O mundo está sem ética e pode virar um caos

3 de janeiro de 2013

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O advogado Modesto da Silveira foi um destacado e destemido defensor de milhares de presos políticos no Brasil durante o período da ditadura militar. Com seu corpo pequeno e franzino, ele “invadia” penitenciárias, delegacias e todos os locais onde seus clientes pudessem estar sendo torturados para tentar tirá-los de lá. Viajou o mundo todo, sempre em defesa dos direitos humanos e, em função de sua atuação nesse campo, foi convidado pessoalmente pela presidente Dilma Roussef para integrar a Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Nessa entrevista, ele fala de seu trabalho e do que pensa sobre os direitos humanos e a ética no Brasil e no mundo.

RJC – Como integrante da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, certamente você tem conhecimento dos dados divulgados de que nos últimos anos 4.500 mulheres foram assassinadas no Brasil.

MS – Esses números são tão assustadores, que você não pode admitir apenas uma causa. Certamente, a impunidade é uma delas. A outra, é a velha cultura machista, que vem desde lá da Idade Média, estimulada pela Igreja, de que o homem é o senhor da mulher. Ressalto também uma questão psicológica, que é a lei do mais forte, a lei dos músculos, embora homens e mulheres sejam todos iguais, na lei de Deus e dos homens, o homem impõe sua vontade e exige obediência da mulher porque sabe que é fisicamente superior.

Diante de todos esses absurdos, esquece-se da existência da Carta da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos – e é importante que estejamos falando sobre isso agora, quando acabamos de comemorar o Dia Internacional dos Direitos Humanos –, da nossa Constituição, que reza que os direitos são iguais para todos, e da própria Lei Maria da Penha, que veio consolidar esse princípio constitucional. O que vemos, no entanto, é que o que estamos falando na prática não funciona. Parece que diante de um panorama mundial, onde prepondera a lei do mais forte “eu tenho mais armas, portanto, mando e você obedece”, o jeito é criar uma nova ordem econômica e cultural, uma nova orientação em todos os setores da sociedade. Como, por exemplo, as questões dos direitos humanos, as questões éticas, as questões do direito em geral você praticamente não encontra nas escolas. É preciso que as escolas, a família, as igrejas, os diversos grupos que, como tribos, se agrupam na sociedade, condenem e passem a tratar essa questão como algo fundamental e sério. E que haja, finalmente, se nada disso funcionar, uma repressão policial e penal dura a tudo o que viola essa igualdade de direitos.

Creio que os meios de comunicação também têm um papel crucial quando mostram, nas novelas e filmes, mulheres apanhando, mulheres sendo violentadas, mulheres sendo tratadas como coisa, objetos vulgares, fúteis e que não conseguem sair de um mundinho de superficialidade que não leva ao engrandecimento do ser humano. Ora, será que os autores não conseguem atrair o público sem utilizar esses lugares comuns, que já existiam e eram velhos no teatro grego de 500 a.C.? Como é que o jovem pode modificar o seu conceito sobre essa violência se ele é criado dentro desse ambiente? E já dizia Aristóteles: “O homem é produto do meio.” É necessário que lhe ensinem respeito e dignidade para que ele possa compreender e modificar esse problema.

RJC – Você aprova, então, a inclusão do ensino de Ética, Direitos Humanos e Política nas escolas?

MS – Acho essas novas disciplinas necessárias e já deveriam ter sido incluídas no currículo escolar há muito tempo, porque nossa situação relativa aos direitos humanos é uma das piores do mundo. Hoje parece que o mundo está acordando para a questão dos direitos humanos, nunca se falou tanto nesse tema e nunca houve tanta gente engajada em defendê-lo pelo mundo afora, muito em função das redes sociais.

Estou com esperança de que essas prováveis aulas de ética, direitos humanos e política venham a valorizar substancialmente o currículo escolar e peço para que a sociedade pressione a Câmara dos Deputados no sentido de aprovar esse projeto, já aprovado no Senado. Mesmo que, no primeiro momento, a escola não assuma essa despesa, ela pode ser pulverizada nos meses seguintes na mensalidade e eu tenho certeza de que grandes humanistas como advogados, sociólogos, magistrados, antropólogos, historiadores, jornalistas, podem lecionar essa matéria até que haja um orçamento prevendo essas despesas. Os fins justificariam os meios, e muito.

RJC – Fale um pouco sobre a questão dos direitos humanos no Brasil.

MS – A questão da ética no Brasil é muito precária e por que razão? O individualismo é pregado no próprio sistema econômico. Não importa se você é trabalhador ou não, o que importa é quem é o mais hábil para arrancar riqueza e acumulá-la ao infinito. Veja que no Brasil se você pegar a média do Produto Interno Bruto (PIB) e dividir pelos 100 milhões que trabalham (levando-se em conta uma população de 200 milhões de habitantes) teremos essas pessoas produzindo uma riqueza superior a dois trilhões de dólares. O que equivale, para cada pessoa, mais de dez mil dólares por ano.

Em uma casa com cinco ou quatro pessoas, vamos dizer que duas trabalhem e produzam um volume de riqueza que sustente dessa forma as outras quatro ou cinco, elas não passarão fome e viverão dignamente. Mas, na medida em que uma só pessoa, física ou jurídica, acumule a riqueza que tiver capacidade de explorar e guardar, irá acumular de tal maneira que o resto do povo ficará sem renda ou terá renda baixa. E quem ganha hoje salário mínimo tem uma renda anual em torno de sete mil reais, o que significa que os que ganham salário mínimo estão sendo castrados em muito mais do dobro do que eles recebem.

A distribuição em nosso país é tão absurdamente desigual que você vê, por exemplo, que um multibilionário brasileiro pode ganhar dois, quatro, cinco ou seis bilhões de dólares ao ano, mas ao trabalhador dá-se uns poucos milhares de dólares no mesmo período. No entanto, têm situações mundiais muito mais graves, porquanto há países inúmeros, principalmente na África e no Sudeste Asiático, em que a renda média gira em torno de 160, 180 dólares por ano. Ao mesmo tempo, às vezes, um país grande com milhões de habitantes, com toda a população trabalhando, ganha menos do que um único multibilionário, seja ele americano, inglês, brasileiro, chinês ou russo. Então, um homem, nesse modelo econômico completamente em crise, pode ganhar hoje mais do que milhões de outros, o que é um absurdo inimaginável, injusto e desumano.

Em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial, o panorama na Europa era desalentador, com milhões de pessoas mortas, mutiladas, psicologicamente arrasadas, a ONU então se preocupou em criar uma base de direitos humanos, porque durante praticamente sete anos o que se viu foi um verdadeiro massacre contra os direitos humanos.

Hoje, das 195 nações ditas independentes e mais umas 50 que seriam colônias, incluindo dois países, digamos, insignificantes geograficamente, que são o Vaticano e a ilhota de Formosa, ou seja, o mundo todo assinou aquela carta da ONU sobre os direitos humanos, que é uma carta muito bonita, sobretudo num sonho e tentativa de acabar com essa violação tão maciça aos direitos humanos, que vinha da Segunda Guerra que converteu o mundo em um caos, 50 milhões de pessoas mortas, sendo 25 milhões só nos países que comporiam mais tarde a União Soviética. São números espantosos.

A exemplo da ONU, muitos países procuraram incluir nas suas constituições algo do gênero e, se possível, até melhor, como o Brasil, por exemplo, que foi um dos signatários da ONU que melhor acolheram essa tese dos direitos humanos, sendo um dos mais avançados em termos de legislação nesse sentido. Mas só que entre a legislação e a realidade vai um mundo e esse mundo está na cabeça de cada pessoa e na cabeça do coletivo das pessoas de cada país.

E o que vem da cultura e está inserido na cabeça das pessoas, é algo que vem de longe, bastante agressivo, e continua naquilo que é muito alimentado pelo chamado sistema individualista ou capitalista, que é a internacionalização da lei do mais forte. E a lei do mais forte continua vigorando. Até na rua, vemos toda hora, numa briga, numa discussão, o mais forte acaba sempre dando as ordens e no macro-panorama das nações é a mesma coisa. Até a última guerra a Inglaterra dava ordens ao mundo, porque era um império poderoso. Parece mentira que ela tenha provocado a Guerra do Ópio e hoje ela tenha sido simplesmente substituída pelos Estados Unidos, que um dia será substituído por outro país. Já foi Roma, já foi o mundo árabe, já foi Portugal, Espanha.

Os Estados Unidos, desde 1823 com a sua doutrina Monroe, se declararam no direito de invadir qualquer país da América Latina, exceto as colônias britânicas e, como se isso não bastasse, em 1904 Theodore Roosevelt ratificou o direito americano de invadir qualquer país em nome da segurança nacional. Inventam uma guerra apenas para invadir. Só o Panamá foi invadido 13 vezes. O México, cada vez que era invadido, perdia parte de seu território. Na invasão que sofreu em 1840, o México perdeu dois milhões de metros quadrados de seu território. No momento da sua independência, os Estados Unidos eram menores do que um estado mexicano e hoje são bem maiores. Bem, então, se formos olhar dessa forma, em nome da segurança nacional qualquer país também pode invadir o outro. Já pensou que balbúrdia o mundo se tornaria?

No plano individual, o indivíduo acaba copiando essa prática, esse proceder, e  \acaba adotando essa psicopatia da lei do mais forte e essa lei continua no subconsciente de toda gente, desde os tempos em que o homem se tornou “sapiens”. E eu nem diria que o Brasil é um dos países mais violentos, o Brasil deve estar na média das nações nas violações dos direitos humanos.

Nem concordo com a tese do professor e historiador Rubim Aquino quando ele diz que sempre fomos um país violento em função do tratamento dado aos escravos. Por exemplo, quando os europeus escravizavam o leste da Europa, quando precisavam iam lá e buscavam os slaves – os habitantes eram chamados de eslavos, sinônimo de slave, ou seja, escravos. A Europa foi certamente o continente que mais escravizou o resto do mundo. Mas na África também havia tribos que escravizavam seus vizinhos, pelos mais variados motivos, inclusive para vendê-los para os portugueses, ingleses, espanhóis. Aqui, na América, também se escravizava os maias, os incas, os toltecas, os astecas, os olmecas. No Brasil é que as tribos pré-portugueses não conheciam e nem utilizavam a prática da escravidão. Eram uma das poucas culturas no mundo que não escravizam seus semelhantes.

Para encerrar esse assunto, pesquisas dizem que 30 mil pessoas morrem de fome no mundo por dia e quando um megaempresário ganha milhões de dólares por dia e essas milhares de pessoas morrem de fome é ou não é uma forma moderna de escravidão

RJC – E como foi o seu trabalho junto aos direitos humanos no período da ditadura militar? Sabemos que você foi responsável por soltar centenas de presos.

MS – O Brasil tem reproduzido, em maior ou menor grau, as mazelas do mundo. Basta lembrar que em 1º de abril de 1964 o Brasil, que vinha numa luta por manter o sistema democrático, caiu numa ditadura tramada por militares, empresários e personalidades brasileiras e estrangeiras e que foi crescentemente, cada vez mais, violadora das leis, sanguinária e assassina.

Como advogado, desde o dia 1º de abril de 1964 até o final de 1985, lutei denodadamente pelos direitos humanos. Aliás, continuo lutando. Portanto, há 50 anos luto pelos direitos humanos porque as sequelas e os estragos provocados por aquela época negra de nossa história se estendem até hoje. E por falar em sequelas, muitos ficaram com sequelas físicas, morais, espirituais e psicológicas.

E as marcas no corpo e na alma não foi só de trabalhador, estudante, jornalista, intelectual, não; foram pessoas de qualquer categoria que mostraram um pensamento que não se coadunava com o deles, que os confrontassem, que os questionassem sobre a tirania que se estabeleceu. Por exemplo, só de deputados federais sabe quantos foram atingidos? 160. Cada vez que a ditadura queria fazer a maioria artificial ela lançava um AI-5 e cassava alguns deputados para “criar” a maioria absoluta no Congresso e fingir que a votação tinha sido legal e legítima.

Outro dia mesmo houve uma homenagem a esses parlamentares cassados e, desses 160, ainda restam vivos 26 ou 27. Isso só para falar nos deputados federais, mas houve senadores e milhares de deputados estaduais, vereadores e governadores cassados e caçados, já que os que foram presos ou foram mortos, ou barbaramente torturados, ou simplesmente desapareceram. Nós temos as Casas da Morte pelo Brasil afora, não só a famosa de Petrópolis, que há pouco foi desapropriada, um local de tortura tão diabólico, que nem a Alemanha de Hitler podia conceber, nem o mais terrível diretor de um filme de terror poderia imaginar. E quero chamar a atenção para um fato que me parece importante e muito grave: não se pode dizer que foi o Exército, a Marinha e a Aeronáutica que fizeram isso sozinhas. O número de oficiais e militares torturadores e assassinos, inclusive com cursos na Escola das Américas, você já encontra listagem de algumas centenas, mas a lista de oficiais e soldados das Forças Armadas que foram vítimas dessas minorias você conta aos milhares. É bom publicar isso, porque é quase uma notícia em primeira mão e que somente agora começa a vir à tona. Portanto, quem representa a instituição não são centenas e sim os milhares, vítimas dela própria. De generais a soldados, de brigadeiros, almirantes, a cabos e praças.

Eu tive a honra de ter sido advogado de milhares de vítimas, inclusive militares e policiais. Outra coisa grave que temos de colocar é que entre os militares torturadores e assassinos havia alguns que não concordavam com a prática da tortura. E eu, como advogado já calejado nesse assunto, recebi vários telefonemas de militares, inúmeros bilhetinhos e cartas denunciando o que estava ocorrendo dentro das câmaras de tortura e morte, dando informações preciosas que nos ajudaram a salvar muita gente. É importante que a sociedade tome conhecimento disso. Muitos militares e policiais, anonimamente é óbvio, se posicionaram contra a barbárie que estava ocorrendo dentro desses centros de terror. Vou dar apenas um exemplo, quando o sargento João Lucas Alves, que foi assassinado antes do Herzog e do mesmo jeito, foi levado do Dops do Rio para Belo Horizonte, sem o conhecimento do juiz e de seu advogado, para ser barbaramente torturado e morto, eu recebi um telefonema anônimo dizendo: “Corra, seu cliente está em local perigoso. Ou o senhor corre, ou não vai vê-lo mais. Chamei a mãe e a irmã dele, contei o ocorrido e logo no dia seguinte elas voaram para a capital mineira. Eu tinha julgamento e audiência e só poderia ir no dia seguinte. Quando elas chegaram lá, ele já estava morto. Exigi o inquérito da morte, ele estava com sinais de uma bárbara tortura, mas disseram que ele havia se enforcado. Pelas fotos vi que era impossível, não tinha altura na cela, além do fato dele ser grandalhão, ou seja, teria rasgado a calça usada no seu enforcamento, que, claro, foi uma farsa. Outra morte igual foi a do metalúrgico Manoel Fiel Filho.

RJC – E o convite, feito pessoalmente pela presidente Dilma Roussef, para integrar a Comissão de Ética Pública da Presidência da República?

MS – É um cargo muito honroso e difícil, porque ética é a questão do mundo hoje. Que coisa complicada atualmente você aceitar o outro como igual. A lei de conduta, comportamento, como parece uma coisa de outro planeta. Você ter direitos humanos com deveres humanos. Do mesmo modo que você tem o direito de se alimentar, você tem o dever de não atrapalhar e ajudar o outro a se alimentar em igualdade de condições. Mas a nossa cultura, individualista e egoísta, é uma barreira a isso, se coloca como centro da família e do mundo. Se a humanidade quiser viver em paz ela tem que admitir que somos todos iguais e o mesmo respeito que eu mereço eu tenho que dar ao outro.

Nos reunimos duas vezes por mês. Percebo que o mundo está com a mesma preocupação e os mesmos problemas. O ponto é: o mundo está sem ética, sem linha de conduta correta e é preciso melhorá-lo. As lideranças do mundo hoje só conhecem o egocentrismo, a violência como lei e é evidente que isso gera o caos e o que a gente teme e que está tentando evitar com os poucos que ainda têm clarividência e sensatez é justamente isso.