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O direito à vida

31 de janeiro de 2008

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A extinção da CPMF não pode colocar fim ao debate democrático que interessa às camadas mais amplas da sociedade brasileira.  O que está em causa, de fato, é o problema da saúde pública em nosso país. De um lado, é a perplexidade dos que assistem à permanente agonia de uma solução que nunca se consuma e se perde na vala escura das promessas sempre repetidas, mas jamais inteiramente cumpridas. De outro, a maioria esmagadora dos que, em razão da absoluta falta de recursos, penam na frustrada esperança do socorro a vir do Poder Público, quase sempre insatisfatório, senão inútil, por ausência ou ineficiência.
Trata-se de um triste espetáculo, porque é visível aos olhos de todos. Tanto mais que exposto, a bem dizer diariamente, à luz candente dos meios de comunicação no seu mais notável serviço.
O clamor é imenso e não se mede apenas pelo ostensivo das eternas filas à porta dos hospitais e postos de saúde.  O mal é insidioso e alcança, muita vez silenciosamente, os que se perdem na variada gama da Assistência Médica, não raramente subsumida no esfarelamento de providências pelas quais nem sempre é possível esperar.
Deste tipo, para mencionar apenas um exemplo, é o caso dos necessitados, à míngua de recursos pessoais ou da pobreza absoluta, que, enfermos, não têm condições de se submeterem a tratamento apropriado ou de obter os medicamentos necessários, indispensáveis e urgentes para a própria sobrevivência. Não são poucos os reclamos dos mais necessitados que já chegaram, com natural freqüência, à barra dos tribunais. Especialmente nas hipóteses mais extremas e urgentes em que, sob argumento da falta de recursos específicos, a administração pública levanta a parede da impenhorabilidade dos bens públicos, na forma de uma tradição jurídica em tais situações ultrapassada, como se fosse possível ou necessário conter o que eminente jurista francês, desde a primeira metade do século passado, já denunciava como a revolta dos fatos contra os Códigos.
Em hipóteses dessa ordem, não só na primeira instância mas também nos tribunais, já se vai consolidando o enten-dimento mais justo e consentâneo com as normas inscritas na vigente Carta Magna, que, sob esse aspecto bem pode chamar-se de Constituição Cidadã, e com a própria legis-lação ordinária, segundo as quais o que é preciso proteger e resguardar, em tais situações dramáticas, é o direito à vida, inerente e indispensável à proteção da cidadania e da própria dignidade humana.
A regra da impenhorabilidade, mais do que a relutância da autoridade pública, há de ceder lugar ao propósito supe-rior de dar-se ao indivíduo a possibilidade de vencer o obstáculo de natureza legal em favor da interpretação que melhor se ajuste aos mais sensíveis resultados sociais e humanos do benefício pleiteado. A penhorabilidade desses bens, notoriamente cons-tituídos por importâncias em moeda corrente e sujeitos aos aleatórios das proclamadas restrições orçamentárias, torna-se assim possível e inegável, na medida em que a falta ou a impossibilidade de outro meio coercitivo, o que se sacrifica, afinal, é o indeclinável direito à vida e a oportunidade de exercê-lo em sua plenitude.
Tal entendimento assim se cristaliza como obra meritória do direito pretoriano e como ação objetiva do Poder Judiciário e acabará, ao que tudo indica, por vencer resistências apenas decorrentes da incompreensão e do apego exagerado dos que ainda se agarram à letra fria da lei, em detrimento de seu verdadeiro espírito e de sua mais importante finalidade.