O controle do controle do controle…

5 de junho de 2003

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“O fundamento de uma boa República, mais até do que as boas leis, e a virtude dos cidadãos”.

De tempos em tempos, principalmente quando pesados imbróglios políticos toldam os céus de Brasília, uma ou outra autoridade resolve que a hora e boa para soltar uma “bomba de efeito moral”, de modo a dissipar, quem sabe, os “maus fluidos”. Lançado o balão-de-ensaio com o intuito de desviar a atenção das verdadeiras dificuldades enfrentadas pelo poder nacional, aproveita-se então o alvoroço para catapultar mais uma daquelas mirabolantes soluções afeitas a exterminar, quiçá definitivamente, conhecidos problemas que de há muito desafiam e embaraçam a cúpula dirigente do país.

Desta vez, requenta-se a estratégia com assunto antigo – controle externo do Poder judiciário, que passa a condição de antídoto genial, autentica saída mágica a reclamada morosidade na tramitação dos processos jurisdicionais, a esta altura a maior responsável pelo entrave na pauta flamejante do desenvolvimento nacional. De acordo com lógica das mais simplistas, aberta a “caixa-preta” do judiciário, aplanado estaria o caminho para as esperadas e urgentes reformas aptas a colocar o pais em trilhos seguros rumo ao abraço do Primeiro Mundo.

Ora, somente aos mais incautos poderia se afigurar pertinente situar o judiciário na mesma gaveta em que se remexem as graves mazelas decorrentes do narcotráfico e do contrabando de armas. Por serem os alicerces do Estado Democrático de Direito, os poderes constituídos deveriam merecer mais reverencia ou, quando menos, nesses tempos de tão pouca liturgia, a presunção de honorabilidade. Após décadas de defenestração do Legislativo, parece ter chegado o momento de o Judiciário passar por uma campanha de desmoralização, na qual todos os gatos são postos no mesmo saco de ofensas. Segundo tais vozes, os juízes, intocáveis, guardariam segredos escabrosos, terríveis, servindo-se de suas togas como genuínos mantos de proteção, a permitir-lhes bandalheiras incalculáveis.

É de se perguntar a qual desígnio leva semelhante atitude. Se no cerne da malsinada morosidade está o descrédito da Justiça – este, sim, empecilho a desejável paz social-, por que contribuir tão ostensivamente para levantar duvidas sobre a atuação de um poder que se requer sobretudo forte e consolidado em inarredáveis princípios constitucionais?

O controle externo do Judiciário não será a panacéia para a confusão nacional, até porque já existe, e há muito! Aos que assim não entendem, vale indagar qual o papel desempenhado pelo Tribunal de Contas da União, Ministério Público e até mesmo pelos advogados que tanto clamam por tal medida, isso sem se discorrer sobre outros instrumentos criados com igual objetivo, como o impeachment a cargo do Senado Federal, relativamente aos ministros da Suprema Corte, a ação de improbidade administrativa e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Alguns dos mais apressados hão de retrucar – ah!, falamos do controle externo sobre a atividade jurisdicional propriamente dita.

Aí, a mixórdia se acentua. Pois controle externo sobre atividade jurisdicional cheira a grosseira inconstitucionalidade. De que maneira compatibilizá-lo com a independência funcional determinada pela Carta da Republica como pressuposto da atividade jurisdicional no pais? É quem terá a sabedoria para tanto? Alguém já imaginou um “conselho” de eleitos escolhidos sabe-se lá por quem – formado para atender a precípua finalidade de censurar uma sentença proferida por um magistrado concursado? Onde ficam anos de experiência até se alcançar a suprema habilidade de conseguir retirar dos autos mais que um mero conjunto formal de provas? Como desconsiderar uma rotina traduzida em dias infindáveis por sobre um processo, a fim de corretamente destrinchá-lo, horas e horas em audiências intermináveis com o intento de extrair dos depoimentos a verdade? Já pensou afastar o veredicto soberano dos jurados ao argumento leviano de que decerto tal “conselho ad hoc” mostra-se mais preparado para o caso, ante a possibilidade etérea deste ou daquele indicio de fraude? Alguns podem achar exageradas essas contraposições. Não o são. Em última analise, a proposta em tela tem essa espinha dorsal.

Para quem ainda não se convenceu da incoerência de um tão estapafúrdio quanto inoperante expediente, cabe apontar outros instrumentos que também demonstram a inviabilidade do projeto: se nem os juízes são confiáveis, por que os membros desse conselho o seriam? Em outras palavras, quem controla o controle externo?

A propósito, estabelecida a premissa da imprescindibilidade desse tipo de controle, cumpre tratar-se urgentemente de um controle externo da atividade parlamentar, até para “limpar a barra” do Legislativo. É notório que há muita bobagem por toda parte. Assim, de bom proveito poderia se revelar um crivo sobre os discursos, os projetos, até mesmo sobre os votos de Suas Excelências os senhores vereadores, deputados e senadores, de modo a garantir-se a lisura e, acima de tudo, a boa reputação das mui dignas Casas a que estão integrados.

E, no tocante ao Executivo, que se dirá? Diante de tantos “governos paralelos” prontamente “empossados” pelas oposições logo que perdida uma eleição, a concepção de um controle externo sobre as decisões dos chefes do Poder Executivo, a tutela de um conselho composto por “sábios” talvez não Fosse de todo imprópria. Afinal, imensas são as pressões, incontáveis os desafios, nessa época absurda de hegemonias tão evidentes.

Neste ponto, replicar-se-á que tanto o Executivo como o Legislativo submetem-se ao penoso teste das urnas, a cada quatro anos, o que não acontece com o Judiciário. Ora, ora, mas para que servem os recursos processuais? Alguém desconhece que a organização do Judiciário em instancias visa essencialmente a revisão das sentenças por colegiados superiores, com base em critérios legais? Pode haver mais transparência do que aquela assegurada pelo princípio da publicidade? Se a possibilidade de revisão por duas instancias – e às vezes até por três! – não é garantia suficiente, quem atesta que um controle externo procedido por pessoas estranhas ao oficio o será?

Visto está, portanto, que sempre sobra muita tolice em idéias salvadoras. De resto, mormente em casos extremos regados a arroubos de vaidade, vale ter presente que a infalibilidade, definitivamente, não se inclui entre os atributos humanos. Desde o início, os judeus – um dos povos mais sábios do mundo – tinham notícia disso, tanto que adotaram um simbólico ritual para expurgar as culpas individuais e coletivas do seu povo: depois de ouvidas as confissões de cada um dos habitantes da comunidade, sagravam-se dois animais – um viria a ser imolado; ao outro, segredavam-se as vergonhas confessadas, após o que era abandonado em pleno deserto para perambular até morrer, expiando, assim, os pecados de todos. Tratava-se do famoso “bode expiatório”.

Pois bem, não será agora, nem jamais!, que o Poder Judiciário haverá de se prestar ao papel de bode expiatório para a pantomima nacional. É claro que a ninguém, dentro ou fora do Judiciário, e dado ignorar a existência de falhas, de problemas complexos. Não obstante, longe se está de uma situação aguda ou emergencial, a demandar intervenções de qualquer espécie. Complicações pontuais devem ser solucionadas, sim, extirpando-se, imediata e radicalmente, eventuais células infectadas pelos graves vírus da corrupção e da incompetência, ou mesmo diante de uma hipótese em que os princípios preciosos da ética deixaram de ser observados em algum momento. Uma vez configuradas tais anormalidades, hão de ser acionados os remédios previstos na lei. É usar e abusar deles. Para tanto, não há quadro mais abalizado do que o Ministério Público, a quem o constituinte delegou o elevado mister de fiscal da lei, além da titularidade da ação penal. Atuem, então, com a costumeira intrepidez, nossos valentes defensores da sociedade.

O Estado Democrático de Direito agradece.