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O Juiz, sua liberdade de consciência e pressões da imprensa

5 de fevereiro de 0200

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O Poder Judiciário aplica contenciosamente a lei aos casos concretos, sendo sua missão distribuir Justiça, que ARISTÓTELES entendia ser a base da sociedade ou, o lugar comum de todo governo, segundo PLATÃO. Desde tempos remotos, a tarefa de julgar é vista como de alta relevância e difícil desempenho. O juiz é, sem dúvida, guardião da ética, moral e valores sociais constitucionalmente protegidos, devendo defendê-los mesmo contra interesses não virtuosos e com freqüência poderosos.

Segundo o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO: “De outro lado, como consectário de sua própria natureza, o órgão estatal que a exercita, o Poder Judiciário, é o guardião maior dos direitos, a garantia das garantias constitucionais”.

Não obstante a fundamental importância do Poder Judiciário para a concretização e garantia do Estado Democrático de Direito, recentemente, alguns Juízes Federais foram vítimas de reportagens publicadas em jornais de grande circulação que acusavam estes Julgadores de contribuírem para a manutenção de uma suposta “indústria de liminares”. Trata-se dos Magistrados que deferiram medidas liminares em favor de pequenas e médias distribuidoras de produtos derivados do petróleo reconhecendo a imunidade destas ao recolhimento do PIS e COFINS, com base no § 3º do art. 155 da Constituição Federal.

As matérias publicadas possuíam inegável cunho sensacionalista e pouca profundidade quanto à análise da questão sob o prisma jurídico. Por exemplo: “Juízes Livram Empresas de Impostos”, Jornal da Tarde, de 19.06.2000; “Indústria de Liminares Beneficia Empresas”, O Estado de São Paulo, de 19.06.2000; “Juízes vão à Câmara para explicar Liminares”, Folha de São Paulo; “TRF de SP vai Investigar Concessão de Liminares”, Folha de São Paulo, de 04.07.2000.

O caso gerou tanta repercussão que o autor destas modestas linhas, bem como o MM. Juiz Federal MARCELO MESQUITA SARAIVA (e, ainda, Magistrados de outros Estados), chegaram a ser “convidados” para explicarem suas liminares perante a Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, cujo objeto certamente era menos o esclarecimento do que o espetáculo, mas certamente marcado pela desinformação e inoportunidade. Primeiro porque o Dr. SARAIVA não defere liminares nesta matéria. Segundo, porque não cabe ao Poder Legislativo questionar decisões do Poder Judiciário. Deve, ao contrário, cumpri-las, cabendo a quem se sentir ofendido a utilização dos meios recursais legalmente previstos.

O que pretendiam esses nobres deputados? Quais os objetivos das notícias acima referidas? A defesa do erário público (os beneficiados pelas liminares deixaram de recolher o PIS e a COFINS)? É curioso notar, contudo, que se pode contar nos dedos o número de demandas referentes à imunidade em tela (§ 3º do art. 155 da CF), enquanto que às centenas e centenas vigoram liminares que dispensam ou amenizam a carga da COFINS para outras empresas que não atuam na área de derivados de petróleo (por exemplo, o conceito de faturamento alterado pela Lei nº 9.718/98).

Será que as manchetes e os parlamentares estavam efetivamente preocupados em defender os cofres públicos? Não haveria interesses inconfessáveis por trás de toda essa gritaria por uma questão que certamente apresenta número diminuto de demandas?

Algumas notícias (inclusive a Rede Globo, no Jornal Nacional de 29.06.2000) chegaram ao cúmulo de, a pretexto de defender o interesse público, ventilar a existência de corrupção na obtenção das liminares. Ressalte-se (e isso pode ser comprovado por singela leitura das manchetes) que não existiu qualquer denúncia concreta ou específica contra quem quer que seja, tudo sendo remetido a uma espécie de limbo nebuloso. Em conclusão, não havendo a necessária e indispensável identificação dos possíveis criminosos, todo o Poder Judiciário Federal restou agredido em sua dignidade, arduamente defendida diuturnamente pelos Magistrados Federais.

O exercício da Magistratura Federal não é fácil, principalmente porque às vezes é de rigor contrariar esses interesses inconfessáveis. O Desembargador SIDNEI AGOSTINHO BENETI bem resume esta dura realidade: “Os
braços dos Juízes Federais são, sem dúvida, muito longos; os interesses atingidos, tantas vezes muito poderosos: os ombros terão de ser muito mais fortes, para toparem esses grandes embates que definem os destinos da nacionalidade, choques pelos quais anseia a sociedade nacional como sonham os guerreiros do bom combate com o momento da batalha decisiva!”

Não existe “indústria de liminares”! Como bem proclamado pelo MM Juiz Federal RENATO LOPES BECHO em 30 de junho passado, no Seminário Jurídico – Instituto Brasileiro do Petróleo (São Paulo, Hotel Ca’d’Oro): “Não fosse por isso, a expressão “indústria de liminares” deveria ser vista como elogiosa. Inclusive porque atrás dela temos a indústria das sentenças, a indústria dos mandados, dos ofícios, dos recursos, dos acórdãos, enfim, das decisões judiciais. Essa indústria, de fato, movimenta números industriais. Lembramos que o Congresso Nacional abriga 513 deputados e 81 senadores, num total de 594 parlamentares federais, apenas 163 a menos do que juízes federais. Provavelmente na maioria dos Estados brasileiros, há mais deputados federais que juízes federais. Pois bem, os 759 juízes federais de 1ª Instância julgaram em 1995, 345.000 processos. Em 1999, foram 550.000 sentenças, pouco para 1.079.158 novas distribuições (50%). São, de fato, números industriais, principalmente para uma atividade intelectual”. Abrilhantou também o seminário referido, na mesma linha do palestrante, a MM. Juíza Federal REGINA HELENA COSTA.

O art. 5º, XXXV da Carta Magna garante o poder geral de cautela em nível constitucional. O magistrado que entender presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência, não somente pode, mas, verdadeiramente, deve concedê-la. O meio de atacar essa decisão é o recurso (e o estatuto de rito prevê vários!). Enquanto a decisão estiver em vigor, deve ser cumprida e não discutida, ainda mais por órgãos da imprensa em clima de esperneio e histerismo.

A possibilidade do deferimento de medidas liminares, ainda que contra órgãos públicos, é direito fundamental dos cidadãos. Cláusula pétrea, portanto, insuscetível de abolição mesmo que por Emenda. O Poder Judiciário deve exercer seu papel constitucionalmente delineado porque, conforme afirmado pelo MM. Juiz Federal MARCELO MESQUITA SARAIVA à Folha de São Paulo: “ A partir do momento em que um juiz é criticado ou perseguido porque concede liminares, é melhor fechar o Judiciário”.

É que segundo o MM. Juiz Federal ALFREDO FRANÇA NETO: “A Justiça que, por inspiração democrática, atua com independência em relação aos demais Poderes da República, só fará jus ao seu nome na medida em que assegurar a liberdade e as garantias individuais do cidadão. A função primordial do Judiciário é preservar a ordem constitucional, restabelecendo o equilíbrio jurídico e, na história do País, vem se redimindo da grande falta que fez à República, como reclamava João Mangabeira”.

Tão certas as palavras de CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA: “Entretanto, qualquer que seja o regime político, reconhece-se, atualmente, que a jurisdição compõe o rol dos direitos políticos fundamentais do cidadão. Por isso mesmo, o direito à jurisdição vem elencado, não poucas vezes, entre aqueles que a Lei Magna reconhece e assegura”.

Em conclusão, a vileza dos interesses inconfessáveis deve entender, de uma vez por todas, que no Brasil constrói-se um Judiciário Federal independente, que não se curvará a embustes e caprichos. Assim, quem se sentir prejudicado por alguma liminar deve simplesmente recorrer. E, se a questão afetar à livre concorrência, que se bata nas portas do CADE, ou mesmo se utilize de outro meio, desde que legítimo, ético e moral!

Efetivamente, esclarecedoras são as palavras do Ministro CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO: “Compreende-se, então, nos Estados Democráticos, que devem ser conferidas, objetivamente, ao Poder Judiciário certas garantias de independência, que não deixam de ser, em última análise, do próprio povo, o que, compreensivelmente, não acontece nos regimes totalitários ou de ditaduras tradicionais, em que a Justiça subordina-se ‘aos objetivos políticos dos governantes’”.

A firmeza do Magistrado, em respeito à sua convicção, em consonância com a Carta Magna, tem cabedal importância em momentos difíceis como os acima narrados. Há de ser esta, portanto, mantida, principalmente nos lamentáveis casos de pressões ilegítimas e suspeitas.

RUI BARBOSA, sempre preclaro, ensinou que: “A intrepidez do juiz, como a bravura do soldado, arrebatam e fascinam. Os governos investem contra a justiça, provocam e desrespeitam a tribunais; mas, por mais que lhes espumem contra as sentenças, quando justa, não terão, por muito tempo, a cabeça erguida em ameaça ou desobediência diante dos magistrados, que os enfrentem com dignidade e firmeza”.

Finalizando. Não se pode esquecer que a imprensa é dignatária da missão constitucional de bem informar, divulgar idéias e, sobretudo, difundir a cultura que o Brasil necessita com avidez. E, por isso, lhe é devido respeito e admiração. Contudo, quando este caminho é desbordado, cabe aplicar o corretivo e não retrair-se.