O incidente da conversão da ação individual em coletiva

6 de fevereiro de 2015

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Professor Supervisor do Centro de Justiça e Sociedade — CJUS da FGV Direito Rio, mestre em Direito Processual Civil e bacharel em Direito. Juiz Titular da 1º Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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Acao-individualÀ parte a melhor conceituação do instituto da coisa julgada, é certo que o direito está em busca da pacificação social, minimizando as tensões decorrentes das relações humanas. Na perspectiva da diminuição do excesso de litigiosidade, o novo Código de Processo Civil, durante sua tramitação na Câmara dos Deputados, criou a figura do incidente de conversão de ação individual em coletiva, que aqui pretendo chamar de coletivização das ações individuais.

Disposto no artigo 334, e seus parágrafos, do Projeto de Reforma do Código de Processo Civil, inicialmente a novidade não despertou o interesse da Comissão responsável pela condução do projeto no Senado, que o suprimiu ao argumento de que o incidente de resolução de demandas repetitivas, outra novidade proposta, bastaria para enfrentar o problema crônico decorrente do que o presidente da referida Comissão, Ministro Luiz Fux, denomina de “litigiosidade desenfreada”, a par de referido incidente ser de duvidosa constitucionalidade, fatos que lhe justificariam a retirada do Projeto.

Diz o texto normativo, na versão entregue pela Câmara por meio da Comissão Especial, de iniciativa do Deputado Paulo Teixeira, e retirado por Emenda do Senador Ricardo Ferraço:

Art. 334 – Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade da formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que:
I)tenha alcance coletivo em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, e cuja ofensa afete, a um só tempo as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade;
II)tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, pela sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo;
[…]
§ 6o)O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo. 

A justificativa do Senado, na relatoria do Senador Vital do Rego:

Em primeiro lugar, é de erguerem-se suspeitas sobre a constitucionalidade dessa ferramenta processual, que, mesmo contra a vontade do autor da ação – o que parece arranhar o princípio constitucional do acesso à justiça –, transformará o pleito individual em uma ação coletiva.
Em segundo lugar, a discussão acerca da tutela coletiva de direitos tem foro legal próprio, diverso do Código de Processo Civil. O tema atinente à conversão de ações individuais em coletivas deve ser cultivado em outras iniciativas legislativas, que versem sobre processo coletivo.

A suspeita de inconstitucionalidade, levantada pelo Senador Vital do Rego ao fundamento de que a coletivização atentaria contra a vontade do autor da ação, não se sustenta em face do § 6o do artigo 334 do Projeto acima transcrito. Isso porque o autor da ação permanecerá na condução do processo, na qualidade de litisconsorte unitário. Ademais, a tese da inconstitucionalidade carece de fundamento porque a ninguém estará sendo negado o acesso à justiça. Na verdade, os sujeitos de direito estarão nos autos através de um substituto processual que em nome próprio defende direito alheio, nos termos do art. 6o do CPC/73. A prevalecer a suspeita, todo o sistema voltado à coletivização das ações – o que representa uma tendência mundial – estaria em questionamento, qualquer que fosse a espécie de ação coletiva.

Ao analisarmos o projeto sistematicamente, fica fácil perceber a pretensão de destacar o excesso de litigiosidade, a insegurança jurídica e a falta de previsibilidade como razão de ser das modificações necessárias para se criar um ambiente de maior conforto para o jurisdicionado e, por que não, para a própria sociedade, a partir do fato de que a legislação processual pode, e muito, contribuir para um ambiente fértil ao investimento e, com isso, elevar o teor de segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais, sem que tal importe em retirar dos magistrados a independência para julgar os conflitos de interesse postos à sua mesa, mas desenhando um cenário de maior apego à observância das decisões proferidas por tribunais superiores.

Falar em redução de litigiosidade, celeridade e efetividade perpassa pelo estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas, que objetiva desafogar o processamento crescente de feitos judiciais. Também pela uniformização das sentenças envolventes de casos idênticos, a conferir maior legitimidade às decisões, porquanto inaceitável que sobre bases fáticas idênticas juízes tomem decisões diametralmente opostas, gerando insegurança e desconfiança no sistema judicial.

Talvez essa tenha sido a razão do desprestígio àqueloutra novidade da coletivização das ações individuais, que, por outras razões, segundo sustentaram, poderia ser renovada por lei especial que trate de ações coletivas. Contudo, se é verdade que o incidente de resolução de demandas repetitivas atende ao interesse de uniformização de decisões e redução do inaceitável acervo de processos nos quatro cantos do país, é certo, também, que a coletivização resolveria – ou resolverá – outro problema seríssimo de nosso sistema processual, qual seja, o da coisa julgada nas hipóteses decorrentes da formação de litisconsórcio facultativo e unitário. E é essa a proposta desta breve reflexão.

Tudo se inicia pela redação tortuosa do artigo 472 do Código de Processo Civil de 1973, verbis:

A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.

Tortuosa porque não é verdade que a coisa julgada só alcança aqueles que foram parte no processo, não beneficiando, nem prejudicando, terceiros. O projeto também não se descuidou de tratar desse ponto, mas agora o momento é destinado à discussão, itere-se, da coisa julgada nas hipóteses de litisconsórcio facultativo e unitário.

Como cediço, há terceiros que se encontram em situação de subordinação em relação à parte que frequenta uma relação processual e há casos em que terceiros encontram-se equiparados a outros sujeitos, sem vínculo algum de subordinação. Para o primeiro caso, citemos a figura do assistente simples; enquanto para o segundo, os sócios de uma mesma sociedade.

No caso do assistente simples, o artigo 55 do Código de Processo Civil mostra que ele, em regra, é alcançado pela coisa julgada, desconstruindo a redação do já citado artigo 472 do Estatuto Processual. Quanto ao terceiro que não está em posição de subordinação, portanto equiparado aos demais, a situação se torna delicada na medida em que, não sendo parte, não será alcançado pela coisa julgada, podendo, assim, revolver a mesma matéria já decidida em relação a outro sujeito que se encontre na mesma situação jurídica. A partir daí, outros poderão agitar a mesma questão já decidida, criando um ambiente de indesejável instabilidade processual e insegurança jurídica.

O Professor Alexandre Freitas Câmara assim se manifesta sobre o tema:

Quanto aos terceiros juridicamente interessados, podem estes ser divididos em dois grupos: de um lado, há terceiros cujo interesse jurídico é idêntico aos das partes. Estes podem, obviamente, se insurgir contra coisa julgada. Basta pensar numa demanda ajuizada por um acionista de uma determinada sociedade anônima, em face desta, onde se pede a anulação de uma assembleia de acionistas. Transitada em julgado a sentença que julgou improcedente o pedido de anulação, nada impede que o outro acionista, terceiro em relação àquele processo, mas titular de um interesse jurídico equivalente ao das partes venha a ajuizar demanda pelo mesmo fundamento, e com idêntico pedido.
Há, porém, que se considerar a existência de terceiros com interesse jurídico inferior ao das partes. Estes, embora possam vir a sofrer prejuízo jurídico em razão da sentença, encontram-se em posição de subordinação em relação às partes, o que acarretará algumas consequências relevantes. Pense-se, por exemplo, na posição do sublocatário em relação a uma sentença que tenha decretado o despejo, em processo em que foram partes locador e locatário. Embora tenha permanecido como terceiro no processo em que se proferiu a sentença, o sublocatário não poderá atacar a coisa julgada que se formou com a mesma liberdade com que o faz o terceiro cujo interesse jurídico é equivalente ao das partes.
Assim é que o terceiro com interesse jurídico subordinado ao das partes só poderá atacar a coisa julgada que eventualmente se forme alegando injustiça da decisão. Deve-se entender por decisão injusta a que contrarie o direito em tese ou a que seja proferida manifestamente contra a prova dos autos. Apenas essas duas causas poderão embasar uma demanda do terceiro titular de interesse jurídico subordinado ao da parte em face do vencedor do processo onde se formou a coisa julgada.
Diferem, pois, os terceiros juridicamente interessados em que uns (os que têm interesse equivalente ao das partes) não são em nenhum modo afetados pela coisa julgada, enquanto outros (os que têm interesse subordinado ao das partes) só poderão infirmar a res iudicata alegando injustiça intrínseca da decisão.1

O festejado professor reconhece a possibilidade de revolvimento de matérias já decididas, tendo como fundamento a equiparação entre aqueles sujeitos. Contudo, é necessário enfrentar as consequências dessa afirmada possibilidade, porquanto inquestionável concluir pela sobrevinda de instabilidade das relações jurídicas quando se permite que uma matéria já decidida possa ser revisitada.

Como resolver a controvérsia? Enfim, a coisa julgada havida na primeira relação processual alcança a todos os sujeitos que se encontram na mesma posição jurídica, e, portanto, encontram-se numa situação de equiparação, ou, ao contrário, não alcança aquele que não frequentou o primeiro processo, permitindo rediscussões sobre a mesma base fática?

Não se diga que o artigo 471 do Código de Processo Civil resolveria a questão. É verdade que nenhum juiz decidirá a mesma lide, porém, tratando-se de partes distintas, não há se de cogitar da “mesma ação”, não se aplicando, nesse caso, nem a Teoria da Tríplice Identidade das Causas, nem a Teoria da Identidade das Relações Jurídicas.

A proposta da coletivização das ações individuais, gestada na Câmara dos Deputados e retirada por ocasião do retorno do Projeto ao Senado Federal, poria fim à questão processual mediante a coletivização das ações individuais. Com efeito, o inciso II do citado artigo 334 do Projeto de Reforma do Código de Processo Civil se ajustaria, perfeitamente, às hipóteses em comento e que concerne ao litisconsórcio facultativo. Assim:

II – tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, pela sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo.

O texto evidencia a preocupação de se conferir a mesma solução ao conflito havido numa relação jurídica plurilateral, e o tratamento de igualdade a todos que integram aquele grupo, gerando a estabilidade necessária à pacificação social. Por outro lado, encerra a discussão acerca da possibilidade de um terceiro, numa situação de equiparação, rediscutir decisões tomadas em outros processos com a mesma base fática, resultando, sublinhe-se novamente em maior legitimidade das decisões judiciais.

Para alegria dos defensores da afirmada coletivização das ações individuais, o Requerimento no 1.025, de 2014, da Relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira, trouxe de volta essa importante figura processual que, por certo, resolverá a controvérsia comum nas questões empresariais, minimizando as tensões decorrentes dos conflitos societários.

Veja-se o destaque:

O dispositivo em questão fora inserido pela Câmara dos Deputados no Substitutivo ora sob apreciação desta Casa e, juntamente com seus inc. I e II, tratam das hipóteses de conversão da ação individual em coletiva, ou seja, quando houver “alcance coletivo, em razão da tutela do bem jurídico difuso ou coletivo, (…) e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas…….

E conclui:

Não vemos desta forma a questão. A proposta não impede o acesso do indivíduo ao judiciário, mesmo porque o texto aprovado pela Câmara propõe que seja o autor da ação individual ouvido, antes da conversão judicial em demanda coletiva. Ainda que haja outros indivíduos em mesma situação de fato e de direito, a proposta também não os impede de apresentar suas demandas individualizadas, ainda que esteja em curso a ação coletiva (assim convertida ou não). No mais, a proposta da Câmara dos Deputados é meritória e amplia, ainda mais, o contexto da celeridade processual, ao permitir a simplificação do rito processual para afetação de bens coletivos e interesses difusos.

Em arremate:

I)o Código de Processo Civil de 1973, nada obstante os avanços que introduziu no nosso sistema processual, foi objeto de numerosas modificações pontuais ao longo dos anos; chegou a hora de uma modificação geral, organizando-se todo o sistema processual, além de incluir novos institutos e excluir aqueles que o tempo demonstrou desnecessários;
II)uma das novidades introduzidas por ocasião da passagem do Projeto pela Câmara dos Deputados foi o incidente de conversão das ações individuais em coletivas, mantendo o autor original na condução do processo, ao lado de qualquer dos legitimados a propor a ação coletiva;
IIIao retornar à Casa de origem, a novidade foi suprimida do texto modificado na Câmara, tendo como argumento uma suposta inconstitucionalidade e, ainda, não ser o Código de Processo Civil sede adequada para tratar desse assunto; igualmente entendeu-se que, para enfrentar a litigiosidade desenfreada, conforme palavras do ilustre Ministro Luiz Fux, Presidente da Comissão de juristas responsável pela criação de um novo modelo legal, bastaria a inclusão do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas;
IV)ao se analisar o Destaque da Relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira, a novidade da coletivização das ações individuais foi reintroduzida no texto legal, fato que resultará numa enorme contribuição para reduzir as tensões havidas nas relações empresariais.

Nota ________________________________________________________________________
1 Câmara, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol I. Editora Atlas, São Paulo, 23a ed. 2012. p. 538-539.