, no conflito real de que se cogita, com o princípio da dignidade da pessoa humana, sob o seu viés de proteção ao trabalhador idoso, observando-se que tal conclusão não implica a prioridade absoluta, devendo ser respeitada a ordem cronológica entre todos os exequentes idosos.

A prioridade ao trabalhador idoso se impõe a todas as sociedades que homenageiam o princípio da dignidade humana, e não apenas com relação à esfera da prestação jurisdicional. Em emblemática e inspiradora ficção, o escritor Adolfo Bioy Casares resumiu, em “Diário da Guerra do Porco”, as urgências e agruras da velhice:

A velhice era um castigo sem saída, que não permitia desejos nem ambições. De onde tirar a ilusão para fazer planos, já que uma vez realizados o sujeito não estará mais aí para gozá-los, ou estará pela metade?

Os jovens não entendem até que ponto a falta de futuro subtrai ao velho todas as coisas importantes da vida. A enfermidade não é o enfermo, mas o velho é a velhice, e não há outra saída senão a morte.