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O direito eleitoral em tempos de crise: Uma abordagem constitucionalmente adequada

31 de agosto de 2006

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O presente ensaio tem como objetivo analisar os contornos jurídico-constitucionais do direito eleitoral em tempos de crise. Não são necessárias muitas palavras para delinear a crise ético-política que assola a nação, com a proliferação de vários escândalos envolvendo as diferentes esferas de Poder em todos os níveis da Federação. Tais escândalos e devaneios com o dinheiro público, muitas das vezes envolvendo aqueles que se candidatam a concorrer a cargos eletivos, têm levado muitos, afetos ou não à área jurídica, a apregoarem algumas conclusões e interpretações no âmbito do direito eleitoral. Por esta razão o presente estudo, ainda que de maneira breve, tem como precípua finalidade atentar, em especial naqueles que tem um mínimo comprometimento com o quadro constitucional atualmente em vigor, para a necessidade de alguma parcimônia com a impulsiva análise do direito eleitoral constitucional influenciada por debates morais e ideológicos, muitas vezes incompatíveis com o Estado Constitucional de Direito.

O presente ensaio, desta maneira, terá dois pontos principais de abordagem exemplificativa, tendo como pano de fundo a necessidade de se estabelecer aquilo que os norte -americanos chamam de brake even point (ponto de equilíbrio) entre a necessidade de se conceder uma resposta satisfatória à população escandalizada com os desvios políticos e concordância com os limites constitucionais à utilização do direito eleitoral como forma de frear ou, no mínimo, coibir práticas abusivas e antiéticas no âmbito do direito eleitoral. O primeiro refere-se à tese que propõe a impossibilidade de registro de candidatura daqueles acusados de desvio de conduta, em especial os parlamentares que foram julgados pelas Comissões de Ética das diferentes Casas do Poder Legislativo da República, mas não tiveram seus mandatos cassados pelos seus respectivos pares. O outro ponto diz respeito ao denominado direito eleitoral punitivo, concernente aos poderes que os órgãos afetos à Justiça Eleitoral detêm de aplicar o sistema jurídico-eleitoral positivo concretamente aos casos eleitorais postos a sua apreciação.

A pedra de toque em todas as teses que propõem um papel mais ativo e agressivo do direito eleitoral frente a estas crises acima nominadas tem como ponto de partida a tentativa de inserir, no debate jurídico-eleitoral, questões e discursos ético-morais. Aí já reside e surge o primeiro problema a ser desvendado. Em primeiro lugar deve-se perquirir acerca da possibilidade do sistema jurídico ser influenciado por um código moral (bem e mal) como forma e meio de condicionamento e ou bloqueio da aplicação do código próprio do sistema jurídico (legal x ilegal – recht x unrecht na linguagem germânica). Ainda que se conceba a necessidade apregoada por alguns da aplicação da moral no direito, sem que isto implique necessariamente na adoção de um pensamento jusnaturalista, com aquilo que se convencionou denominar de pós-positivismo ou neoconstitucionalismo. Certo é que a utilização da moral no âmbito do sistema jurídico encontra limitações óbvias sob pena de se desvirtuar a autonomia do jurídico e considerar o código do direito inferior ou dependente de um código moral.

A segunda questão a ser desatada liga-se à idéia de Estado Constitucional de Direito e à interpretação do bloco de constitucionalidade como um todo, e não de forma cindida ou parcial. É comum nas teses de utilização do direito eleitoral, como verdadeira forma de vingança contra os devaneios por parte dos detentores do poder a utilização daqueles preceitos constitucionais que determinam e exigem o respeito a padrões ético-jurídicos (onde o texto constitucional acabou por denominar o princípio da moralidade) e propõem uma leitura dos textos legislativos e institutos do direito eleitoral sob a ótica da axiologia normativo-constitucional conectadas a estes padrões de “moralidade”.

O problema que surge de uma tal proposição diz respeito em primeiro lugar à idéia que se tem de Estado Constitucional de Direito, em especial com o atual entendimento específico de que o exercício do poder tem como fonte de legitimidade o complexo de direitos fundamentais, configurando, nas palavras de Ingo Sarlet “a essência do Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material” (Sarlet, Ingo Wolfgang. 3ª ed. A eficácia dos direitos fundamentais, pág. 64). Tal idéia tem significado importante no contexto do problema posto com o presente ensaio, tanto em relação ao entendimento que se tem dos direitos fundamentais liberais políticos (em especial aqueles previstos nos artigos 14, 15, 16 e 17 da Constituição Federal de 1988), como também dos direitos fundamentais de defesa, especificamente aqueles constitucionalmente positivados no artigo 5º da Carta da República.

Outro ponto de destaque merecedor de especial atenção no contexto do presente ensaio é a idéia de que a hermenêutica constitucional não pode ter como base interpretações isoladas, sendo imperativo o respeito ao denominado princípio da unidade da Constituição que, nas palavras de Canotilho, “obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (…) Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.” (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed, págs. 1223/1224).

Diante dessas premissas teóricas e dogmáticas, algumas conclusões já podem ser, desde logo, apontadas.

Quanto ao primeiro exemplo paradigmático referente à restrição de candidatura daqueles acusados (e não condenados em decisão definitiva) devem ser rechaçadas as interpretações da Constituição que não levam a sério o texto constitucional como um todo global. Também é impensável deixar de considerar que a candidatura a cargo eletivo implica o reconhecimento de um dos núcleos essenciais do direito fundamental político individual de votar e ser votado.

Ora, se existe um direito fundamental constitucionalmente positivado de ser votado e, por conseguinte, de se candidatar a cargo eletivo, este direito fundamental deve ser interpretado sob a luz do princípio de que o aplicador do direito deve atribuir-lhe sua máxima efetividade. É verdade que o constituinte derivado, ao alterar o artigo 14, §9º da Constituição, exigiu que uma lei complementar regulasse os casos de inelegibilidade, utilizando como norte hermenêutico o respeito à probidade e moralidade administrativa. Ocorre, contudo, que a lei complementar que rege a matéria (Lei Complementar nº. 64/90, alterada pela Lei Complementar nº. 81/94) não contempla a hipótese de inelegibilidade em casos de simples acusação por improbidade ou desvio de conduta ética. Desta maneira, interpretar restritivamente um direito fundamental com base em argumentos morais e políticos, sem qualquer previsão legal expressa para tanto, é desvirtuar a máxima de que os direitos fundamentais devem ser restringidos expressamente, e sempre diante de uma concordância prática calcada na proporcionalidade.

Ademais, o julgamento levado a cabo pelas Comissões de Ética, além de estar calcado num procedimento que se difere substancialmente ao processo indispensável à prolação de uma decisão judicial, é fundamentado por critérios políticos e não jurídicos, o que implica em desconsiderar suas conclusões com vistas a pretender, de maneira ilegítima, eliminar um direito fundamental clássico de ser votado.

Cabe destacar que a possibilidade de se impedir a elegibilidade de pessoas com base em argumentos calcados em conceitos jurídicos indeterminados (ordem pública, segurança do Estado, moralidade, etc.) era comum no Estado autoritário que o Brasil viveu antes da redemocratização pela Constituição Federal de 1988.

A outra conclusão liga-se à idéia do direito eleitoral punitivo concernente às sanções de natureza administrativa ou com restrições de direitos (inclusive aquelas referentes às impugnações de candidatura e de mandatos). Se é verdade que os órgãos competentes para a aplicação do direito eleitoral devem levar em consideração os recentes escândalos em relação a questões que envolvem o pleito eleitoral, não é menos verdade que tais competências devam ser exercidas à luz da Constituição Federal.

Ao se propor uma leitura à luz da Constituição Federal, deseja-se referir à necessidade de se respeitar os direitos fundamentais ligados aos acusados em geral e, em especial, àqueles que sofrerão quaisquer tipos de punição previstos na legislação eleitoral em vigor. Em primeiro lugar, é pacífico na doutrina mais autorizada e na jurisprudência de diversos Tribunais Constitucionais da Europa que o princípio da presunção de inocência não se aplique apenas ao campo penal, transbordando seu conteúdo normativo para qualquer ação punitiva do Estado. Também merece destaque o inescapável respeito ao devido processo legal, com  a garantia da ampla defesa e do contraditório em todo o procedimento destinado à aplicação das penalidades eleitorais, levada em consideração, por razões conhecidas por todos , a necessidade de celeridade nos processos de cunho eleitoral. Outra importante questão refere-se à aplicação do princípio da individualização da pena e da responsabilização objetiva que também extrapolaram a aplicação restrita ao direito penal para todas as áreas constituindo-se em forma de punição jurídico-estatal. O primeiro impede a responsabilização ou punição solidária e o segundo exige a caracterização de conduta dolosa ou culposa (comissiva ou omissiva) para o sancionamento daqueles que violarem as regras de conduta eleitorais, como é o caso da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral quando há exigência de conhecimento prévio do candidato.

Conclui-se, portanto, que o fervor popular sedento de punição contra a tergiversação no exercício de funções públicas, ou mesmo no tratamento da coisa pública, não pode significar o abandono aos limites constitucionais e aos direitos fundamentais previstos na Constituição. O verdadeiro estado de exceção ligado aos problemas de corrupção existentes em nosso país não pode significar a busca por uma justiça material em desrespeito aos direitos fundamentais e ao Estado Constitucional de Direito. O Estado de Direito deve ser fortalecido mesmo em épocas como a que vivemos, o que não significa a impunidade, a isenção de apuração de fatos que podem ser tipificados como contrários à ordem jurídica.

O presente estudo não constitui um manifesto contra a necessidade de se punir aqueles que tratam a res publica como coisa privada, atentando contra a idéia republicana de exercício do poder para e pelo povo. O que o presente estudo tem como finalidade é atentar para a necessidade de se aplicar o direito eleitoral e conceder uma resposta à população em concordância com o sistema constitucional de regras e princípios. Não é impossível coibir ou reprimir a corrupção com respeito aos direitos fundamentais e aos contornos jurídico-constitucionais inerentes ao exercício do poder estatal ligado ao direito eleitoral. Pelo contrário, o combate à corrupção via direito eleitoral somente será legítimo e democrático segundo o que delineia a Constituição da República, para podermos celebrar a vitória da Constituição e do Estado Democrático de Direito frente aos problemas concretos e notórios que assolam nosso país.