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O Controle de Constitucionalidade na visão de Ronald Dworkin

5 de março de 2004

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Vivemos um tempo de redescobrimento da democracia numa época em que a sociedade se torna, cada dia, mais pluralista e contingencial, onde a comunicação dos diferentes sistemas sociais diverge em um sentido que, durante algum momento, pode nos levar ao extremo do ceticismo em relação ao direito e às suas instituições conformadoras.

O lugar do Poder Judiciário na Constituição de 1988 coloca questões de extrema importância nos fóruns notáveis da sociedade como um todo, como é o caso da tensão entre a Democracia e a função de controle de normas em relação à Constituição.

Isso se mostra com mais intensidade na função constitucional atribuída ao Poder Judiciário de controlar a compatibilidade das normas criadas pelos poderes democraticamente eleitos. Isto porque, tal Poder é constituído por membros não eleitos pelo sufrágio universal e que não enfrentam o crivo eleitoral por suas decisões. Questões que envolvem a compatibilidade entre a norma impugnada e princípios abstratos e com grande carga axiológica ou questões que tratam de verdadeiras normas concretizadoras de políticas públicas passeiam pelo arenoso terreno entre a função constitucionalmente atribuída ao Poder Judiciário e sua usurpação.

É nesse sentido que a tese de Ronald Dworkin, jusfilósofo americano, contribui para o debate acerca do tema, não de forma a solucionar tais conflitos, mas para incentivar o debate público e acadêmico da tormentosa questão.

Para Dworkin a obrigação advinda das normas jurídicas não pode ser resumida pela coerção a elas inerentes. Para tanto, o autor norte-americano se ancora na idéia de direito como integridade (law as integrity) asseverando que:“Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática da comunidade”.

Dessa forma, Dworkin pretende conciliar a idéia de direito como processo de integração pelos seus aplicadores, tendo em conta a incidência e imposição de princípios morais, com a certeza jurídica necessária para uma efetiva crença no direito. Assim, a aplicação das normas jurídicas não deve se distanciar totalmente do passado, seja pelas discussões travadas no âmbito político quando da produção do direito, seja pelo “respeito” aos precedentes jurisprudenciais. É exatamente neste sentido que Dworkin colaciona a sua idéia de integridade do direito como coerência, tendo em vista que as normas ao serem abertas à interpretação e integração judicial e o conjunto de precedentes jurisprudenciais entendidos à luz dos princípios integrantes de determinada comunidade, conformam a possibilidade de coerência e justeza da decisão judicial. Assim assevera Dworkin:

“O direito como integridade (…): é tanto o produto da interpretação abrangente da prática jurídica quanto a sua fonte de inspiração. O programa que apresenta aos juízes que decidem os casos difíceis é essencialmente, não apenas contingentemente, interpretativo; o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso. Oferece-se como a continuidade – e como origem – das interpretações mais detalhadas que recomenda”.

A comunidade não se engessa ao obrigar-se a respeitar determinadas decisões tomadas em um passado da qual não compartilham as mesmas idéias e os mesmos princípios, “mas por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem, então o conjunto de normas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito.”. Sendo dessa forma, comunidade é na verdade uma comunidade de princípios ao exigir “que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção”.

Este não detalhamento da legislação decorre da própria natureza das normas que a compõem. Isto porque Dworkin diferencia dois tipos de normas jurídicas: as regras e os princípios. As regras, segundo ele, são aplicadas no modo do “tudo ou nada”. Dadas as circunstâncias fáticas de incidência da regra, estas devem ser aplicadas, bem como as exceções nelas expressamente estabelecidas. Já os princípios necessitam de interpretação e integração, uma vez que não são capazes de enumerar todas as condições de sua incidência. Assim, os princípios jurídicos detêm uma dimensão de “peso” ou “importância” de que carecem as regras, pois ao considerar um determinado fato regulado por diferentes princípios, um deles não será necessariamente inválido neste caso de colisão, a opção pela incidência de um deles resulta da determinação do seu “peso”ou “importância” naquele determinado caso.

Ao considerar os princípios como normas jurídicas e, portanto, afirmar que “eles possuem um conteúdo deontológico reconhecível, que os subtrai da contingência de derrogações e colocações arbitrárias”(Habermas), Dwrokin ataca frontalmente a tese positivista de que, na ausência de determinada norma ou na falta de clareza em seu sentido (hard cases), as decisões judiciais são tomadas de forma discricionária, pois os princípios, assim como as regras, são integrantes do direito e portanto vinculantes.

Cabe ressaltar, nessa oportunidade, a contraposição que Dworkin assinala entre argumentos de princípio (arguments of principle) que são metas para serem alcançadas para o atendimento de algum benefício econômico, político ou social em favor da comunidade e argumentos de política (arguments of policy) significando standards que devem ser observados, não pela busca daqueles benefícios, mas por constituírem exigências de justiça, equidade ou outra dimensão da moralidade. Os argumentos de que princípios são fundados em direitos, que devem ser assegurados, mesmo que contra fins coletivos desejados e institucionalizados pela maioria.

Todavia, identificar quais os princípios aplicáveis aos casos difíceis (hard cases), bem como determinar a preponderância de um princípio em relação ao(s) outro(s) não é tarefa fácil, pois que foi necessário inventar a figura de um juiz que, nas palavras de Habermas detém “capacidades intelectuais que podem medir-se com as forças físicas de um Hércules. O ‘juiz Hércules’ dispõe de dois componentes de um saber ideal: ele conhece todos os princípios e objetivos válidos que são necessários para a justificação; ao mesmo tempo, ele tem uma visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios argumentativos.”

Estas características hercúleas deste juiz hipotético lhe permitem interpretar o direito enquanto integridade como se fosse autor e crítico de uma obra literária (novell) em cadeia. Segundo essa concepção de interpretação criada por Dworkin, cada grupo de romancistas (legislador, juízes pretéritos, juizes diante de um caso atual, doutrinadores, advogados) escreve um romance em série, sendo que cada romancista interpreta os capítulos que recebeu e escreve um novo, que é então reescrito pelo seguinte e assim por diante. Assim, ele está vinculado, mesmo que de forma bem fraca, ao texto legislativo (da Constituição ou da Lei) bem como deve, ao menos, analisar os precedentes jurisprudenciais acerca do caso que deve decidir. Isto não significa que ele deve seguir, a priori, os precedentes jurisprudenciais, podem, todavia os servir de guias interpretativos para a coerência de sua decisão.

Ao ser promovido ao Olimpo (Suprema Corte Americana), na metáfora de Dworkin, Hércules vai utilizar sua teoria de direito como integridade com seu conseqüente modelo interpretativo aos casos envolvendo a Constituição. Dworkin, assim, analisa não quais poderes detém a Corte mais tão somente como devem ser eles exercidos, portanto, parte da premissa que a Corte tem o poder do controle de constitucionalidade, denominado nos Estados Unidos de judicial review.

Então, como atuará o Juiz Hércules quando se deparar com um hard case envolvendo a análise da compatibilidade de uma norma jurídica elaborada por quaisquer dos poderes democraticamente eleitos e a Constituição como um todo? Deverá ele limitar-se a uma interpretação literal do texto constitucional? E quando a norma constitucional não detiver certeza em sua linguagem? Como proceder? Quais questões pode o Juiz Hércules analisar no judicial review? Toda e qualquer lei, seja de que matéria for?

São as respostas destas indagações que vão demonstrar a tese de Dworkin acerca dos limites do Juiz Constitucional na fiscalização de constitucionalidade de normas.

Primeiramente, é necessário conceituar Democracia e Constituição segundo os ideais de Dworkin para responder as supracitadas questões. A maneira mais objetiva que o referido professor norte-americano tratou desses temas foi na sua obra “Freedom’s Law. The Moral Reading of the American Constitution” onde o autor identifica a leitura moral da Constituição com a interpretação do direito como integridade, principalmente diante de normas constitucionais que revelam princípios morais abstratos.

Dworkin afirma que tal leitura moral da Constituição é necessária apenas e tão somente quando se tratar de cláusula abertas e de natureza de principiológica, tais como os direitos fundamentais, pois a Constituição detém determinadas normas que não necessitam de uma leitura em tal sentido, vez que seu texto já traz consigo toda a normatividade e objetividade necessária à sua aplicação, como é o caso da norma que estipula a idade mínima de trinta e cinco anos para o cargo de Presidente (article II).

O significado de uma leitura moral da Constituição leva em conta as intenções do que os constituintes (framers) queriam dizer, mas num sentido fraco, não significando com isso que se deva perguntar quais outras intenções eles tinham, o que eles esperavam ocorrer, ou esperavam acontecer com o significado do “seu” texto. Também, e principalmente influi nesta leitura moral, os princípios morais inseridos expressa ou implicitamente no texto da Constituição, o que não significa que o Juiz deve deixar-se levar por suas próprias convicções morais.

A concepção de democracia, segundo Dworkin, rejeita a idéia de princípio majoritário, ou seja, que a comunidade deve ser governada pela soma estatística da vontade dos cidadãos externada pelos seus representantes democraticamente eleitos, mas concebe a Democracia Constitucional como o governo sujeito às condições da própria democracia cujas decisões coletivas feitas pelas instituições políticas que, na sua estrutura, composição e prática, trate todos os membros da comunidade como indivíduos, com igual dedicação e respeito.

Assim, a Jurisdição Constitucional serve de arena propícia para as questões de princípios, e é tarefa do instituto do judicial review proteger as liberdades individuais e os princípios morais instituídos pela Constituição contra uma vontade majoritária ilegítima.

Os direitos fundamentais seriam trunfos a serem utilizados pela comunidade no intento de impedir que a maioria eventual trate os seus co-cidadãos de forma injusta e não igualitária, assumindo um certo ativismo no sentido de responder a questões de princípios e não substituindo o julgamento dos poderes democraticamente eleitos quando estiver em questão argumentos sobre a melhor e mais equânime estratégia para satisfazer os interesses coletivos por meio de metas para os fins. Assim sendo, Hércules não seria usurpador do poder democrático do povo de autogovernar-se, tendo em vista que a democracia prescinde do respeito à minoria e o tratamento justo e equânime de todos os integrantes da comunidade, pois quando intervém na decisão Política para declarar inconstitucional determinada norma, Hércules estaria apenas “a serviço de seu julgamento mais consciencioso sobre o que é, de fato, a democracia e sobre o que a Constituição, mãe e guardiã da democracia, realmente quer dizer”.

Esperando contribuir para o aperfeiçoamento do debate desta questão, não poderia deixar de lançar as seguintes indagações: pode ser considerado mero ativismo judicial o cumprimento efetivo da Constituição do nosso país? ou as pessoas ainda não se tomaram de um verdadeiro sentimento constitucional para entender que a vontade da maioria pode ser rejeitada pelo Poder Judiciário quando aquela afrontar o texto da Constituição?