Edição

O Impacto das decisões judiciais

31 de janeiro de 2008

Presidente do STF / Membro do Conselho Editorial

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NOTA DO EDITOR
O Ministro do Superior Tribunal de Justiça LUIZ FUX, que homenageamos nesta edição e enriquece com sua figura a capa da Revista, é incontestavelmente, pela sua vasta cultura humanista e sobretudo, pelo aprimorado conhecimento jurídico, invulgar publicista, renomado e conceituado jurista, personalidade ímpar e destacada do Poder Judiciário brasileiro, tendo sido conduzido ao Tribunal da Cidadania, após aprovação jubilosa pela Comissão de Justiça e Cidadania e no Plenário do Senado Federal.
Magistrado de carreira, com passagem por várias comarcas do interior do estado  e da capital, foi elevado por merecimento ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, depois de profícua atuação na Corregedoria-Geral na gestão administrativa de 1997/1998, onde organizou e foi o principal executor na implantação dos juizados especiais nas comarcas do interior e capital.
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Texto da Palestra proferida na AMAERJ (Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro) sobre o impacto das decisões judiciais na concessão de transportes.

Passei no Tribunal por todas as instâncias quando tive a oportunidade de trabalhar com o desembargador Ellis Figueira, que me dizia sempre: “Um homem quando caminha, o que vai à frente é o seu passado.” Então, para mim, sempre que venho ao Rio de Janeiro, é um mergulho doce no meu passado, porque eu forjei os meus amigos, a minha juventude, a minha cultura jurídica e a minha percepção como magistrado. Em face do tema, eu lamento que não haja um número maior de magistrados presentes, porquanto o próprio tema sugere que nós estamos diante de uma situação delicada: o impacto das decisões judiciais nas relações de transporte.
O professor Eric Hobsbawn, em sua obra singular sobre história contemporânea, “O breve século 20, a Era dos Extremos”, narra que, no mesmo século, tivemos duas guerras mundiais, a inserção da informática, uma guerra civil velada, inseminações artificiais e, ao mesmo tempo, métodos para impedir a proliferação humana, empreendemos uma luta pelo soerguimento dos direitos humanos prestigiados na Carta de 1215, na declaração fundamental americana e na declaração francesa, sendo certo que a primeira foi a americana, mas foi a Revolução Francesa que colocou fogo no mundo, e nesse quadro assomaram os modernos direitos fundamentais da pessoa humana.
É cediço que perpassamos vários períodos, dentre os quais o do Estado mínimo – pouco intervencionista –, mas a política do Laissez Faire/Laissez Passer  não deu certo na medida em que as pessoas não são iguais. Então, é evidente que liberdade entre pessoas desiguais acaba escravizando e é a autoridade estatal que liberta. É o Estado intervencionista que, nesse momento, cria condições iguais para as pessoas desiguais. E a realização dos serviços públicos não é senão o implemento dos direitos fundamentais.
Outrossim, o Estado revelou-se, ao longo da História, absolutamente incompetente de realizar à altura todos esses di-reitos fundamentais, todos esses serviços públicos, razão pela qual, inspirado na doutrina francesa, essas atividades passaram a ser delegadas pelo poder público, ora em regime precário de permissão, ora em regime de concessão dos serviços públicos, que caracteriza bem essa atividade delegada pelo poder público na medida em que o que timbra realmente a concessão é a realização pela concessionária de um serviço público, que é um serviço do Estado, em nome próprio sob a sua conta e risco e com a vantagem de obter o resultado econômico através da exploração direta desse serviço. É isso que caracteriza, em regra, a concessão.
O regime das concessões do serviço público, o que não é diferente em relação aos demais ramos da ciência jurídica, submeteu-se a uma constitucionalização, porque, se tudo começa nos direitos fundamentais, a especificação dos direitos fundamentais encontra-se na Constituição dos países. Assim, por exemplo, o pacto de São José da Costa Rica estabelece que o país cuja justiça não se desenvolve num prazo razoável, não propicia o acesso à Justiça.
A Constituição Federal dispõe que uma das garantias fundamentais é a duração razoável dos processos. Se a declaração dos direitos do homem afirma que todos devem nascer iguais em direitos e dignidade, a Constituição Federal dispõe que todos são iguais perante a Lei e perante a Justiça, evidentemente na medida em que se desigualam.
O Estado garante o mínimo existencial, mas aceita ser coadjuvado nessa atividade por outrem. Então, a saúde é um direito de todos, é um dever do Estado, mas o mesmo também assimila um sistema particular para coadjuvar a saúde. Mutatis mutandis isso também ocorre em relação ao serviço fundamental que é o serviço de transportes. O conceito que a constituição enuncia no artigo 175 permite-nos extrair algumas conseqüências sobre a concessão.
O que se depreende desse conceito constitucional é que, em primeiro lugar, a concessionária presta um serviço estatal, mas em nome próprio e por sua conta e risco. Não é o Estado prestando serviço público. É uma entidade prestando um serviço público. Em segundo lugar, nas condições unilateralmente estabelecidas pelo poder público, que exerce supremacia. Sob esse ângulo é forçoso convir que ninguém exerceria uma função em nome do Estado com a supremacia do poder estatal se não houvesse uma contraprestação. E a conta por prestação nesses serviços concedidos está exatamente na manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
No direito francês, há distinção nítida entre serviços de interesse público e serviços econômicos de interesse geral. Com relação a esses serviços econômicos de interesse geral, como sói ser os serviços de concessão de transportes, a doutrina francesa de Marcel Walline, e André Labaudere e Laborde, timbra com muita clareza essa questão da equação econômico-financeira do contrato, assentando essa doutrina francesa que todo contrato tem a sua álea. Há uma álea geral ordinária, a qual denominam  “álea geral ordinária”, digamos assim, não na tradução ao pé da letra, mas dentro daquilo que nós percebemos como a álea que se contrapõe os contratos sinalagmáticos. É álea ordinária o concessionário saber se está fazendo um bom ou um mau negócio. Isso é problema dele. E é álea extraordinária aquela que escapa completamente ao ambiente objetivo do contrato e que surpreende o concessionário, aquela que rompe a equação econômica do contrato.
A Corte Especial do meu Tribunal, que é um Tribunal infraconstitucional, por isso denominado Tribunal da Cidadania, aplica sub judice com 12 mil leis que compõem o cenário infraconstitucional. O Direito Administrativo hoje está prenhe de legislações atinentes aos serviços públicos e a Corte Especial, que é órgão pleno jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que o Plenário só tem função administrativa, é claríssima em manter fidelidade na obediência das leis que regulam essas atividades delegadas e em relação ao próprio contrato em si, porque, na percepção desse Órgão Maior, essas entidades que encerram mega-atividades, normalmente, suscitam interesses de grandes corporações.
As grandes corporações gostam de saber o início, o meio e o fim da vida dos contratos que firmaram. Anseiam conhecer os limites da sua responsabilidade. Então, se nós oferecemos uma justiça caridosa, se nós oferecemos uma justiça paternalista, se nós oferecemos uma justiça surpreendente que se contrapõe à segurança jurídica prometida pela Constituição Federal, evidentemente que isso afasta o capital estrangeiro, como afasta o capital das grandes corporações.
Então, voltando um pouco à nossa época embrionária de estudante, o que a Corte Especial estabelece em relação a essas questões é o respeito ao princípio pacta sunt servanda, porque essas grandes corporações não conseguem compreender porque, no meio do caminho, são surpreendidas com alteração abrupta e unilateral, não do contrato, pois ela sabe que já tem essa supremacia, mas das condições econômicas que, se ela soubesse que existiriam, jamais investiriam nesse setor. O fato para nós é preocupante, já que inviabiliza o serviço público de interesse geral.
Destarte, temos a ciência de todos os poderes e os deveres do concedente e do concessionário, sendo certo que, basicamente, o poder concedente pode intervir no contrato, pode alterar, pode fiscalizar, pode impor sanções, mas, por outro lado, não pode alterar o objeto da concessão, porque se a empresa está preparada para transporte, ela não pode fazer outra coisa, a menos que haja uma outra licitação e, nesse particular, o Superior Tribunal de Justiça é inflexível, não admitindo essas simulações de superposição de linhas sem licitação, como se houvesse apenas uma extensão de linha, quando, na verdade, é uma nova concessão em desobediência ao princípio da moralidade e da licitação estabelecidos nos artigo 37 e 175 da Constituição Federal. Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça é muito inflexível em relação à manutenção da equação econômico-financeira do contrato.
Cremos que uma empresa, se soubesse, por exemplo, que ela, sem que isso estivesse declarado textualmente, fosse obrigada a assumir um grande passivo, ela de certo poderia escolher se assumiria ou não o serviço público delegado, na medida em que há casos que vale a pena. Mutatis mutandi é o que ocorre, por exemplo, numa execução judicial ou extrajudicial, na qual no bem a ser expropriado pesa uma hipoteca, mas vale a pena comprá-lo. Paga-se a hipoteca e fica-se com um bem livre e desembaraçado. Então, é possível que uma concessão valha a pena mesmo com um passivo se ela for profícua, se ela for uma concessão que gere um bom resultado. Entretanto, tudo precisa ser explicitado para o concessionário, pois nessa apreciação à luz dos direitos do concessionário – já que não há relação jurídica só de direitos e deveres ou só de poderes sem que haja direitos também – toda a concessão é precedida de um ato complexo, isto é, a concessão é antecedida de um edital, de uma licitação e de um contrato. Então, tudo isso tem de ficar muito claro em relação ao edital, à licitação e ao contrato para que o concorrente saiba daquilo de que ele está participando e daquilo que ele está pactuando.
O Superior Tribunal de Justiça preconiza esses princípios nas diversas decisões em mandados de segurança, ações em geral que versem a respeito das concessões. Segundo o Tribunal, temos uma gama muito grande de ações relacionadas às concessões nas quais se visa, digamos assim, chancelar judicialmente
uma extensão das concessões. Sob esse enfoque, adianto aos senhores que a Primeira e a Segunda Turmas do Superior Tribunal da Justiça, componentes da Seção de Direito Público, são absolutamente inflexíveis e não admitem que haja superposição de linhas ou extensão de linhas sem a realização das licitações. É que normalmente as ações chegam ao nosso conhecimento no afã de legitimarmos uma concessão, uma extensão da linha, e nós não legitimamos o que a contrário senso implica em que aquela deslegitimação daquela superposição de linhas impõe ao poder público a realização da licitação, mercê de nesse interregno o povo não ficar sem atendimento de serviço público. Essa é uma questão recorrente referente às concessões e o transporte.
Uma segunda questão recorrente sobre o impacto das decisões judiciais é pertinente à responsabilidade civil. Isso é uma questão já pacificada. Ninguém tem a menor dúvida de que o concessionário ou qualquer que seja a sua natureza, está exercendo um serviço que é estatal e pour cause a sua responsabilidade é objetiva tal como prevista no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal. A responsabilidade é objetiva. Nesse tópico, o Superior Tribunal de Justiça também tem os seus parâmetros muito bem definidos. Em primeiro lugar: a responsabilidade é da concessionária, porquanto integra a álea comum e ordinária do negócio, uma vez que ela tem os bônus e tem os ônus. Isso é uma regra geral.
Outrossim, diante da insuficiência ou impotência patrimo-nial das concessionárias, funciona o Estado com responsabili-dade subsidiária. Em alguns países, essa responsabilidade subsidiária beira à responsabilidade solidária, porque quem não pode ficar sacrificado é o usuário. Conseqüentemente, a concessionária tem a sua responsabilidade primária e o Esta-do tem a responsabilidade subsidiária.
Uma terceira questão que vem surgindo agora diz respeito à responsabilidade da concessão em confronto com uma pseudo-sucessão de empresas. E aqui eu chamo a atenção dos colegas, que me ouvem com tanta atenção, que no campo de Direito Administrativo vigora o princípio da legalidade.
O princípio da legalidade no Direito brasileiro é muito simples: no Direito Privado, significa que nós podemos fazer tudo que a lei não proíbe; no Direito Público, o princípio da legalidade significa dizer que o administrador só pode fazer aquilo que ele está autorizado por lei. Isso parece simples para nós, mas, recentemente, o Presidente da Corte de Cassação Italiana fez uma palestra no Superior Tribunal de Justiça, no qual ele empreendeu um confronto até irônico em relação a esse princípio da legalidade. Dizia: “Na França, tudo é permitido, salvo aquilo que for proibido por lei. Na Alemanha, tudo é proibido, salvo o permitido por lei. Na Itália, tudo é permitido, inclusive o que é proibido por lei; na Rússia, tudo é proibido, inclusive o que é permitido em lei.”
O Brasil é mais eclético nesse aspecto. No Brasil, consoante o princípio da legalidade, o administrador pode fazer o que a lei o autoriza. Exatamente por isso, é diferente a percepção diante de um contrato administrativo e diante de um contrato privado da administração. Inclusive, há uma previsão expressa de improbidade administrativa para o servidor que ultrapassa os seus limites de atuação.
É cediça também a impossibilidade de aplicação das normas do direito privado no contrato que é regido por normas impositivas, imperativas e indisponíveis, como soem de ser as normas que versam sobre os contratos de direito administrativo. Esse aspecto tem chamado atenção e não
é um problema isolado, mas, antes, um problema recorrente seriíssimo.
Nesse particular, eu os concito à rememoração do encontro que ocorreu em Mangaratiba, quando discutimos a concessão de medida liminar em plano de saúde quando vigorava uma jurisprudência caridosa, sintetizada no seguinte aforisma: “Vamos atender a todos ainda que fora do plano e ainda que quebre o plano.” Na oportunidade, chegamos à conclusão de que, se a saúde é um dever do Estado e é um direito de todos, a primeira preocupação do juiz é ver se o Estado pode prestar aquela assistência à saúde fora do plano. Se o Estado pode prestar aquela assistência à saúde fora do plano, não vamos sacrificar os outros que vão concorrer para que se satisfaça um só.
E tanto assim o é que hoje eu verifico, quando acode ao Tribunal através de recurso especial em agravo referente a acórdãos, nos quais os juízes ponderam bem esses valores a ponto de dar uma decisão justa sem inviabilizar o serviço de saúde, o que, no meu modo de ver, deve ser a solução no serviço de transportes.
Nós não temos que discutir se a parte é legítima ou ilegítima, na medida em que a legitimidade se afere pelo que a parte está narrando na petição inicial. Se alguém que sofre um acidente diz “Eu sofri um acidente e quero promover uma ação em face desta empresa de transporte.”, observa-se pelo que está narrando, pela causa petendi e pelo pedido, que a parte é legítima. A parte pode até não ter o dever de indenizar, mas isso não é um problema de condições da ação. Essa é uma questão de mérito. Ou seja, se ela não tem o dever de indenizar, o pedido é improcedente; se ela tem o dever de indenizar, o pedido é procedente. A parte seria ilegítima se afirmasse: “Eu estou propondo a ação contra essa pessoa, porque eu sei que ela tem patrimônio maior que a concessionária anterior.” Nesse caso, a ilegitimidade seria flagrante. Verifica-se, assim, que a aplicação desse dispositivo referente à legitimidade é evidentemente anômala, porque o problema não é de legitimidade.
Na verdade, o problema é de quem tem o dever de indenizar. A Turma do direito público assenta que não é lícito impor a afirmação de que o dever de indenizar uma nova concessionária que passou por uma licitação, que leu o edital, colocou no contrato os limites da sua responsabilidade, e não pode ser surpreendida com a afirmação de sua legitimidade passiva. Data maxima venia,  o enfoque é equivocado na medida em que o problema é de mérito e o error in judicando é tanto maior quando se afirma, in verbis: concessionária de transporte ferroviária, responsabilidade de transferência do patrimônio; a empresa que recebe patrimônio da anterior concessionária e continua na exploração da mesma atividade responde pela dívida judicial já constituída.
Lembramos aos senhores que isso não está escrito em lugar nenhum. Nem no Direito Público nem no Direito Privado. O que ocorre é: se, eventualmente, a parte alegar que essa outra empresa concessionária está querendo escapar de uma dívida através de uma simulação, ela tem que propor uma ação pauliana, porque não há ação em curso e sucessão de concessão. Isto encerraria uma fraude contra credor. Mister fazia-se uma ação para anular esse negócio.
Por outro lado faz parte do negócio que o preço leve em consideração o fato de a nova concessionária utilizar-se de um acervo ainda útil. É claro que, se o acervo que estiver ali não servir para nada, a concessionária terá que investir e, se assim o for, talvez outras sejam as condições da concessão. Entretanto, o fato de ela aproveitar-se não significa que haja sucessão de empresas. Em primeiro lugar, a sucessão no direito brasileiro não se presume. A sucessão está prevista na lei, decorrente de uma incorporação, uma cisão, etc. Entretanto, pode-se  presumir uma sucessão de concessão de serviço público em nome de nenhum princípio.
O administrador público que for caridoso a esse ponto certamente será incluído na lei de improbidade administrativa. E a lei de improbidade serve para quem tem vínculo público e para quem faz às vezes do serviço público. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, nos hospitais particulares conveniados ao SUS, os seus dirigentes respondem por improbidade administrativa dentro daqueles limites. É claro que algumas sanções são intuitu personae e só para funcionários públicos, mas há outras sanções de reparação de dano, inabilitação para concorrer, que se estendem aos concessionários. Isto significa dizer que o administrador público não pode fazer caridade à luz da legislação consumerista que in casu não se aplica, porque estamos diante de uma relação de direito público entre o poder concedente e o concessionário.
A própria Constituição Federal estabelece que a lei deter-minará a modicidade das tarifas e os direitos dos usuários. Então, se a lei complementar que regulamenta a Constituição Federal ou a lei ordinária disser que toda vez que uma pessoa vender tem responsabilidade, é evidentemente tollitur quaestio. É uma questão também de legalidade. Não respeita a legalidade uma imputação graciosa de responsabilidade.
A discussão é tanto mais grave porque não é uma discussão ab origine. Não é aquela discussão em que a parte promove a ação contra quem não se considera responsável. Caso isso ocorra, exsurgiria uma questão de mérito referente à negativa de responsabilidade. A parte ré, ao contestar, vai afirmar: “Eu não tenho o dever de indenizar.” Consoante a didática do professor Barbosa Moreira, o réu ainda pode dizer: “Como eu não tenho o dever de indenizar à luz do contrato, eu venho promover uma ação declaratória incidental para que nunca mais seja molestado com ações como essa e peço que se declare incidentalmente que não tenho o dever de indenizar, porque o meu contrato dispõe que eu não tenho o dever de indenizar.” Resolve-se a questão sob esse ângulo. O que não se permite é presumir a sucessão, muito menos a responsabilidade patrimonial secundária, que significa o sacrifício dos bens de alguém por dívida alheia.
Com o que nos deparamos na prática? Exatamente com o que deu ensejo ao fundamento desse acórdão da Turma de Direito Público. Nós nos deparamos, na prática, não com uma ação originária de conhecimento, em que se pode discutir por via de declaratória incidental se a concessionária tinha ou não dever de reparar o dano. Nós já nos deparamos com um processo satisfativo de execução no qual fez-se uma penhora de bens da concessionária como se fosse responsável patrimonial por aquela dívida da antecessora. Ela, a nova concessionária, sequer tomou parte no processo de conhecimento. Ademais, nesses casos, há um negócio jurídico integrativo da licitação que dispõe que ela não responde pelas dívidas anteriores, sem prejuízo de o artigo 10º da lei das concessões ser claro em estabelecer que, se houver o cumprimento do contrato, não há álea e o contrato está sendo bem cumprido.
Mesmo assim, nós nos defrontamos com casos de penhora de bens das empresas que prestam serviço público geral. A penhora a que nos referimos não é a de um vagão de trem, o que inviabiliza a atividade. Mas é ainda pior. A penhora de faturamento on line que não está bem regulada, de sorte que, se, por exemplo, alguém tiver a infelicidade de se tornar devedor de mil reais de alguém, uma penhora on line pode atingir mil reais em todas as contas que a pessoa possui. Nesse caso, ao invés de mil reais, serão dez mil reais, e suscitará a interposição de embargos de terceiro.
A Turma de Direito Público, à luz do direito público, decidiu que as regras do Direito Administrativo constitucional dispõem que as empresas criadas pelo governo respondem por danos segundo as regras de responsabilidade objetiva. E, na hipótese de exaurimento dos recursos da prestadora de serviços, o Estado responde subsidiariamente (Artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal)
Conseqüentemente, é defeso atribuir o cumprimento da obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de
serviços públicos a outra que não concorreu para o evento, apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição não encontra amparo no instituto da responsabilidade administrativa assentado na responsabilidade objetiva da causa-dora do dano e na subsidiária do Estado, diante da impotência econômica e financeira daquela.
Essa é a jurisprudência da Turma de Direito Público, que ainda destaca a inexistência de nexo de causalidade. A novel concessionária não praticou qualquer ato ilícito. O fato danoso não foi praticado por ela, por isso que a mesma não tem como ter imputada essa responsabilidade objetiva.
Há ainda um detalhe, qual o de o Superior Tribunal de Justiça não analisa contrato pela Súmula 5 nem fatos pela Súmula 7, razão pela qual, se essa questão da responsabilidade não for bem resolvida na instância local, haverá uma certa interdição de análises pelo Superior Tribunal de Justiça.
Contudo, segundo algumas cláusulas do contrato, a  em-presa demandada, quando for equivocadamente acionada, dispõe de um prazo para dizer: “Estou sendo equivoca-damente acionada por um ato que não me diz respeito.” Essa comunicação, na verdade, é uma das modalidades de denunciação da lide, pois a denunciação da lide tem duas modalidades. Pode ensejar uma mera denúncia da lide,  como o próprio nome insinua; quer dizer, avisa-se que há uma lide pendente ou então uma denunciação da lide sob a modalidade de ação de regresso, que não é o caso in foco, porque a nova concessionária não tem o dever de pagar para depois regredir. A concessionária não tem simplesmente o dever de pagar dívida da antecessora, uma vez que ela sustenta que não deve ser responsabilizada e, em prol do usuário, comunica o poder concedente para que ele assuma o pólo passivo juntamente com a devedora anterior.
Entendemos que essa denúncia da lide faz da nomeação à autoria. O que o réu faz da nomeação à autoria? O caseiro, v.g., é acionado sob a acusação de que está invadindo a propriedade do vizinho, que se defende, afirmando: “Eu sou caseiro. Não tenho nada a ver com isso. Vou convocar o verdadeiro suposto esbulhador. Vou nomear à autoria o dono da propriedade que me colocou aqui como caseiro.” A denúncia da lide serve para isso. “Essa briga não é comigo. Vamos convocar o verdadeiro responsável segundo essa jurisprudência.” E o verdadeiro responsável, no sentido material da palavra, é aquele que tem a obrigação de reparar o dano.
Essa é a jurisprudência da Seção de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem uma jurisprudência dividida. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem jurisprudência com uma percepção exata de que, se não houver nenhuma cláusula contratual obrigando a concessionária a pagar prejuízos de terceiros, ela não tem que pagar nada.
Evidentemente, com uma certa dose de adoração pelo órgão ao qual pertenço, eu diria aos senhores que a jurisprudência da Seção de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça, a meu ver, está mais próxima do porto do que do naufrágio.