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O Ministério Público e sua missão eleitoral

5 de julho de 2001

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Nos últimos tempos, e cair no lugar comum afirmar que o Ministério Público é uma instituição que vem experimentando impressionante crescimento com importância no cenário nacional em geral e na administração da justiça em particular, principalmente após o advento da Constituição de 1988, onde recebeu tratamento especialíssimo, ganhando novas e importantíssimas atribuições. A par da renovação e do aperfeiçoamento das antigas funções, o Ministério Público brasileiro ganhou um poder e uma gama de atribuições talvez inéditas no mundo.

Dentre todas essas novas atribuições conferidas ao Ministério Público, depois da promoção da ação penal, a função eleitoral, sem dúvida alguma, é a mais importante e relevante, pois trata de fiscalizar a lisura e o bom andamento do processo eleitoral, pedra angular do regime democrático.

No Código Eleitoral, lei promulgada no longínquo ano de 1965, o Ministério Público é mencionado de passagem em meia dúzia de artigos, num tratamento pouco cientifico e defasado até mesmo para a realidade da época. É certo, porem, que na área penal o Código Eleitoral, ao dispor que as infrações penais nele definidas são de ação pública, fato que automaticamente confere a exclusividade da ação penal eleitoral ao Ministério Público, o que não deixou de ser um louvável avanço. Mas trata-se de honrosa exceção, pois, ao dispor sobre o processo eleitoral em si, o Código Eleitoral praticamente esquece do Ministério Público.

Essa realidade, entretanto, com o passar do tempo, modificou-se bastante, pois, com o advento da Constituição de 1988, das Leis Complementares nº 64 de 18 de maio de 1990, e nº 75 de 20 de maio de 1993, e de outros instrumentos legais, o Ministério Público, da condição de mero espectador do processo eleitoral, passou a intervir em todas as suas fases, desde a inscrição dos eleitores ate a diplomação dos eleitos.

A Constituição de 1988 estabelece, como princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Por unidade, entende-se a capacidade dos membros do Ministério Público de constituírem um só corpo, uma só vontade, de tal forma que a manifestação de qualquer deles valerá sempre, na oportunidade, como manifestação de todo o órgão.

A indivisibilidade se caracteriza na medida em que os membros da instituição podem substituir-se reciprocamente sem que haja prejuízo para o exercício do ministério comum.

E a independência funcional significa que os membros do Ministério Público não devem subordinação intelectual a quem quer que seja, nem mesmo ao superior hierárquico. Agem em nome da instituir;ao que encarnam de acordo com a lei e a sua consciência.

A Constituição assegura, ainda, a autonomia administrativa do Ministério Público e especifica suas fundões institucionais, destacando dentre outras a ar;ao penal publica para proteção do patrimônio público, do meio ambiente e de outros interesses difusos, a defesa dos direitos e interesses das populações indígenas e a ação direta de inconstitucionalidade.

Mas o que é mais importante, a nosso ver – a Constituição de 1988, de forma inovadora define o Ministério Público como instituição permanente, essencial a função jurisdicional do Estado, conferindo-lhe a incumbência de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.

Cabe, pois, ao Ministério Público, como custos legis, de acordo com a Constituição da Republica, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Ao Ministério Público Eleitoral, a nosso ver, compete de maneira especial zelar pelo aperfeiçoamento do regime democrático. Esta é a primeira vez que uma Constituição brasileira menciona expressamente “a defesa do regime democrático”, como incumbência do Ministério Público. E cremos que o principal destinatário na norma constitucional é o Ministério Público Eleitoral.

Mas o que caracteriza um regime democrático? Certamente não há democracia sem liberdade política e sem respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Não há democracia sem pluripartidarismo. Mas, sobretudo, não há democracia sem eleições.

Durante algum tempo acalentou-se em alguns países a ilusão da possibilidade de democracia sem a participação popular no processo político e eleitoral. A doutrina chegou até mesmo a falar em Democracia de fins, para usar a expressão do brasileiro, professor de Harvard, Mangabeira Unger.

No entanto, a História recente mais uma vez vem demonstrar o equivoco das visões burocráticas e utilitárias da democracia. Não há regime democrático sem eleições periódicas.

O aperfeiçoamento do processo democrático, na verdade – que é também responsabilidade do Ministério Público Eleitoral -, somente pode resultar do exercício continuo da liberdade de votar.

O voto de cada eleitor, pois, deve ser expressão de sua liberdade política. Daí o dever do Ministério Público Eleitoral de representar a Justiça Eleitoral contra o abuso do Poder Econômico, na medida em que este vicia a liberdade de voto.

Cumpre ainda observar que a soberania popular deve ser exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direito e secreto, com valor igual para todos, segundo a Constituição. Vale lembrar, aqui, a propósito, a famosa decisão da Supremo Corte americana, preferida há mais de um século e traduzida na expressão “um homem, um voto”.

Assim, nas eleições – requisito indispensável para a própria existência do regime democrático – o compromisso básico do Ministério Público Eleitoral deve ser com a verdade eleitoral. Nesse ponto, mais do que em qualquer outro, as funções e as responsabilidades do Ministério Público Eleitoral confundem-se com as da Justiça Eleitoral.

A Revolução de 1930, na verdade, viera também para acabar com as chamadas eleições a bico de pena – as fraudulentas eleições nas quais sempre se beneficiavam as velhas oligarquias estaduais. A corrupção era considerada na época o vício fundamental do regime. A representação popular sempre fora uma farsa.

O Ministério Público Eleitoral – cujos quadros são formados de membros do Ministério Público Federal – atua junto a Justiça Eleitoral em todo o país, nos vinte e seis Estados da Federação e no Distrito Federal. Junto aos Juízes e Juntas Eleitorais em cada Estado, atuam os Promotores Públicos das respectivas comarcas e onde houver mais de um, o que for designado pelo Procurador Regional Eleitoral, todos sob sua supervisão. Junto aos Tribunais Regionais Eleitorais oficiam os Procuradores Regionais Eleitorais. E junto ao Tribunal Superior Eleitoral, oficia o Procurador Geral Eleitoral ou seu substituto.

Compete ao Procurador Geral Eleitoral ou ao Vice-Procurador Geral Eleitoral assistir as sessões do Tribunal Superior Eleitoral, com assento ao lado direito do Presidente da Corte, fazendo uso da palavra, se entender necessário, ou quando solicitada sua audiência por qualquer dos Ministros, em todos os assuntos submetidos a deliberação do Tribunal. Compete ainda ao chefe do Ministério Público Eleitoral, ou a seu substituto, exercer a ação pública e promove-la até o final, em todos os feitos da competência originaria da Corte, oficiar em todos os recursos encaminhados ao Tribunal, defender a jurisdição da Corte, representar ao Tribunal sobre a fiel observância das leis eleitorais, especialmente quanta a sua aplicação uniforme em todo o País, requisitar diligencias, certidões e os esclarecimentos necessários ao desempenho de suas atribuições, expedir instruções aos órgãos do Ministério Público junto aos Tribunais Regionais, e acompanhar o Corregedor Geral da Justiça Eleitoral, quando solicitado, nas diligencias a serem realizadas em qualquer Estado da Federação.

Compete aos Procuradores Regionais Eleitorais exercer, perante os Tribunais Regionais Eleitorais, funções análogas as que exerce o Procurador Geral ou o Vice Procurador Geral, junto ao Tribunal Superior Eleitoral. Cabe ao Procurador Geral da República designar o Sub-Procurador Geral da República que exercera as funções de Vice-Procurador Geral Eleitoral, e os Procuradores Regionais da Republica que exercerão as funções de Procuradores Regionais Eleitorais.

Os membros do Ministério Público Eleitoral exercem suas funções, como custos legis, em todas as fases do processo eleitoral. O processo eleitoral envolve não apenas os partidos políticos e seus candidatos, como partes concorrentes nas eleições, mas sobretudo o eleitorado que é o principal interessado na lisura do pleito.

O alistamento eleitoral, o registro dos candidatos, as inelegibilidades, a propaganda eleitoral, a realização das eleições propriamente ditas, o processo de votação e apuração, a proclamação dos eleitos e a diplomação, todas as ações e recursos, tudo passa pelo crivo e depende da atuação do Ministério Público Eleitoral.

Ao Ministério Público Eleitoral incumbe ainda requisitar a instauração de inquéritos policiais, denunciar os crimes eleitorais e requerer através das Corregedorias, ou perante os Juízes Eleitorais, investigações sobre corrupção, fraude e abuso do poder econômico.

A defesa da ordem jurídica democrática – que é também responsabilidade do Ministério Público Eleitoral – começa evidentemente com a exigência de respeito a Constituição Federal. A nossa História constitucional não tem sido particularmente animadora nesse sentido. Além disso, na República – que agora em 1991, completou cem anos – já tivemos sete Constituições, sem falar nas inúmeras emendas, o que dificulta sobremaneira a hermenêutica constitucional.

O aperfeiçoamento da ordem jurídica democrática, além do mais, evidentemente não se compatibiliza com uma fragmentação partidária abusiva. A liberdade de criação de partidos políticos, segundo a melhor doutrina, deve representar correntes do pensamento político do país. Destinam-se, assim, numa democracia representativa, a orientar o eleitorado e não a desorientá-lo, na escolha dos seus representantes.

A legislação eleitoral e partidária, por outro lado, encontra-se, pelo menos parcialmente, defasada pelo tempo, pois sua vigência iniciou-se durante o período de bipartidarismo no país, quando não havia eleições regulares em todos os níveis do Executivo e do Legislativo. O Código Eleitoral e de 1965. A situação atual, com a redemocratização plena do país após a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de 1989, é bem diversa. Há mais de trinta partidos políticos em pleno funcionamento – o que já é por si só uma aberração em termos de organização partidária – e eleições regulares e periódicas em todos os níveis – federal, estadual e municipal – para Prefeitos, Vereadores, Deputados Estaduais e Federais, Senadores, Governadores dos Estados e Presidente da República.

Urge, pois, que o Congresso Nacional promova as indispensáveis mudanças na legislação eleitoral e partidária, a fim de permitir o aperfeiçoamento do processo eleitoral e do regime democrático.

Portanto, muito ainda se precisa fazer para o aperfeiçoamento do regime democrático neste país. Muito mais importante, porém, do que a escolha entre formas e regimes de governo, a nosso ver, é a continuidade do exercício da cidadania e o respeito ao Estado de Direito, fundado na Constituição.

Os Estados Unidos da América – uma República que adota o regime presidencialista – tem uma Constituição escrita com mais de duzentos anos. E desde a sua fundação tem havido eleições naquele país a cada dois anos.

A Inglaterra – uma Monarquia Constitucional com regime parlamentarista – tem uma Constituição costumeira e realiza eleições periódicas há ainda mais tempo.

O que nos falta, verdadeiramente, pois, é a crença em valores permanentes, expressos numa Constituição, e a pratica contínua e duradoura do processo eleitoral e democrático.

Além da unidade, indivisibilidade e independência funcional – princípios institucionais do Ministério Público que devem pautar o comportamento de cada membro do Ministério Público Eleitoral – exige-se de cada um deles, além disso, a mais absoluta neutralidade e imparcialidade no processo eleitoral.

Os membros do Ministério Público, na vigência da Constituição de 1988, tem as mesmas garantias e vedações impostas a magistratura. Mas é evidente que a vedação do exercício de atividade político-partidária aplica-se com muito mais ênfase a cada membro do Ministério Público Eleitoral.

O membro do Ministério Público Eleitoral, na verdade, deve ter a postura de verdadeiro magistrado. Ao lado do preparo intelectual e da atuação pronta e eficaz na defesa da ordem jurídica democrática, deve o membro do Ministério Público Eleitoral ter a prudência e o equilíbrio indispensável ao exercício de suas funções, especialmente no período de propaganda eleitoral e durante a realização das eleições.

A defesa da ordem jurídica e democrática é, pois, em síntese, a crença em valores permanentes, expressos numa Constituição, e a prática contínua e duradoura do processo eleitoral democrático.