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O ficha limpa

30 de junho de 2010

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Já se vão vinte e cinco anos desde que a população brasileira jogou a última pá de cal sobre o túmulo da ditadura militar. Da luta pelas Diretas e Constituinte aos dias de hoje, vamos moldando, paulatinamente, a democracia almejada. Não é um processo fácil. E a campanha pela aprovação do projeto de lei Ficha Limpa é um exemplo das dificuldades que a sociedade enfrenta ao propor mudanças que julga fundamentais para a consolidação do processo democrático.  Se não fosse a forte mobilização popular, o projeto talvez tivesse sucumbido. Mas o resultado obtido na Câmara e no Senado deve ser comemorado, pois reafirma que os parlamentares respondem positivamente quando pressionados pela sociedade.

Ninguém pode negar que houve um avanço considerável, apesar das mudanças no texto proposto originalmente, assinado por quase dois milhões de eleitores. As mudanças foram pontuais e preservam direitos constitucionais. Não houve alteração no mérito e, por isso, o espírito do texto original está preservado, o que configura uma vitória importante da sociedade.

O projeto aprovado é um golpe na impunidade e fortalece a democracia brasileira, que ainda está sendo construída. A lei não tem objetivo de punir quem foi corrupto no passado, já foi condenado com sentenças transitadas em julgado e cumpridas. Se os culpados obedeceram ao que a legislação à época determinava, como uma lei agora pode aplicar outra pena a quem já cumpriu a sentença? O espírito da sociedade não pode ser de revanchismo, mas sim de vanguarda. A partir de agora os costumes vão mudar. Ninguém vai mais se utilizar do cargo eletivo, de um cargo público conseguido através de um voto popular, para enriquecimento ilícito, para malversação do dinheiro público. As pessoas vão ter mais zelo no exercício da atividade pública.

Além disso, o país obteve um ganho político extraordinário, que foi a reafirmação da força da mobilização popular para o avanço da democracia e saneamento dos territórios ocupados por agentes públicos, eleitos ou não. A reafirmação desta força como elemento fundamental de mudanças evoca, uma vez mais, a necessidade de as entidades que representam os diversos segmentos da sociedade assumirem o compromisso de levar adiante as lutas por uma sociedade melhor.

A Associação dos Magistrados Brasileiros tem feito a sua parte. Em 2006, lançou as campanhas contra a Corrupção e pela Ética na Política e Eleições Limpas, ambas de caráter permanente, que propõem, entre outras coisas, a criação de varas especializadas no julgamento de casos de corrupção. E, em 2008, prestou um grande serviço à nação ao disponibilizar em seu site a lista dos candidatos a prefeito e vice-prefeito que respondiam a processos. Na primeira semana de divulgação dos dados, a página da AMB permaneceu congestionada devido ao número de acessos. Durante o período de campanha eleitoral, jornais de todo o país usaram a lista para produzir cerca de sete mil matérias.

Ainda em 2008, a AMB propôs ao Supremo Tribunal Federal a reinterpretação da legislação eleitoral, por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a fim de tornar autoaplicável o § 9º, art. 14, da Constituição. Esse parágrafo afirma que a vida pregressa do candidato tem que ser considerada fator de inelegibilidade para proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. O preceito está lá, mas nunca foi cumprido porque o Congresso não aprovou uma lei complementar regulamentando sua aplicação. No entendimento da AMB, a reinterpretação permitiria ao juiz eleitoral impugnar candidatos réus em processos por improbidade administrativa ou criminal.

Seria um avanço, mas prevaleceu no Supremo o entendimento de que aos candidatos cujos processos não haviam transitado em julgado — ou seja, confirmado em última instância, sem possibilidade de novos recursos — caberia sempre a presunção de inocência. O que é um equívoco, pois na Justiça Eleitoral o preceito que deve prevalecer é o da conduta ilibada. Isso porque o voto é um cheque em branco que o eleitor passa ao político. E ninguém é obrigado a assumir esse risco frente a alguém que já deu sinais de desonestidade. Esse ponto de vista, originado na ação da AMB, foi confirmado com a aprovação da lei Ficha Limpa.

As ações da AMB foram executadas concomitantes às promovidas pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), do qual faz parte junto com outras mais de 40 entidades. Seriam ações inócuas se não fossem precedidas pelo anseio da população em mudar a situação do País, tomado por ondas frequentes de denúncias de corrupção.  A Magistratura representada pela AMB deu sua parcela de contribuição para a aprovação do projeto de lei popular, mas tem consciência de que a vitória pertence à sociedade, que se uniu em torno de uma proposta relevante para a democracia brasileira. Cabe agora ao Presidente da República a sanção rápida da lei, para que ela possa vigorar ainda este ano.  É provável que as discussões em torno do tema — se a legislação vale para as eleições de outubro e se é ou não retroativa — parem no Supremo Tribunal Federal. Mas só a aprovação já foi um avanço considerável, é preciso reconhecer. A mobilização em torno do Ficha Limpa foi o exemplo de qual é o papel da sociedade brasileira na atividade política. Porque quando a sociedade se mobiliza, o Congresso dá uma resposta positiva. Foi assim no caso das Diretas Já, no impeachment de Fernando Collor de Mello e agora na aprovação do Ficha Limpa. Agora, efetivado o primeiro passo, a sociedade e suas entidades organizadas, entre elas a AMB, estarão em campo para garantir o cumprimento do texto aprovado.