Edição

O Direito do consumidor no limiar do Século XXI

5 de junho de 2000

Compartilhe:

O século dos novos direitos

O século XX despediu-se, deixando, todavia, marcas indeléveis em nosso mundo. Em razão do fantástico desenvolvimento tecnológico e científico que nele teve lugar, abrangendo áreas do conhecimento humano sequer imaginadas, profundas transformações sociais, econômicas e políticas ocorreram, que, por sua vez, passaram também a exigir transformações no ordenamento jurídico porquanto as normas legais até então existentes ficaram ultrapassadas, deixando enorme descompasso entre o social e o jurídico. Resultaram daí os novos direitos – direito da comunicação, direito espacial, direito ambiental, biodireito, direito do consumidor e assim por diante – todos destinados a satisfazer as necessidades de uma sociedade em mudança.

Tenho repetido que se o século XIX pode ser considerado o século das grandes codificações, quando vieram à lume, dentre outros, dois extraordinários Códigos Civis – o Napoleônico e o Alemão – ainda hoje verdadeiros monumentos jurídicos, creio que o século XX pode ser chamado “o século dos novos direitos”.

É possível que os elaboradores dos grandes Códigos tenham imaginado que estavam fazendo obras perfeitas, inalteráveis, se não eternas pelo menos duradouras, mas o tempo revelou o contrário. Os novos direitos acabaram abalando a hegemonia dos Códigos no ordenamento jurídico das nações, principalmente a do Código Civil, que em muitos países, como o nosso, chegou a ser considerado a Constituição do direito privado. A verdade é que os Códigos envelheceram e foram aos poucos cedendo espaço aos novos direitos.

Origem do direito do consumidor

Na constelação dos novos direitos, o direito do consumidor é, sem dúvida uma estrela de primeira grandeza, já pela sua finalidade, já pela amplitude do seu campo de incidência, embora muitos juristas não a queiram enxergar.

Quanto à finalidade, é preciso ter em mente que o direito do consumidor veio à lume para eliminar as desigualdades criadas nas relações de consumo pela revolução industrial, notadamente a partir da segunda metade do século XX, revolução essa que aumentou quase que ao infinito a capacidade produtiva do ser humano. Se antes a produção era manual, artesanal, mecânica, circunscrita ao núcleo familiar ou a um pequeno número de pessoas, a partir dessa revolução a produção passou a ser em massa, em grande quantidade, até para fazer frente ao aumento da demanda decorrente da explosão demográfica. Houve também modificação no processo de distribuição, causando cisão entre a produção e a comercialização. Se antes era o próprio fabricante que se encarregava da distribuição dos seus produtos, pelo que tinha total domínio do processo produtivo – sabia o que fabricava, o que vendia e a quem vendia -, a partir de um determinado momento essa distribuição passou também a ser feita em massa, em cadeia, em grande quantidade pelos mega-atacadistas, de sorte que o comerciante e o consumidor passaram a receber os produtos fechados, lacrados e embalados, sem nenhuma condição de conhecer o seu real conteúdo.

Finalmente, esse novo mecanismo de produção e distribuição fez surgir novos instrumentos jurídicos – os contratos coletivos, contratos de massa, contratos por adesão, cujas cláusulas gerais, sabemos todos, são pré-estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor sem qualquer participação do consumidor. Rapidamente, como dissemos, o direito material tradicional ficou ultrapassado; envelheceu aquele direito concebido à luz dos princípios romanistas, tais como a autonomia da vontade, a liberdade de contratar, o pacta sunt servanda e a própria responsabilidade fundada na culpa. Os remédios contratuais clássicos também se revelaram ineficazes para dar proteção efetiva ao consumidor em face das novas cláusulas engendradas para os contratos em massa. E essa disciplina jurídica deficiente, arcaica, ultrapassada foi o clima propício para a proliferação de todas as práticas abusivas possíveis, aí incluídas as cláusulas de não indenizar ou limitativas da responsabilidade, o controle do mercado, a eliminação da concorrência e assim por diante, gerando insuportáveis desigualdades econômicas e jurídicas entre o fornecedor e o consumidor.

João Calvão da Silva, notável autor português, afirma que o “ideário liberal individualista era hostil ao consumidor; erguia-se como verdadeiro dique à proteção dos seus interesses” (Responsabilidade Civil do Produtor, pp.31 e 32, Almedina). A culpa, assinala Vicent Pizzaro, atuava como uma espécie de couraça instransponível, que protegia o fornecedor, tornando-o praticamente irresponsável pelos danos causados ao consumidor.

Examinado o problema em profundidade, constatou-se que a reestruturação da ordem jurídica nas relações de consumo passava por algo muito mais abrangente do que uma mera atualização pontual da lei. Na realidade, exigia uma nova postura jurídica capaz de permitir o delineamento de um novo direito, fundado em princípios modernos e eficazes. E foi assim que, nos principais países do mundo, após uma longa e criativa atuação jurisprudencial, foram editadas leis específicas para disciplinar as relações de consumo, entre os quais o Brasil.

Campo de incidência do Código do Consumidor brasileiro

Em face dessa realidade sócio-jurídica até aqui retratada, é forçoso reconhecer que o Código do Consumidor Brasileiro veio a lume não simplesmente para atualizar a legislação até então existente mas sim para criar um novo direito. Essa, portanto, é a premissa da qual devemos partir. Temos hoje um novo direito para as relações de consumo, e, como tal, com campo de incidência próprio, objeto próprio e princípios próprios.

Para ensejar a criação desse novo direito, a Constituição Federal (art. 5º, XXXII) separou as relações de consumo do universo das relações jurídicas e as destinou ao Código do Consumidor. Esse, destarte, é o campo de incidência do Código do Consumidor – as relações de consumo qualquer que seja o ramo do direito onde elas venham a ocorrer – público ou privado, contratual ou extracontratual, material ou processual. E hoje, sabemos todos, tudo ou quase tudo tem a ver com consumo: saúde, habitação, vestuário, alimentação, transporte, educação, segurança, tudo. Somos hoje cento e sessenta milhões de consumidores gerando diariamente outros tantos milhões de relações de consumo.

Pois esse é o campo de incidência do Código do Consumidor. Um campo abrangente, difuso, que permeia todas as áreas do direito, razão pela qual venho sustentando que o CDC criou uma sobre estrutura jurídica multidisciplinar, normas de sobre direito, aplicáveis em todos os ramos do direito onde ocorrerem relações de consumo. Tão amplo é o campo de incidência desse novo direito que hoje todo e qualquer profissional do direito, principalmente o juiz, antes de enfrentar e resolver qualquer questão terá antes que verificar se está ou não em face de uma relação de consumo. E relação de consumo é aquela que tem numa ponta o fornecedor (cujo conceito está lá no art. 3º, caput do CDC), na outra ponta o consumidor (art. 2º), e que tem por objeto o fornecimento de um produto ou serviço (art. 3º, §§ 1º e 2º). Caracterizada a relação de consumo, teremos que aplicar o Código do Consumidor até porque as suas normas são de ordem pública e interesse social (art.1º), vale dizer, de observância necessária.

Outra inevitável conclusão que se tira do exposto é a de que o Código do Consumidor não é apenas uma lei geral (como querem alguns), tampouco uma lei especial (como querem outros), mas sim uma lei específica, vale dizer, um Código de Consumo compreendendo todos os princípios cardiais do nosso direito do consumidor, todos os seus conceitos fundamentais e todas as normas e cláusulas gerais para a sua interpretação e aplicação. Daí resulta que o Código do Consumidor deve ser interpretado e aplicado a partir dele mesmo e não com base em princípios do direito tradicional. Não se pode dar ao CDC uma interpretação retrospectiva, que consiste, na bela lição de Barbosa Moreira, em interpretar o direito novo à luz do direito velho, de modo a tornar o novo tão parecido com o velho que nada ou quase nada venha a mudar.

A esse novo direito, entendo eu, não são aplicáveis as regras gerais do direito intertemporal – a lei nova revoga a velha, a lei geral não revoga a especial, e assim por diante – porque no universo destinado pela Constituição Federal ao Código do Consumidor nenhuma outra lei pode interferir. O CDC só pode ser modificado por outra lei expressamente destinada a esse fim.

Finalidade do Código do Consumidor

Quanto à finalidade do nosso Código do Consumidor, basta lembrar que ele foi editado para cumprir uma determinação constitucional – promover a defesa do consumidor (art.5º, XXXII), restabelecer o equilíbrio e a igualdade nas relações de consumo profundamente abaladas por aquele descompasso entre o social e o jurídico ao qual nos referimos (CDC art. 8º, III). Em outras palavras, a vulnerabilidade do consumidor é a própria razão de ser do nosso Código do Consumidor; ele existe porque o consumidor está em posição de desvantagem técnica e jurídica em face do fornecedor. E foi justamente em razão dessa vulnerabilidade que o Código consagrou uma nova concepção do contrato – um conceito social – no qual a autonomia da vontade não é mais o seu único e essencial elemento mas também, e principalmente, os efeitos sociais que esse contrato vai produzir e a situação econômica e jurídica das partes que o integram. Ainda em razão dessa vulnerabilidade, o Estado passou a intervir no mercado de consumo ora controlando preços e vedando cláusulas abusivas, ora impondo o conteúdo de outras e, em certos casos, até obrigando a contratar como no caso dos serviços públicos. Ao juiz foram outorgados poderes especiais, não usuais no direito tradicional, que lhe permitem, por exemplo, inverter o ônus da prova em favor do consumidor, desconsiderar a pessoa jurídica, nulificar de ofício as cláusulas abusivas, presumir a responsabilidade do fornecedor até prova em contrário, e assim por diante.

O que se busca através dessas novas regras e princípios, repita-se, é o restabelecimento do equilíbrio nas relações de consumo. Não sendo possível colocar milhões de consumidores em uma sala de aula para que tomem conhecimento dos seus direitos, o Código estende sobre todos uma espécie de manto jurídico protetor para compensar a sua vulnerabilidade. Aí está, em síntese, a finalidade do CDC.

A técnica legislativa utilizada pelo CDC

Se examinarmos, entretanto, o Código do Consumidor do começo ao fim não vamos nele encontrar a disciplina específica de nenhum contrato de consumo, nem mesmo da compra e venda. Como então aplicá-lo a todos os contratos de consumo? Essa é uma questão interessante.

Na verdade, o Código do Consumidor, em nada alterou as características básicas dos institutos e contratos tradicionais; não modificou as normas e princípios que lhe são peculiares. Assim, por exemplo, um contrato de compra e venda continua sendo um contrato de compra e venda. O mesmo ocorre com os contratos de seguro, transporte, leasing, e assim por diante. Mas, sempre que esses contratos gerarem relações de consumo, ficarão também subordinados à disciplina do Código do Consumidor. E qual é essa disciplina?

Para implantar aquela sobre estrutura jurídica a que nos referimos, o Código se valeu de uma avançada técnica legislativa. Criou um sistema jurídico aberto, baseado em cláusulas gerais, tais como os princípios da transparência, da confiança, da boa-fé objetiva, da garantia, da segurança (estes dois últimos mais ligados à responsabilidade civil) e assim por diante. Valeu-se também de conceitos abertos, indeterminados, tais como vulnerabilidade, hipossuficiência, verossimilhança, abusividade etc.

O uso da cláusula geral foge aos parâmetros das normas tipificadoras de condutas, transferindo para o juiz a tarefa de elaborar a norma de comportamento adequada para o caso. Na ótica do eminente Ministro Ruy Rosado, externada em brilhante palestra proferida para os magistrados fluminenses, “a cláusula geral contém implícita uma regra de direito judicial, dirigida à atuação do juiz, que lhe impõe, ao examinar o caso, primeiramente fixar a norma de dever de acordo com a realidade do fato e o princípio a que a cláusula geral adere, para somente num segundo momento confrontar a conduta efetivamente realizada com aquela que as circunstâncias recomendem. Em síntese, na cláusula geral há uma delegação, atribuindo ao juiz a tarefa de elaborar o juízo valorativo dos interesses em jogo. Ela é uma realidade jurídica diversa das demais normas (princípios e regras), e seu conteúdo somente pode ser determinado na concretude do caso”.

Os conceitos abertos também transferem para o juiz a tarefa de valorar a norma que deverá ser aplicada de acordo com padrões éticos dominantes. São conceitos imprecisos, conceitos indeterminados que exigem um juízo de valor. É o que ocorre, por exemplo, com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verdadeiras vedetes do direito constitucional moderno. O que é razoável? O que é proporcional? O que é abusividade e vulnerabilidade? São conceitos que exigem um juízo de valor em face da situação concreta, em busca da melhor e mais justa solução para o conflito em julgamento. É óbvio que as cláusulas gerais e os conceitos abertos exigem do juiz muito mais do que a mera tarefa de aplicar a lei ao caso concreto. A norma está incompleta, a norma está em aberto, exigindo que a sua complementação seja realizada pelo julgador.

Adverte, entretanto, o Ministro Ruy Rosado, que “essa atividade criadora do juiz permitida pela cláusula geral não pode ser arbitrária, mas contida nos limites da realidade do contrato, sua tipicidade, estrutura e funcionalidade, com aplicação dos princípios admitidos pelo sistema”. Não deve o juiz, por exemplo, a pretexto de exercer essa atividade criativa, chegar ao ponto de transformar um contrato de compra e venda em doação, onde desconfigurar o contrato de seguro ou de transporte sob pena de fazer direito alternativo.

O princípio da transparência

Entre as cláusulas gerais do CDC aplicáveis a todos os contratos de consumo merece destaque, em primeiro lugar, o princípio da transparência previsto no seu artigo 4º. Transparência, em última instância, é o dever que tem o fornecedor de dar informações claras, corretas e precisas sobre o produto a ser vendido, o serviço a ser prestado, ou sobre o contrato a ser firmado – direitos, obrigações, restrições, etc. Vamos encontrar esse princípio repetido em vários dispositivos do CDC – art. 6º, III, 31, 54, § 3º . Isso está a evidenciar que nos contratos de consumo não cabe subterfúgios, o antigo dolus bonus. O sim deve ser sim e o não, não.

Neste ponto o Código do Consumidor inverteu os papéis. Antes era o consumidor que tinha que correr em busca da informação. Antes de comprar um carro usado em uma agência tinha que virá-lo do avesso para não ser enganado. Antes de fazer um contrato de seguro tinha que procurar saber tudo a seu respeito para não ser surpreendido; tinha que procurar conhecer as cláusulas gerais arquivadas lá em um Cartório de Ofícios em Chapecó. Hoje, como já assinalado, os papéis se inverteram e é o fornecedor que tem o dever de informar, dever esse que persiste não só na fase pré-contratual, quando as informações são fundamentais para a decisão do consumidor, mas até na fase pós-contratual, como se vê do art.10, § 1º do CDC.

A violação desse dever de informar importa em ineficácia do contrato ou cláusula contratual – e não em nulidade que poderia ser prejudicial ao consumidor -, consoante artigo 46 do CDC. Lembro, ainda, que a publicidade enganosa ou fraudulenta é expressamente vedada no art.37 do CDC porque importa em violação do princípio da transparência.

O princípio da confiança

Outro princípio que merece destaque é o da confiança, intimamente ligado ao princípio da transparência. Confiança é a credibilidade que o consumidor deposita no produto ou no vínculo contratual como instrumento adequado para alcançar os fins que razoavelmente deles se espera. Prestigia as legítimas expectativas do consumidor no contrato. Quem faz um seguro de saúde, por exemplo, tem a legítima expectativa de que, se ficar doente, terá os recursos econômicos necessários para tratar a sua saúde, não é assim? Confia que terá médico, hospitalização, medicamentos e tudo mais que for necessário. O mesmo ocorre com quem faz um seguro de acidentes; confia que receberá a indenização se e quando o sinistro ocorrer e assim terá os meios necessários para recompor o seu patrimônio. Viola o princípio da confiança toda a conduta que frustre as legítimas expectativas do consumidor. Por exemplo, uma vez internado, o segurado tem que ser retirado do CTI porque venceu o tempo de internação; ocorrido o acidente, a indenização não é paga no prazo previsto sem justa causa.

No artigo 30 do CDC temos um dos principais efeitos do princípio da confiança. A oferta vincula, cria obrigação pré-contratual, para que não se frustre a legítima expectativa criada no consumidor. Destarte, se o segurador faz publicidade prometendo tratamento médico no exterior, socorro em UTI móvel – ambulância, helicóptero ou avião -, depois vai ter que cumprir. No direito do consumidor, a promessa é dívida. Confiança é lealdade e respeito nas relações de consumo entre fornecedor e consumidor. Vale o que está escrito.

A cláusula geral da boa-fé objetiva

Por fim, o princípio o princípio da boa-fé objetiva, um dos mais importantes princípios do direito revitalizado e consagrado pelo CDC em seu artigo 4º, III, como princípio orientador da interpretação, e em seu art. 51, IV, como cláusula geral de conduta. Boa fé objetiva, na precisa lição da douta Cláudia Lima Marques, significa uma atuação refletida, pensando no parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, RT, 3ª ed., p.107). É comportamento ético, padrão de conduta, tomado como paradigma o homem honrado, leal e honesto. Ainda pela ótica da eminente autora, a boa fé objetiva possui uma dupla função na formação e na execução das obrigações: é fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos, e é causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos (ob. cit., p. 106).

Em outras palavras, o contrato não envolve apenas a obrigação de prestar; envolve também obrigação de conduta ética antes, durante e após à sua celebração. Esses deveres de conduta, que acompanham as relações contratuais de consumo, são os denominados deveres anexos.

Em suma, a boa-fé objetiva impõe um comportamento jurídico de lealdade e cooperação nos contratos, uma atitude de lealdade legitimamente esperada nas relações de consumo. Viola o princípio da boa-fé objetiva, por exemplo, a cláusula contratual que procura transferir para o consumidor os riscos do negócio do fornecedor, riscos esses que lhe eram conhecidos.

O eminente Ministro Ruy Rosado, na já citada palestra proferida para os magistrados fluminenses, fez as seguintes considerações a respeito da relação entre a ordem econômica e a boa-fé:

“A boa-fé não é apenas um conceito ético, mas também econômico, ligado à funcionalidade econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social que o contrato persegue. São dois os lados, ambos iluminados pela boa fé: externamente, o contrato assume uma função social e é visto como um dos fenômenos integrantes da ordem econômica, nesse contexto visualizado como um fator submetido aos princípios constitucionais de justiça social, solidariedade, livre concorrência, liberdade de iniciativa etc., que fornecem os fundamentos para uma intervenção no âmbito da autonomia contratual; internamente, o contrato aparece como o vínculo funcional que estabelece uma planificação econômica entre as partes, às quais incumbe comportar-se de modo a garantir a realização dos seus fins e a plena satisfação das expectativas dos participantes do negócio. O art. 4º do Código se dirige para o aspecto externo e quer que a intervenção na economia contratual, para a harmonização dos interesses, se dê com base na boa fé, isto é, com a superação dos interesses egoísticos das partes e com a salvaguarda dos princípios constitucionais sobre a ordem econômica através de comportamento fundado na lealdade e na confiança. Essa intervenção na economia do contrato, quando se dá por força da boa-fé, significará uma modificação na planificação acordada entre as partes, alterando a relação custo-benefício.”

Responsabilidade civil nas relações de consumo

As mudanças introduzidas pelo CDC no campo da responsabilidade civil são ainda mais profundas que aquelas que tiveram lugar nos contratos de consumo. Aqui o Código fez uma verdadeira revolução. Hoje, a responsabilidade civil pode ser dividida em duas áreas: a responsabilidade tradicional – aquela que estudamos na faculdade, fundada no artigo 159 do Código Civil e outras leis -, e a responsabilidade nas relações de consumo, fundada no Código do Consumidor. E mais, tendo esse Código, como veremos, estabelecido responsabilidade objetiva para o fornecedor, o campo da responsabilidade objetiva, outrora excepcional, restrita aos casos previstos em lei, tornou-se ainda mais amplo que o da responsabilidade subjetiva. Basta novamente lembrar que somos cento e sessenta milhões de consumidores, gerando diariamente outros tantos milhões de relações de consumo.

O desenvolvimento tecnológico e científico, não obstante os indiscutíveis benefícios que trouxe para todos nós, aumentou enormemente os riscos do consumidor, por mais paradoxal que isso possa parecer. E assim é porque um só defeito de concepção, um único erro de fórmula ou de produção pode causar danos a milhares de consumidores uma vez que os produtos são fabricados em série, em massa, em grande quantidade.

Lembro, a título de exemplo, o caso da Talidomida contergam, um sedativo grandemente utilizado entre 1958 e 1962, principalmente por gestantes. Esse medicamento foi retirado do mercado porque provocou deformidade em milhares de nascituros. Nos Estados Unidos, entre 1960 e 1962, um outro medicamento anticolesterol chamado MER-29, provocou graves defeitos visuais em milhares de pessoas – mais de cinco mil -, inclusive cegueira, e, por isso, foi também retirado do mercado. Todos nos lembramos da vacina Salk, contra a poliomielite. Por um defeito de concepção, essa vacina acabou provocando a doença em centenas de crianças na Califórnia. Na França, em 1972, o talco Morhange causou intoxicação em centenas de crianças, levando algumas delas à morte, também em decorrência de um defeito de concepção. São os riscos do desenvolvimento, riscos em massa, riscos coletivos.

Antes do Código do Consumidor não havia legislação eficiente para proteger os consumidores contra esses riscos. Corriam por conta do consumidor, porquanto o fornecedor só respondia no caso de dolo ou culpa, cuja prova era praticamente impossível. Falava-se até na aventura do consumo porque consumir, em muitos casos, era realmente uma aventura. O fornecedor limitava-se a fazer a chamada oferta inocente e o consumidor, se quisesse, que assumisse os riscos dos produtos consumidos.

O Código do Consumidor deu uma guinada de 180 graus na disciplina jurídica então existente na medida em que transferiu os riscos do consumo do consumidor para o fornecedor. Estabeleceu responsabilidade objetiva para todos os casos de acidente de consumo, quer decorrentes do fato do produto (art.12), quer do fato do serviço (art.14). O fato gerador dessa responsabilidade não é mais a conduta culposa do fornecedor, nem ainda a relação jurídica contratual, mas sim o defeito do produto ou serviço. Bastará o nexo causal entre o defeito do produto ou serviço e o acidente de consumo.

Produtos e serviços são defeituosos quando não oferecem a segurança que deles legítima e razoavelmente se espera (art.12, § 1º e art. 14, § 1º). A lei criou para o fornecedor um dever de segurança – verdadeira cláusula geral – o dever de não lançar no mercado produto ou serviço com defeito, de sorte que, se o lançar e der causa ao acidente de consumo, por ele responderá independentemente de culpa. Trata-se, em última instância, de uma garantia de idoneidade, um dever especial de segurança do produto ou serviço, legitimamente esperada. Veja-se a respeito o artigo 10º do CDC que tem a seguinte redação: “O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.” No mesmo sentido o artigo 24: “A garantia legal de adequação do produto ou serviço, independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor.”

De se ressaltar, ainda, que essa garantia de idoneidade ou de segurança do produto ou serviço tem natureza ambulatorial, vale dizer, não está circunscrita à relação contratual de compra e venda, mas, pelo contrário, acompanha o produto por onde quer que circular durante toda a sua existência útil. Responde o fornecedor pelo acidente de consumo, desde que decorrente de um defeito do produto, ainda que a vítima – quem sofreu o dano – não tenha sido aquele que o adquiriu. Foi para alcançar esse objetivo que o artigo 17 do CDC equiparou ao consumidor todas as vítimas de um acidente de consumo.

Em conclusão, a responsabilidade do fornecedor decorre da violação do dever de não colocar no mercado produtos e serviços sem a segurança legitimamente esperada, cujos defeitos acarretam riscos à integridade física e patrimonial dos consumidores. Ocorrido o acidente de consumo, o fornecedor terá que indenizar a vítima independentemente de culpa, ainda que não exista entre ambos qualquer relação contratual.

Na França fala-se em guardião ou garante da estrutura do produto, o que faz com que o fabricante continue responsável pelos danos causados pelo produto mesmo depois de colocado em circulação, e ainda que o produto tenha sido transferido a terceiro. O fornecedor é o responsável pelo acidente de consumo porque permanece como garantia da estrutura do produto.

Convém ressaltar que mesmo em relação ao nexo causal não se exige da vítima uma prova robusta e definitiva, eis que essa prova é praticamente impossível. Bastará, por isso, a chamada prova de primeira aparência, prova de verossimilhança, decorrente das regras da experiência comum, que permita um juízo de probabilidade, como, por exemplo, a repetição de determinado evento em relação a um certo produto. Por isso, o Código do Consumidor presume o defeito do produto, só permitindo ao fornecedor afastar o seu dever de indenizar se provar, ônus seu, que o defeito não existe (art.12, § 3º, II). Se cabe ao fornecedor provar que o defeito não existe, então ele é presumido até prova em contrário.

Correta a posição do Código porque se para a vítima é praticamente impossível produzir prova técnica ou científica do defeito, para o fornecedor isso é perfeitamente possível, ou pelo menos muito mais fácil. Ele que fabricou o produto, ele que tem o completo domínio do processo produtivo, tem também condições de provar que o seu produto não tem defeito. O que não se pode é transferir esse ônus para o consumidor.

As perspectivas do direito do consumidor no limiar de um novo século

A eficácia de uma lei, como do conhecimento geral, depende do reconhecimento, da aceitação ou da adesão da sociedade a essa lei. Como observa Siches, a norma jurídica – igualmente como as demais normas sociais – para que seja cumprida, para que se converta em força efetivamente configuradora das condutas, exige um reconhecimento, uma adesão da comunidade, isto é, da maior parte dos indivíduos que integram o grupo. Graças a esse reconhecimento, a norma se incorpora à vida do grupo.” (Sociologia do Direito, 2º vol., pp. 19 e 20).

Pois bem, editado na última década do século que se findou, o Código do Consumidor ainda não teve o tempo necessário para impor a sua eficácia em toda a plenitude. As forças poderosas do misoneísmo fizeram-lhe tenaz resistência, ora a serviço dos interesses econômicos por ele contrariados, ora em razão da própria lei da inércia. Em muitos lugares o Código do Consumidor ainda não chegou; profissionais do direito, inclusive magistrados, não o aplicam simplesmente porque não o conhecem e nem querem conhecê-lo; poucos são os cursos jurídicos no Brasil, mesmo nas universidades públicas, que incluíram em sua grade curricular a cadeira do direito do consumidor.

O Professor Kazuo Watanabe, nos seus Comentários ao Código do Consumidor Brasileiro, previu e chamou a atenção para esse problema antes mesmo que o Código entrasse em vigor. Após relacionar as principais medidas protetivas do consumidor nele previstas, afirma categoricamente: “De nada adiantará tudo isso sem que se forme nos operadores do direito uma nova mentalidade capaz de fazê-los compreender, aceitar e efetivamente por em prática os princípios estabelecidos no Código do Consumidor” (Cod. Bras. de Defesa do Cons. Comentado, Forense, 2ª ed., p. 456). E isso é uma verdade incontestável. De nada adiantará mudar o direito se não houver correspondente mudança de mentalidade nos operadores que vão aplicá-lo. Por melhor e mais avançada que seja a lei, um juiz formalista, distante da realidade social, será capaz de apequená-la, tornando-a ineficaz. A lei será boa ou má, justa ou injusta, positiva ou negativa, não tanto pelo seu conteúdo específico, mas sim e acima de tudo pela interpretação e aplicação que o magistrado lhe imprimir.

No crepúsculo do século que se despediu, nos seus derradeiros anos, registrou-se, felizmente, o início de um movimento de mudança de mentalidade nos operadores do direito. Advogados começaram a postular com base no Código do Consumidor; juízes, principalmente os mais novos, abandonaram a postura neutra, de meros espectadores da batalha judicial, e passaram a assumir uma postura ativa, sem perda da necessária imparcialidade; os consumidores, agora mais conscientes dos seus direitos, passaram a procurar o Judiciário aos milhares, principalmente os Juizados Especiais; as ações coletivas, ajuizadas pelo Ministério Público e entidades de classes, passaram a ser acolhidas pela Justiça. E as mudanças sociais começaram também a acontecer. Grandes fornecedores, que antes causavam pequenos prejuízos a milhares de consumidores impunemente, em razão das constantes condenações sofridas na Justiça Comum e nos Juizados Especiais, estão se reestruturando para tratar os consumidores com dignidade e respeito. Bancos, financeiras e os fornecedores de serviços públicos em geral (telefone, luz, gás, água etc), os maiores litigantes habituais, criaram departamentos especializados para resolver os problemas dos seus clientes e melhorar a imagem diante da sociedade.

Nada disso teria acontecido não fosse aquele movimento de mudança de mentalidade a que nos referimos, o que torna desnecessário dizer que o futuro do direito do consumidor está na dependência do prestígio e o reforço que essa mudança de mentalidade merecerá de todos os profissionais do direito. Editado no final do século XX, como já assinalado, o Código do Consumidor está fadado a atingir a sua plena eficácia no limiar do século XXI, quando poderá produzir todas as modificações sociais a que ele se destina. Tudo dependerá, entretanto, da postura que tivermos em relação a ele, principalmente os magistrados. O Poder, qualquer que seja – Executivo, Legislativo ou Judiciário – tem a cara dos homens que o integram. Será fraco ou forte, corrupto ou honesto, arbitrário ou justo, na mesma proporção em que o forem os homens que o exercem. Por isso, tem se dito que a Justiça vale quanto valem os seus juízes.