Edição

O Casuísmo Constitucional

30 de novembro de 2006

Membro do Conselho Editorial e Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia

Compartilhe:

Uma Constituição –, como de resto todo o ordenamento jurídico – deve buscar, de maneira especial, a conciliação entre o sistema tendencialmente estático de suas normas originárias e a dinâmica das forças sociais.

Para alcançar esse equilíbrio, duas técnicas têm sido empregadas. Numa primeira, o texto constitucional se restringe ao essencial, aos grandes princípios e à organização superior do Estado, deixando à legislação e à construção jurisprudencial o trabalho de adapta-lo à cronodinâmica das forças sociais: é a técnica sintética. Noutra, o texto constitucional procura estabelecer um equilíbrio pela imposição de maior número de princípios e regras à própria evolução das forças sociais: é a técnica analítica.

À Constituição sintética, portanto, não se impõem os fatos sociais, há uma adaptação permanente. A analítica, diferencialmente , procura condicionar e regrar os fatos sociais; a adaptação deve ser da sociedade ao texto. Em última análise, algo deve flexibilizar-se: ou a constituição ou a sociedade.

O texto analítico flexível, ao pretender cobrir todos os aspectos da vida política, econômica e social de uma nação, dissipa e reduz a majestade e a intangibilidade dos grandes princípios e da superior organização do Estado, colocando-os no mesmo nível de preceitos de segunda ou terceira importância. Ao dispor abundantemente sobre casos e hipóteses específicas, para confirmá-los ou excepcioná-los dos princípios gerais, a Constituição analítica tende a deixar-se penetrar pelo casuísmo.

À primeira vista, o casuísmo configuraria uma modalidade do tipo analítico. O problema, entretanto, é outro: não se trata de optar entre uma constituição sintética e uma constituição analítica, mas entre uma Constituição tout court e um “programa de governo constitucional”.

As Constituições sintéticas e analíticas são formas que contam com suas preferências doutrinárias. Ambas tratam de matéria constitucional, variando a amplitude e a profundidade do tratamento. Escolher entre uma e outra técnica é um problema de doutrina juspolítica.

Outra coisa é a constituição casuística: ao refugir da matéria constitucional e descer às explicitações reservadas à legislação ordinária, não estaremos mais diante de opção pela técnica analítica e sim de um texto tecnicamente defeituoso. O casuísmo surge, portanto, em nível constitucional, como uma patologia do texto analítico.

Varias razões podem levar ao casuísmo. Numa Constituição, em primeiro lugar, o receio de que o legislador complementar ou ordinário não possa ou não queira preocupar-se com determinadas hipóteses. Se o receio é de que os futuros representantes não possam fazê-lo, temos o casuísmo elitista; se o temor é de que não o desejem, temos o casuísmo preconceituoso: ambos levando a um exagero de regulamentações e propósitos intervencionistas; mais do que seria razoável para uma sociedade moderna e democrática.

A imposição de um modelo político, com minudencias que descem da matéria constitucional para esgotar temas reservados à legislação ordinária e, até, às opções administrativas regulamentares, não é, apenas, um defeito técnico muito grave da elaboração constitucional: é uma forma de totalitarismo – o totalitarismo normativo, espécie tão ou mais nociva que o totalitarismo tradicional.

Ao inibir o livre exercício das opções políticas, que numa democracia o povo deve manifestar continuamente através de seus representantes, a Constituição casuística, torna-se visceralmente antidemocrática.

A concentração exagerada de poder na Constituição também é uma forma de totalitarismo, quando seu resultado é inibir o funcionamento normal da vida política. É conhecida a versão ideológica do totalitarismo casuístico: a submissão da vida política de uma sociedade a regras e preceitos detalhados, sacrificando, no processo, as liberdades de escolha política, inerentes à democracia.

Para ser democrática, uma Constituição não pode ser um elenco infindável de soluções. Seu papel é oferecer uma moldura, dentro da qual o povo poderá, durante muitos anos, continuar a buscar seu caminho.

Como poderia, então, ser certo dizer-se que o poder emana do povo quando o casuísmo o bloquearia permanentemente no “emaranhado de conceitos que se aproximam muito mais de um plano de governo que de uma lei fundamental?”.

Esta matéria nem mesmo é de lei complementar. É programa de governo que poderia, até, vazar-se em lei ordinária. Esse programa, acarretando novos ônus para o Estado, que devem ser assumidos sem consideração dos meios considerados, acena para a burocratização das soluções e a estatização. Por isso, o que pode ser um excelente programa de governo poderá ser, mal posto, um casuísmo demagógico e perigoso. Tudo é questão de se saber o que se deve dispor numa constituição.

Mas, nem mesmo o legislador constitucional, expõe Miguel Reale, “pode conferir-se direitos de tutor, decidindo a priori sobre o conteúdo ou o resultado das ações inovadoras”…

O que se pode esperar de uma constituição casuística? Duas coisas podem ocorrer: desmoraliza-se a Constituição, pelo não cumprimento, ou se a modifica, perigosamente, no calor das crises.

“A lição histórica é eloqüente. Quanto mais casuística a Carta, menos tempo resiste. A Carta Imperial, a mais concisa, foi a que mais resistiu: 67 anos, com 5 ou 6 alterações; a 1ª Republicana, de 1891, durou 47 anos, tinha 78 artigos; a de 1934, mais que dobrou, 173 artigos, mais 39 de complementos: durou 3 anos; a de 1937, durou o tempo da ditadura; a de 1946, ascendeu a 222  artigos e vigiu 20 anos; as de 1967 e 1969, elaboradas em novo período de exceção, chegaram a 210 artigos e são, reconhecidamente, casuísticas, inservíveis a uma prática democrática ampla”.

Nossos constituintes de 88, lamentavelmente, ignoraram todas essas lições. Tornaram o casuísmo uma constante em todo o texto magno. Nele, tudo se prevê, tudo se regula. Antevêem todas as hipóteses e dispõe-se sobre todas as soluções. Seus 245 artigos, parágrafos e incisos, acrescidos aos 70 das disposições transitórias, além das sucessivas e infindáveis emendas, transformaram a Constituição num variado repertório de temas, sem distinção entre o que realmente deve ser matéria incluída na Carta Magna e o que poderá ser objeto de legislação complementar, ordinária e até regulamentar.

Para fugir ao casuísmo, a Constituição atual brasileira deveria ser principiológica, concisa, e restrita aos temas constitucionais, isto é, aos fenômenos do universo do poder, que devem ser tratados com intuito de generalidade e de permanência numa nação. “Um corpo forte, esbelto, sintético, essencial, compendiado, estrutural, nunca penosamente adiposo e extensivo”.