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O grande desafio de restaurar a cordialidade

31 de dezembro de 2005

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A violência tornou-se um fato da ordem do Estado. Como a fome na França pré-revolucionária do século XVIII, é conseqüência da insensibilidade das elites, sejam elas esclarecidas ou não.

No século XIX, lá por volta de 1835, uma época em que o Brasil rivalizava com os Estados Unidos na preferência dos europeus em busca de oportunidades de negócios no novo mundo, os alemães e franceses consumiram rios de tinta para nos acusar de ser um país de escravos. Com isso, ganharam a batalha da comunicação e afastaram qualquer possibilidade de perdas para os investidores europeus que vinham carreando capital para os EUA. Agora, nesse alvorecer do século XXI, a história se repete. A diferença é que o fogo intermitente não parte mais de concorrentes preocupados, mas, por exemplo, de uma instituição de inquestionável caráter humanista como é a Anistia Internacional.

A acusação é o contínuo desrespeito aos direitos humanos. A violência policial, conclui a Anistia, no seu último relatório tem deixado marcas profundas e inaceitáveis em meio à população pobre, gente excluída dos direitos da cidadania. Como acontecia com a mancha da escravidão no século XIX, o estigma da violência corresponde à mais absoluta e cruel realidade. Vive-se nas cidades, principalmente os grandes centros, uma situação intolerável. Em nome da segurança, todos os limites da ação policial são deixados de lado. Favelas são invadidas, pessoas são paradas na rua para humilhantes revistas a qualquer hora do dia ou da noite. Pessoas são mortas por simples suspeição de serem criminosos. A lista de desmandos é vasta.

Vitória do conservadorismo

O contraste entre o efervescente clima de liberdade e a ausência de direitos elementares para o cidadão – os pobres principalmente – é deplorável. Mostra a insensibilidade dos governantes e da elite dirigente, aqui no sentido não dos donos dos meios de produção e serviços, mas de todos que formulam políticas e influenciam decisões, é abissal. Gasta-se energia com discussões intermináveis movidas por mera ambição de poder, deixando-se de lado os grandes temas da atualidade brasileira. Reforma do aparelho policial, da justiça e da educação. Sem que esses três pólos estratégicos sejam revitalizados dentro de elevada visão democrática, as mudanças pregadas pelos governantes não passarão jamais de mera retórica. Aliás, como vem acontecendo num perigoso processo de desmoralização do regime democrático.

O brasileiro vive prisioneiro da violência. Os ricos refugiam-se em moradias que são autenticas fortalezas, mas não podem sair tranqüilamente às ruas. São assaltados, seqüestrados e cada vez mais sofrem da síndrome do pânico. As classes médias sofrem da mesma tensão. É supérfluo dizer que o tema da violência confunde-se com o cotidiano. Vive-se como alguém a quem nada pode salvar de um assalto ou mesmo a morte num sinal de trânsito. E o pobre, aquele que vive na favela, aquela a quem nada é concedido e tudo é negado, está sitiado entre os bandidos e a polícia. Pode ser vítima de um ou de outro. Na essência, a democracia venceu no âmbito institucional, mas nas dobras do dia-a-dia predomina o regime de segurança nacional. E o resultado é uma guerra de todos contra todos, onde todos perdem. Um jogo de soma cada vez mais negativa.

Pacto de inércia

De 1964 para cá, o Brasil tem vivido exposto a uma terrível história em que contracenam violência política, ditadura política, ditadura econômica e, agora, a ditadura da violência cotidiana. É uma trágica história, uma espécie de circulo do inferno, que as elites, seja qual for a coloração dita ideológica, se recusam a olhar. E quando olham, teimam em ver apenas um fragmento daquilo que se encontra ao alcance dos olhos.

O País vê com espanto e indignação crises como a do “mensalão”, o fato do partido do governo pregar uma coisa e fazer outra, assiste com indignação a falta de ética dos políticos, os números que tratam da exclusão social, enfim, indignação tornou-se uma matéria-prima abundante. Contudo, adota uma postura hamletiana diante dos fatos que compõem a dura realidade do cotidiano. Fala muito, mas não esboça qualquer ação. A elite, seja empresarial ou sindical, política ou intelectual, vê com espanto os dados da Anistia Internacional que colocam o Brasil entre as nações mais violentas do planeta. Minimizam os números. Alegam que a violência é um fenômeno mundial. Há uma guerra entre o Rio de Janeiro e São Paulo para provar onde grassa mais a violência. Bobagem.

Falta, sim, coragem para aceitar que a violência não é mais apenas o resultado da inépcia maior ou menor desse ou daquele estado, da polícia que trata com maior ou menor rigor aqueles, tendo como missão proteger a lei, cometem crimes, como se fossem bandidos fardados. Nada disso. A violência tornou-se parte inerente do modelo político e cultural brasileiro. É um fato da ordem do Estado: pratica-se a violência porque a sociedade tornou-se violenta, seja na exclusão, seja na corrupção, seja no não cumprimento da lei, seja na proliferação de quadrilhas, gangues e crime organizado, seja na sua expressão mais primitiva que é a violência policial.

Violento é o sistema como um todo. É como acontecia com a fome na França de Luis XV e Luis XVI. A fome era, àquela época, “uma expressão profunda!” da aliança dos especuladores e dos políticos, no dizer do historiador Jules Michelet, testemunha ocular da revolução que levou a burguesia ao poder e ceifou a aristocracia do pedestal. Aqui, a violência é parte de um pacto de inércia onde a corrida pelo poder e a ganância do lucro pelo lucro mobiliza mesmo as personalidades mais experientes, esclarecidas e intelectualmente bem formadas.

Trata-se de um rito cego de autofagia. Quem perde com ele é o país e o cidadão. Pois o poder pelo poder é uma prática absolutamente negativa. O caminho a seguir deveria ser radicalmente oposto: o caminho de uma democracia autêntica onde a violência fosse a exceção e o respeito aos direitos humanos a regra. Na mudança do pólo negativo para o positivo, a mídia nacional ou internacional certamente terá um papel essencial. Mas é preciso ir além do simples noticiário-espetáculo. Informando e formando a opinião pública quanto às raízes e à dimensão histórica do problema da violência é que se semeará os fundamentos de uma cultura de justiça e respeito capaz de resgatar a nossa reputação de país amante da paz e do progresso. Um país cordial.