Edição

O novo Código

5 de janeiro de 2003

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E os vícios de consentimento no negócio jurídico

O  presente ensaio objetiva indicar as modificações mais relevantes introduzidas no texto do Código Civil, no tocante aos vícios de consentimento no negócio jurídico.

O primeiro aspecto que realça é a inclusão do termo “negócio jurídico” na legislação civil codificada. O vigente Código limitou-se a tratar do ato jurídico latu sensu, como gênero, pelo que coube à doutrina a identificação das duas espécies: o ato jurídico strictu sensu – aquele cujos efeitos são meramente desencadeados pela vontade do agente ou das partes -, e o negócio jurídico – aquele cujos efeitos são determinados ou determináveis pela vontade do agente ou das partes, observados os limites da norma objetiva.

O novo Código inovou, pois dispôs inicialmente sobre a espécie negócio jurídico, em todas as suas nuances, e depois previu, num único artigo, o “ato jurídico lícito que não seja negócio jurídico” – ou, doutrinariamente, o ato jurídico stricto sensu -, mandando então aplicar a este, no que couber, a disciplina regente do negócio jurídico.

Especificamente quanto aos vícios de consentimento, foram acrescidas duas modalidades às três atualmente previstas na esfera legislativa civil. Os cinco vícios de consentimento previstos no novo Código são: erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo e lesão.

No tocante ao erro ou ignorância, as principais modificações consistem em: a) foi incluída na previsão normativa, acompanhando unânime assertiva doutrinária, a figura do hominus medius (“pessoa de diligência normal”, art. 138), como padrão normal de comportamento para averiguação da escusabilidade do equívoco, e conseqüente habilidade anulatória; e b) foi admitido o controvertido error in juris como causa de anulabilidade do negócio jurídico (art. 139, inc. III), desde que sua alegação não implique recusa à aplicação da lei e que tenha sido o engano sobre a existência, vigência ou interpretação de normas legais o único ou principal motivo da realização do negócio.

Relativamente ao dolo, a novidade é a distinção, em termos de responsabilidade civil, entre o dolo praticado por representante legal (pai/filho, tutor/tutelado, curador/curatelado etc) e o dolo praticado por representante convencional (advogado/cliente, corretor/proprietário etc). No regime atual, parte da doutrina entende que se o representado – qualquer que seja o tipo de representação – não tinha conhecimento da ação dolosa de seu representante, então só responderá até o limite do proveito que ele representado obteve do negócio, devendo a vítima cobrar o sobejante do representante. Para o futuro, o representado em representação convencional responderá solidariamente com seu representante pela integralidade das perdas e danos da vítima (art. 149), mesmo que não tenha tido conhecimento da ação dolosa de seu representante, sendo fundamento dessa mudança o reconhecimento de culpa in eligendo  do representado, uma vez que, presumidamente, escolhera mal o seu interlocutor.

Sobre a coação, o novo Código autoriza a sua alegação mesmo que o dano ameaçado não se tenha referido a pessoa da família do coacto (art. 151, parágrafo único), devendo o juiz analisar caso-a-caso a presença de relações afetivas suficientemente justificadoras, para fins de caracterização do vício volitivo. Outra modificação diz respeito à coação exercida por terceiro, que atualmente enseja sempre a anulação do negócio jurídico por atingir sua base fulcral, qual seja, a liberdade volitiva -, mas passará a ensejar anulação somente quando a parte beneficiada tivesse ou devesse ter conhecimento da ação do coator (art. 155). Obviamente que, em caso de negócio jurídico unilateral (como por exemplo o testamento e a promessa de recompensa), a coação de terceiro continuará ensejando sempre a anulação, uma vez que ali não existem “partes”, mas sim agente e terceiros a quem se dirige a declaração de vontade.

Algumas modificações gerarão controvérsia, como por exemplo a inserção do estado de perigo como motivo de anulação de negócio jurídico, o que, data venia, nos pareceu equivocado (art. 156). É verdade que, sob necessidade de salvamento próprio ou de terceiros queridos, quem declara a vontade o estará fazendo de forma provavelmente exagerada ou mal-calculada – ou seja, imperfeita. Contudo, há que se considerar que, naqueles casos em que o beneficiado pela declaração volitiva não for culpado pelo estado de perigo, a possibilidade de simples invalidação do negócio é mesmo injusta. O mais correto teria sido manter a validade do negócio feito sob tal circunstância, facultando todavia ao juiz mitigar a obrigação assumida, reduzindo a vantagem do beneficiado a limites razoáveis, moldando-a ao serviço realizado – muitas vezes até com risco para o próprio beneficiado -, e atendendo também à capacidade econômica do declarante obrigado.

Finalmente, sobre o instituto da lesão, hoje legalmente previsto em relações consumeiristas e jurisprudencialmente acatado em relações civis, sua introdução no novo Código Civil significa evidente evolução, apresentando natureza pietatis causae, visando a repelir o chamado dolo de aproveitamento, ou seja, a maldade perpetrada por maliciosos negociantes, que laboram auferindo lucro sobre a desgraça transitória do próximo.

São essas, a nosso ver, as principais alterações constantes do novo Código Civil, no tocante especificadamente aos vícios de consentimento no negócio jurídico, restando delas, sem dúvida, um saldo positivo de excelência, na medida em que, em sua maioria, consolidam entendimentos doutrinários que a ciência e o debate jurídico esculpiram ao longo do Século Vinte.