O Decreto nº 8.243 e a Política Nacional de Participação Social

11 de agosto de 2014

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A3 Gilson Dipp miniA instituição da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) é iniciativa da Presidente da República “com objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil” (art. 1o), assim estabelecida com base no disposto no art. 84, IV e VI, ‘a’, da Constituição e no art. 3o, caput e inciso I, e no art. 17 da Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003.

O art. 84 da Constituição confere ao Presidente da República o poder de sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução e dispor mediante decreto sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Assim, a Presidenta está investida da autoridade de imprimir à administração as diretivas de ordem executiva que lhe parecerem adequadas ao modelo organizacional e às diretrizes de seu governo.

De outro lado, o art. 3o, caput e inciso I, da Lei n. 10.683/2003, dispôs que a Secretaria-Geral da Presidência da República tem por função, entre outras, assistir o Presidente da República no relacionamento e na articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e na implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo. E no art. 17 da mesma lei, também invocado, assumiu o Poder Executivo compromisso formal com a transparência administrativa.

O conjunto dessas normativas mostra que a proposta da Presidenta da República tem dois significados claros. Primeiro, transformar em ato específico o propósito de considerar e privilegiar a participação direta da sociedade na formulação, na implementação, no monitoramento e na execução das políticas públicas e no aprimoramento da gestão política, para tanto observando os objetivos e as diretrizes do PNPS. Depois, cumprir um programa de governo, naturalmente ligado ao programa do partido pelo qual foi eleita a Presidenta. Um e outro são fundamentos lógicos necessários para a exata compreensão da razão e forma do ato em apreciação.

Vale mencionar ainda outras duas observações. A disposição do art. 3o, I, da Lei n. 10.683/2003, é reprodução da nova redação dada pela Lei n. 11.204/2005, a qual é conversão da Medida Provisória (MP) n. 259/2005. Na exposição de motivos dessa MP, subscrita pela então Ministra-Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff, ficou assentado virem agregar-se às funções já exercidas pela Secretaria-Geral da Presidência da República, relativamente aos movimentos sociais e à política para a juventude, também as relativas à Política Nacional de Direitos Humanos, assegurando-se caráter integrativo a essas ações, que permanecem no âmbito da Presidência da República. De outro lado, essa diretiva visa a maior eficiência e eficácia no desempenho da gestão pública, além da simplificação das estruturas e da melhoria na racionalidade do processo decisório.

Atento aos limites e ao exercício do poder regulamentar e de expedir decretos, cabe analisar os termos e o conteúdo do decreto.

O Decreto instituiu a Política Nacional de Participação Social com diretivas gerais (art. 3o) de reconhecimento da participação social como direito do cidadão; de integração entre mecanismos e instâncias da democracia representativa; de solidariedade, cooperação e respeito às diversidades; de direito à informação e ao controle social nas ações públicas; de valorização da educação para a cidadania; de autonomia e independência das organizações da sociedade civil; e de ampliação dos mecanismos de controle social.

E definiu como objetivos principais: a participação social como método de governo; a promoção das instâncias e dos mecanismos de participação social; o aprimoramento da relação do governo com a sociedade civil; a consolidação de mecanismos de participação social nas políticas e nos programas de governo federal; o desenvolvimento de mecanismos de participação social no planejamento e no orçamento; o incentivo a metodologias que incorporem múltiplas formas de expressão da participação social; mecanismos de participação social aos excluídos e aos vulneráveis; incentivo a ações e programas para agentes públicos e a participação social nos entes federados.

Para tanto dispôs que, de modo obrigatório, “os órgãos e as entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e suas políticas públicas”. São instâncias e mecanismos de participação social, além de outras: a) o conselho de políticas públicas; b) a comissão de políticas públicas; c) a conferência nacional; d) a ouvidoria pública federal; e) as mesas de diálogo; f) o fórum interconselhos; g) a audiência pública; h) a consulta pública; e i) o ambiente virtual de participação social.

Todo esse conjunto de ações e operações das instâncias e mecanismos de participação social específicas constitui o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, assessorada pelo Comitê Governamental de Participação Social no monitoramento e implementação da PNPS.

Essa disciplina foi, no entanto, duramente questionada pelo Parlamento, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, por meio de diversos Projetos de Decreto Legislativo (PDC n. 1.491, PDC n. 1.492 e PDC n. 1.494 na Câmara e PDC n. 117 Senado), arguindo, em linhas gerais, que o decreto, ao favorecer a participação da sociedade civil e movimentos sociais nos termos indicados, exclui a participação do cidadão; revela intenção de implodir a democracia representativa criando órgãos públicos e propiciando o sucateamento do Poder Legislativo; perpetua a influência do governo nos movimentos cooptados; e contraria a Constituição, esvaziando o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

Em primeiro lugar, não se pode negar ao Presidente da República o poder de editar decretos para a fiel execução da lei ou impedi-lo de organizar o Poder Executivo, nos limites ditados pelo art. 84 da Constituição. No caso, propõe-se a adoção de metodologia de governo com diretivas e objetivos expressos de participação social democrática.

Cabe desde logo ter claro que a democracia é um regime, é um processo e, portanto, quando referido esse fenômeno de natureza jurídico-politico, convém ter presente essa qualidade. Em outras palavras, o regime de democracia não se esgota em edição de leis pelo parlamento nem de eleições para designar os representantes. Como processo diário e contínuo, constitui governo do povo, pelo povo e para o povo.

Por essa razão, pode o Executivo adotar as medidas concretas, em face das proposições que a Constituição e as leis lhe encarregam, assim como as diretrizes de seu programa de governo, tanto no que respeita às obrigações legais e constitucionais quanto dos compromissos políticos do mandato popular.

As plataformas políticas vinculam os governantes, de modo a responderem pelas omissões e faltas, porque promessas de campanha induzem pessoas, empresas e instituições a esperanças e expectativas justas e respeitáveis. A doutrina constitucional reconhece que compromissos eleitorais podem gerar direitos ao administrado e, diante disso, responder por essas dívidas políticas é obrigação do governante, do administrador ou do Chefe de Poder no âmbito do governo.

Desse modo, a inciativa do Presidente da República, ao formatar sua administração com o modelo de execução participativa, como lhe parecer adequado ao conjunto das diretrizes de seu governo e do próprio programa do partido pelo qual se elegeu, cumpre também suas obrigações políticas e administrativas.

O decreto em exame deve, assim, ser lido nessa perspectiva. As críticas que se elevam contra sua redação podem ter conteúdo técnico-formal, hipótese em que assim deverão ser debatidas. Mas as reservas não terão outro significado se estiverem baseadas em discordância politico-ideológica ou peculiaridades da luta política, quando serão insuficientes para contestação do ato pela via formal, isto é, fazer reparos ao decreto porque ele veicula ideias de que se discorda do ponto de vista ideológico não passa de estratagema de menor importância.

O ato questionado efetivamente veicula ideias de corte político-ideológico, dando notável acento à participação social por meio de entidades da chamada sociedade civil formalmente organizada ou também por via daquelas espontaneamente formadas em obséquio à democracia real como processo ou regime, para que a administração pública receba a vitalidade das aspirações de seus integrantes, muitas vezes alijados da participação direta ou por representantes formais eleitos.

Nessa linha de compreensão, a edição do decreto de modo algum desborda dos limites constitucionais e, ao contrário, resgata compromisso público ou estatutário pelo qual poderia ser politicamente e até judicialmente demandado o governo. Desse modo, a invocação do art. 84, IV e VI, ‘a’, da Constituição, seja como regulamentação da Lei n. 10.683/2003, seja como regulamento autônomo da organização do Poder Executivo, é inatacável.

O que pretende a regulamentação exposta é que instâncias democráticas e os mecanismos de participação, tal como definidas no art. 2o do decreto, sejam integrantes do processo de democracia quotidiana e tenham espaço de atuação efetiva na gestão na administração dos interesses públicos afetos ao Poder Executivo federal.

De outro lado, a essência do decreto é a definição das diretrizes gerais e os objetivos da PNPS. Quanto às diretrizes, fica patente a preocupação de fazer inserir nas políticas a cargo da administração pública a matriz participativa de reconhecimento do direito à participação e parceria, com as eventuais ou possíveis forças da sociedade civil. Quanto aos objetivos, refletem a opção política de eleger a participação como método de governo.

Ou seja, essas diretrizes e esses objetivos, orientadores da ação administrativa e dos dirigentes encarregados de elaborá-la e executá-la, caracterizam a metodologia escolhida pelo governo, pois assim o elegeu o principal mandatário da nação. E esse quadro, repita-se, é inerente ao regime democrático e vinculante em face das diretrizes políticas assumidas na posse do governo.

Por isso, o exame detalhado desses termos não revela afronta alguma ao disposto no art. 84, IV e VI, ‘a’, da Constituição e, de outra parte, as proposições do decreto não propõem ou propiciam a criação de órgãos públicos nem implicam a criação de cargos ou o aumento de despesas, cifrando-se nos limites específicos da discrição administrativa de organizar seus serviços executivos como melhor lhe parecer ao seu foco político-ideológico.

Desse modo, as críticas que pretendem impugnar o decreto, porque ofenderia a Constituição, revelam mais uma objeção compreensível, mas reduzida ao viés puramente ideológico, que não invalida a legitimidade e constitucionalidade de seu conteúdo.

As arguições expostas nos Projetos de Decreto Legislativo também não vão além do discurso retórico, pois se fundam em sustentação de vulneração das competências do Parlamento e de exclusão da participação dos cidadãos que não se incluem nas instâncias de participação ou nos mecanismos de participação social.

De fato, a organização politico-ideológica das entidades não oficiais formais ou informais pelo Poder Executivo em seu favor não limitam ou diminuem a ação político-ideológica do Parlamento, e menos ainda as atividades que lhe são próprias. Pode o Poder Executivo, em ação político-administrativa, arregimentar seus eleitores e seguidores, em legítima sustentação de suas ações e nos limites da legalidade, sem nenhum dano ou lesão aos poderes do Legislativo ou do Judiciário. Basta percorrer os artigos da Constituição que disciplinam o Poder Legislativo para se ter a exata percepção de que não se confundem as atuações nem as legitimações de cada qual. Nenhuma das atribuições do Legislativo, que estão claramente descritas nesse texto, impede a articulação do Executivo com a participação popular direta ou com instituições desse tipo.

Por essas razões, o argumento de que arregimentar a sociedade civil em favor da administração estaria a subtrair a base de representação do parlamento escorrega em dois pontos: a) insegurança quanto à representatividade real dos parlamentares; e b) concepção equivocada de uma democracia ainda presa à pura formalidade de escolha dos representantes.

Quanto às demais arguições, com o devido respeito, não se sustentam a si mesmas. A de que o decreto visa implodir a democracia representativa não tem fundamento técnico-formal algum, limitando-se a mera crítica defensiva de alguns parlamentares diante da fragilidade de suas respectivas bases políticas ou eleitorais. O decreto não impede, não proíbe nem erige obstáculos ao processo de participação eleitoral oficial nem tolhe a atividade de propaganda ou de mobilização dos partidos, como parece notório. De outra parte, também não ofende nem prejudica as demais formas de participação oficial do cidadão ou eleitor pela via do plebiscito, referendo ou iniciativa popular, mecanismos que permanecem inalterados e podem ser acionados uma vez presentes as circunstâncias constitucionais previstas, sem que os mecanismos ou instâncias de participação tenham qualquer ingerência ou fiquem diminuídos.

Que o decreto não cria órgão ou cargos públicos, ou eleve a despesa pública, a simples leitura desarmada de seus termos desmente a afirmação dos parlamentares que contra ele se insurgiram.

O aspecto mais sintomático de uma ofensiva ideológica está em dizer que o Executivo busca perpetuar sua influência política junto aos movimentos sociais, imunizando-os de possíveis alterações institucionais ou eleitorais. O argumento pode até ser considerado, mas não tem força para imputar ao decreto a pecha de inconstitucionalidade, já que não é vedado ao titular de poder cercar-se de sustentação política bastante a lhe garantir a continuidade do seu exercício. No caso, não se vislumbra violação de regra ou normativo por efeito dessa cooptação própria da atividade político-ideológica, que afinal, mesmo em termos formais, representa iniciativa legítima do Executivo, que recebeu o mandato da maioria dos eleitores.

De qualquer sorte, cabe anotação final que se mostra decisiva. De acordo como art. 5odo decreto, “os órgãos e as entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas, o que significa dizer que considerá-los como agentes democraticamente necessários é uma obrigação da administração, se as especificidades de cada caso o admitirem ou não o impedirem. Essa ressalva lógica e sistemática faz por afastar irracionalidades da operação administrativa nas hipóteses em que a participação direta não contribui efetivamente para a melhoria do serviço ou pode prejudicá-lo.

Resumindo, esse ato do Poder Executivo, além de não afrontar ou usurpar poder ou prerrogativa do Legislativo nem evidenciar irracionalidade administrativa, abuso ou excesso, oferece à opinião pública, em transparência e objetividade, as proposições de diálogo e participação com seus correligionários e com toda a nação. A própria Mesa de Monitoramento de Demandas Sociais, incluída como modalidade de atuação administrativa em face dos movimentos sociais, integra-se na concepção mais moderna de solução de conflitos por via de conciliação e negociação extrajudicial, o que, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi erigido como política oficial e recomendação expressa. Assim, a adoção desses mecanismos de pacificação ou conversação, além de afinada com as diretrizes de outros poderes, reflete mais uma vez uma política de aceitação de forças sociais informais como representação do poder popular, sem diminuição alguma das instituições constitucionais e legais.

O Decreto n. 8.243 representa, pois, uma política de políticas e, assim, pode ser aceito sem incompatibilidade com a Constituição e as leis.