O Brasil perdeu um aguerrido combatente, Peçanha Martins

31 de julho de 2011

Compartilhe:

Em julho de 2010 recebi um telefonema: “Parabéns! Agora você tem a minha idade. Já não pode me chamar de velho”. Quem assim me cumprimentava era Peçanha Martins, meu colega de Superior Tribunal de Justiça – cinco meses mais velho que eu. Embora não houvesse programado festa, convidei-o para um bate-papo em minha casa.

À noite, ele e Clara apareceram. Trouxeram-me de presente, uma preciosa caneta-tinteiro Parker, retirada da coleção que ele mantinha com imenso ciúme. Começou a noite dissertando sobre a melhora da visão – resultado de operação oftálmica: “só agora percebo o quanto enxergava mal”.

Com a vista em ordem, ele se preparava para o cumprimento da “quarentena” que o impedia de advogar perante o Superior Tribunal de Justiça. Isso ocorreria em fevereiro.

A conversa desenvolveu-se em torno de política, futebol, literatura e vários assuntos. Peçanha – versado em todos – emitia opiniões recheadas de verve e pontuadas com a característica gargalhada. Queixa mesmo, ele só manifestava em relação às dores na coluna vertebral. Bebemos uísque, vinho, jantamos e, finalmente tomamos licor e conhaque. Bom de prato e mesa, ele nos acompanhou em tudo. Despedimo-nos com o compromisso de realizarmos, em curto prazo, um encontro dos ministros aposentados do STJ. Peçanha, aos 72 anos, continuava otimista, cheio de planos e esperanças.

Pouco tempo depois, chega-me a notícia: Peçanha submetera-se, em São Paulo, a cirurgia de emergência.

Inquieto, procurei comunicar-me com a família. Obtive o telefone do hospital, na esperança de falar com Clara ou algum dos filhos. Surpreendentemente, o próprio Peçanha me atendeu. Confirmou-me a notícia. De fato, submetera-se a cirurgia de grande extensão. Contou-me tudo, sem demonstrar maior emoção: “agora, é iniciar a luta pela vida”.

Às vésperas do Natal, ele retornou a Brasília. Vacilei em visitá-lo. Decidi fazê-lo, mas levava comigo o medo de encontrar o amigo prostrado em uma cama, constrangido com minha presença. Nada disso! Peçanha me aguardava em seu escritório domiciliar, operando um computador. Cheio de ânimo, reteve-me por largo tempo, conversando sobre enorme gama de assuntos, não se furtando a expor planos sobre a advocacia que pretendia exercer a partir de fevereiro, quando completaria três anos de aposentadoria. Estava consciente do risco que corria, mas, em nenhum momento mostrou desânimo. A respeito de tais riscos fez apenas um comentário: lutarei até o fim.

Findo o período natalino, ele voltou a São Paulo, na tentativa de debelar novo avanço da doença. Antes de ele partir, voltei a falar-lhe: “vou continuar a luta, em S. Paulo”. “Vai tirar de letra – disse eu – você já ganhou paradas mais duras. Basta lembrar suas discussões com Demócrito Reinaldo e Eliana Calmon”. Ouvi, então, pela última vez, sua inconfundível gargalhada.

Não voltamos a nos falar. A partir de então, meus telefonemas eram atendidos por um dos familiares: Peçanha estava na UTI. O último desses contatos foi feito por minha mulher, que ouviu de Luciana a afirmação de que a situação era muito grave. Poucos dias depois, chegou-me a notícia: Peçanha falecera.

Descrevo esses últimos contatos, para marcar o caráter de Francisco Peçanha Martins: firme, até diante da morte, cuja proximidade ele percebia.

Ao longo dos treze anos de convivência no Superior Tribunal de Justiça, travei com Peçanha Martins uma sólida amizade – amizade daquelas geradas na afinidade, no respeito, na admiração. Amizade que, após contaminar Yvette e meus filhos, estendeu-se até Clara, Luciana e Alvinho.

Ao escrever estas linhas, eu deveria afirmar suspeição, mas não o faço. Não o faço em razão de algo que aprendi com o próprio Francisco Peçanha Martins. Para ele, amizade tem como limites o dever e a verdade.

Testemunhei, em várias oportunidades, seu sofrimento por estar em circunstância de votar contra um amigo, cujo direito não lhe parecia bom. Nessas oportunidades, ele arrostava a dificuldade e ia em frente. Homenageava sua consciência, votando contra a pretensão do amigo. Fazia isso com tanto critério, com tanta serenidade, que – longe de perder a amizade – conquistava mais respeito do amigo contrariado.

Inspirado nesses exemplos, vou em frente, prestando o compromisso de ser fiel à verdade.

Começo por afirmar que o Ministro Peçanha Martins não se limitou em deixar o tempo correr, enquanto cumpria estritamente o encargo que lhe impunha o cargo.

Não! Peçanha deixou no Judiciário a marca traduzida no binômio: compreensão com as pretensões decentes; dureza para com aquelas que julgava espúrias.

O epigramatista Cansanção das Alagoas, frequentador do TSE, observou que o Ministro alternava personalidades: ora se manifestava como Francisco Peçonha, caçador impiedoso de mandatos; ora aparecia como Chiquinho Ternura, consolador dos aflitos.

Em uma das sessões, enquanto se mostrava a faceta Francisco Peçonha, o maldito Cansanção saiu-se com estas estrofes:

“Peçanha Martins

Era de paz e amor

Jurista fino

E pescador

 

No eleitoral

O fio virou

Deixou de pescar

Virou cassador

 

Em cassar mandatos

Se especializou

Chiquinho Ternura

Oh quanta tristeza!

Virou de repente

Peçonha Malvadeza”

Supina injustiça, digo eu, a plenos pulmões. Em verdade o Ministro Peçanha Martins manteve no Tribunal Superior Eleitoral a coerência que o caracterizou no STJ e em todas as atitudes ao longo da vida. Nasceu com um enorme coração, emprenhado de bondade, mas a vida o levou ao compromisso com os interesses superiores da Justiça e do Direito.

Dava gosto acompanhar Francisco Peçanha em suas incursões a um mercado popular ou feira de antiguidades (dois de seus hobbies).

Aí, ele se revelava, demonstrando conhecimento gastronômico ou artístico, barganhando preços, distribuindo seu carisma no meio do povo simples, discutindo (com reconhecida autoridade) qual a melhor maneira de preparar uma moqueca. Parecia transbordar de felicidade.

Nessas oportunidades, eu o imaginava candidato a algum cargo eletivo. Seria imbatível.

Peço, assim, vênia ao poeta Cansanção, para contestá-lo: Peçonha Malvadeza e Chiquinho Ternura foram uma só pessoa, atuando em situações diversas.

A bondade de ambos revela-se na gargalhada noelina que sublinhava seus pronunciamentos: Oh; Oh; Oh! Parecia dizer para o interlocutor:

– Não se preocupe. Você é meu amigo; sua pretensão é que não prestava.

Diante de tanta simpatia, o mais infeliz dos derrotados saía consolado.

Defensor intransigente de seus pontos de vista, Peçanha eriçava-se por inteiro, quando alguém tentava convencê-lo de algo que lhe parecia absurdo.

Isso acontecia sempre que ele ouvia um elogio ao Art. 557 do Código de Processo Civil. Semelhante louvor era sempre respondido com uma descompostura.

Sua implicância com o Art. 557 tinha explicação: liberal empedernido, Peçanha tinha a firme convicção de que julgamento de segundo grau deve ser, necessariamente, colegiado.

– Resolver apelação por despacho, Nunca!

Era, pois, um baiano desnaturado: o único que detesta despachos.

Leitor de Voltaire, Peçanha afirmava-se portador de humildade intelectual suficiente para, uma vez convencido, voltar atrás em suas convicções.

Dizem, contudo, seus amigos mais antigos, que presenciar uma retratação dessas era mais difícil do que acertar todos os números da loteria.

Originada em teimosia ou na firmeza de convicções, a irretratabilidade de pontos de vista não descaracterizou Peçanha como grande juiz.

É que sua judicatura foi construída sobre erudição, senso jurídico e – como argamassa – a mais pura decência.

Esses três ingredientes, ele os herdou do saudoso Ministro Álvaro Peçanha Martins, de quem também fui amigo.

Peçanha Martins: pai e filho.

O mesmo espírito, a mesma franqueza; a mesma lealdade.

Peçanha filho, marcava cada tirada de humor, com sonora gargalhada, que fazia lembrar o lendário Papai Noel.

Peçanha – o pai – não ria jamais. Fazia blagues, com a expressão mais séria do mundo. Debito a ele o fracasso de minha abortada carreira de guerrilheiro.

No dia seguinte ao malfadado “Pacote de Abril”, lançado pelo General Geisel, fui despachar com o velho Peçanha. Jovem advogado, desabafei:

– Diante de uma violência dessas, dá vontade de cair no cangaço!

A resposta foi imediata:

– Você não sabe atirar, nunca passou fome. O que vai fazer no cangaço? Ora, deixe de besteira!

Desisti do cangaço. O Brasil perdeu um aguerrido combatente.

Foi assim o velho Peçanha. Era assim o jovem Peçanha. Quem os conheceu pode conferir. A diferença estava na gargalhada.

A gargalhada, é bom repetir, não excluía a seriedade e a energia com que Peçanha Martins encarava seus deveres e desafios. Sua atuação no STJ e no TSE é um rosário de atestados a demonstrarem a firmeza de sua ação.

É pena que a doença traiçoeira haja frustrado seu tão esperado retorno à advocacia plena: levou-o antes de se escoar o período de quarentena.

Perderam os pretórios brasileiros. Ressentem-se seus amigos, privados de um grande interlocutor e – acima de tudo – de um conselheiro leal, prudente, bem-humorado, franco, sincero.

Peçanha deveria ter adiado a partida. Sua pressa causou-nos um prejuízo danado.