Edição

O novo regime da intervenção e extinção da concessão de serviço público

21 de dezembro de 2012

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A Lei de Concessão de Serviços Públicos (Lei 8.987/95) inaugurou uma nova fase na prestação delegada de serviços públicos no Brasil.

Embora concessões de serviço público à iniciativa privada já fossem praticadas no Brasil há mais de século, a exemplo das primeiras concessões no setor elétrico à empresa Light (1898), então de capital canadense, ou algumas décadas depois à empresa Amforp, o regime legal aplicável a tais concessões perdeu importância prática durante o longo período (entre a década de 30 e meados da década de 90) em que o Estado intervencionista carreou diretamente tais serviços públicos, sob a figura do chamado Estado-Empresário.

Nesse contexto, o Estado brasileiro cumulava as funções de prestador do serviço e regulador de si próprio, dispensando um regime legal mais detalhado. A Lei 8.987, de 1955, surgiu com a necessidade de disciplinar uma nova realidade, que se seguiu após uma série de reformas constitucionais que visavam à reformulação do Estado, na qual os setores até então sob monopólio estatal foram abertos à participação da iniciativa privada, reservando ao Estado o papel meramente regulador, observados os balizadores legais.

Contudo, em que pese a Lei 8.987 ter revelado enorme inteligência e atualidade à época de sua edição, não poderia ela ter enfrentado com maior acuidade e detalhamento certos temas que ainda prescindiam de maior reflexão em razão da absoluta falta de precedentes concretos.

Foi esse justamente o caso da sistemática de intervenção e extinção das concessões.

No tocante à intervenção, a Lei 8.987 previu genericamente que “o poder concedente poderá intervir na concessão, com o fim de assegurar a adequação na prestação do serviço, bem como o fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes”.

Quanto à extinção da concessão por culpa da concessionária, a Lei 8.987 estabeleceu que esta se daria por meio da decretação de caducidade, após processo administrativo sujeito ao contraditório e oportunidade para correção das falhas, em que fosse apurada a inexecução total ou parcial do contrato, a exemplo das hipóteses listadas no artigo 38, §1o, da Lei.

Além disso, dispôs que “declarada a caducidade, não resultará para o poder concedente qualquer espécie de respon sabilidade em relação aos encargos, ônus, obrigações ou compromissos com terceiros ou com empregados da concessionária”. Caberá ao Poder Concedente tão somente o pagamento a posteriori de indenização à concessionária pelos bens reversíveis ainda não depreciados, após a dedução das multas contratuais e indenização pelos prejuízos apurados.

Entretanto, tais disposições deixavam sem resposta dúvidas bastante relevantes, dentre as quais:

I – A intervenção dar-se-á somente na concessão (ou seja, somente sobre os bens reversíveis e certos contratos destes indissociáveis) ou sobre a pessoa jurídica da concessionária e todo o universo de bens, direitos e obrigações a esta associados?

II – Pode a concessionária de serviço público submeterse ao regime da recuperação judicial?

III – Decretada a caducidade da concessão, como seria assegurada na prática a continuidade do serviço público até então concedido?

IV – erificada a caducidade, além dos bens afetos à concessão, quais direitos e obrigações seriam assumidos pelo Poder Concedente?

Precedentes

Transcorridas quase duas décadas de aplicação da Lei 8.987, apenas duas situações de crise das respectivas concessionárias permitiram testar a sistemática legal da intervenção e extinção da concessionária, ambas no setor elétrico.

O primeiro caso concreto foi o da CEMAR, distribuidora de energia elétrica no Estado do Maranhão. A então controladora desinteressou-se pela concessionária, e decidiu devolvê-la. A ANEEL efetivou a intervenção em 2002. Tal precedente, no entanto, foi pouco esclarecedor, pois o Poder Público não precisou seguir com a extinção e re-licitação da concessão, tendo logrado encontrar quem a quisesse assumir, com todo o seu passivo, por preço simbólico, com a concordância do antigo controlador.

Apesar da relevância desse primeiro precedente de intervenção no setor elétrico (e em uma concessão de serviço público de modo geral, sob o novo regime da Lei 8.987), tal precedente foi pouco esclarecedor, pois o Poder Público, representado pela agência reguladora, preferiu adotar uma solução negociada para o problema, sem enfrentar resistência ou oposição do antigo controlador, cujo objetivo era efetivamente se livrar da concessão.

O segundo e mais recente precedente vem a ser justamente o do Grupo Rede. Nesse precedente destacamse dois momentos.

Em um primeiro momento, a CELPA, concessionária de distribuição do Estado do Pará, que ainda não havia sofrido a decretação de intervenção da ANEEL, surpreendeu a todos com a apresentação de um pedido de recuperação judicial, que foi aceito pelo juízo falimentar naquele Estado.

Aproveitando-se do viés paternalista do judiciário local, que não poupou esforços para viabilizar a recuperação da empresa, a CELPA logrou congelar todas as garantias e execução de créditos contra ela, inclusive aquelas garantias e créditos que, a teor da nova lei de falências e recuperação (Lei 11.101/2005), não deveriam ser afetados pela recuperação, como é o caso dos créditos garantidos por cessão fiduciária.

Não bastasse isso, a concessionária em recuperação logrou ordem judicial para efetivar a revisão das suas tarifas, em condições vedadas pela regulamentação setorial.

Na prática, o Poder Concedente e o seu órgão regulador se viram impotentes frente ao processo de recuperação da CELPA, perdendo suas medidas de controle e intervenção ao Poder Judiciário, não obstante o reduzido conhecimento técnico e setorial deste.

A MP 577

Receando a extensão de tal situação às demais concessionárias do Grupo Rede, o Executivo Federal, certamente com o apoio do órgão regulador, apressouse em editar a Medida Provisória no 577, de 29 de agosto de 2012, logo seguida, em 31 de agosto, pelos decretos de intervenção em oito concessionárias do Grupo Rede.

A Medida Provisória 577 pretendeu disciplinar com maior riqueza de detalhes, mas também com algumas alterações no regime geral da Lei 8.987, a intervenção e a extinção das concessões no setor elétrico.

Embora a MP 577 pretenda recair somente sobre as concessões no setor elétrico, naquilo que ela se propôs a detalhar a sistemática da Lei 8.987 (ressalvadas portanto as alterações efetivas naquele regime), é provável que a disciplina mais detalhada da MP 577 – assumindo a sua conversão em lei, mas reconhecendo a possibilidade e necessidade de alguns importantes ajustes – sirva de parâmetro para as concessões de serviço público em outros setores.

E quais foram os esclarecimentos ou inovações mais relevantes trazidos pela MP 577?

Da Intervenção

No tocante à intervenção, a MP 577 esclarece que essa incidirá não somente sobre os bens e direitos, mas sobre a pessoa jurídica da concessionária. Para tanto, a ANEEL nomeará um interventor, considerando-se automaticamente suspensos os mandatos dos atuais administradores.

Assim, ao menos enquanto perdurar a intervenção, competirá ao interventor administrar a pessoa jurídica da concessionária como um todo, gerindo seus financiamentos, contratos, bens, receitas e empregados.

Assim como na recuperação judicial, caberá à concessionária, por meio de seus acionistas controladores, preparar um plano de recuperação. Entretanto, ao contrário da recuperação judicial, este não será submetido à aprovação dos credores ou do juízo, nem tampouco contará com o benefício da suspensão dos processos executórios contra a empresa recuperanda por 180 dias.

No processo de intervenção das concessionárias do setor elétrico, o plano de recuperação e correção de falhas e transgressões – que poderá incluir uma proposta de regime excepcional de sanções regulatórias para o período de recuperação – será apresentado pelos acionistas em 60 dias à ANEEL, que gozará de ampla discricionariedade para aproválo, e nesse caso fazendo cessar a intervenção, ou para rejeitálo, podendo nesse caso declarar a caducidade da concessão.

Como a aprovação ou rejeição do plano competirá à ANEEL – e esta não tem poderes para suprimir ou alterar os direitos dos credores da concessionária –, presume-se que o plano de recuperação deverá ser negociado previamente pelos acionistas controladores da concessionária com os credores desta, antes de ser apresentado à ANEEL, sob pena de o plano não ser exequível. A depender do número de credores que devam ser consultados e anuir ao plano, 60 dias poderá ser um prazo bastante exíguo.

A MP 577 inova, entretanto, ao estabelecer em seu artigo 14 que o indeferimento do plano de recuperação pela ANEEL poderá ensejar não somente a declaração de caducidade, que seria a consequência mais lógica e natural para a situação, plenamente compatível com o regime geral da Lei 8.987, mas poderá também, por decisão do poder concedente, resultar em operações societárias, alteração de controle, aumento de capital social ou constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.

Ocorre que nem o Poder Concedente, nem a ANEEL, detêm poder para suprimir ou modificar o direito dos credores ou mesmo dos sócios da concessionária, ressalvado o poder de extinguir por caducidade a concessão, com as consequências indenizatórias e/ou sanções daí decorrentes. O mais curioso é que, no tocante às operações societárias descritas no inciso II do art. 14 (cisão, incorporação, fusão, transformação, constituição de subsidiária, ou cessão de cotas ou ações), a MP 577 reconheceu que os direitos dos sócios deveriam ser respeitados, mas não ressalvou esses mesmos direitos em relação às demais alternativas de alteração do controle, aumento do capital social, ou constituição de SPE para adjudicar os ativos do devedor.

Fica a dúvida: não o fez deliberadamente, por entender que os direitos de sócios devem ser respeitados em algumas hipóteses e não em outras, ou apenas por má técnica legislativa?

Da Responsabilidade dos Administradores da Concessionária sob Intervenção

A MP 577 também inovou ao estabelecer o bloqueio automático de todo o patrimônio e bens dos administradores da concessionária sob intervenção, ressalvados os bens considerados inalienáveis e impenhoráveis pela legislação em vigor, a exemplo de verbas de natureza salarial. Embora drástica a medida, tal bloqueio pode ser defendido sob o argumento de que tem função meramente acautelatória, preservando a integridade do patrimônio dos referidos administradores enquanto não apuradas suas eventuais responsabilidades.

Maior estranheza, entretanto, causa o artigo 11, parágrafo único, da MP 577, o qual impõe aos administradores da concessionária sob intervenção responsabilidade solidária “pelas obrigações assumidas pela concessionária durante sua gestão”. Tal responsabilização solidária e independente de culpa, aplicável somente às concessionárias do setor elétrico e sem precedente em qualquer outro segmento, revoluciona completamente o regime de responsabilidade limitada dos administradores previsto na Lei das Sociedades Anônimas, o qual enseja responsabilidade apenas em casos de atuação com falta aos deveres fiduciários, em infração à lei, excesso de poderes, ou violação do estatuto.

Da Caducidade e seus Efeitos

A MP 577 também lançou luzes à caducidade e seus efeitos. Esclarece o art. 2o que, extinta a concessão de serviço público no setor elétrico, o poder concedente nomeará órgão ou entidade da administração pública federal (Eletrobrás, por exemplo), para prestar temporariamente o serviço, assegurando sua continuidade, até que outro concessionário seja selecionado e contratado por meio de novo processo licitatório. Ao novo concessionário caberá assumir as obrigações contraídas pelo órgão ou entidade prestadora temporária do serviço.

A MP 577 parece sugerir que, em decorrência da declaração de caducidade, a assunção do serviço se dará por meio dos bens reversíveis, e não mais da pessoa jurídica da concessionária, como no caso da intervenção.

Além disso, a MP estabelece que o poder concedente assumirá não somente os bens reversíveis, mas também os contratos fins a eles vinculados, assim considerados os contratos firmados com o ONS e com a CCEE e os contratos de compra e venda de energia elétrica celebrados pela sociedade titular da concessão extinta, mantidos os termos e bases originalmente pactuados.

Presume-se assim que todos os demais direitos e obrigações da concessionária titular da concessão extinta – incluindo seus contratos de financiamento e contratos de trabalho – serão mantidos na pessoa jurídica já sem a concessão, fazendo esta jus, para fins de quitação dos passivos remanescentes, tão somente à indenização pelos bens revertidos não depreciados, deduzida das multas e perdas e danos aplicáveis.

Da Vedação à Recuperação Judicial e Falência da Concessionária enquanto vigente a Concessão

Finalmente, a MP 577 estabelece que as concessionárias de serviço público no setor elétrico, enquanto vigentes as suas concessões, não poderão se valer do benefício da recuperação judicial, nem estarão sujeitas ao processo falimentar.

Verifica-se que a MP 577 trouxe muitas luzes ao processo de intervenção e extinção das concessões, mas algumas de suas inovações parecem merecer revisão, ao desconsiderar direitos e garantias já consolidados em nosso ordenamento. Resta-nos aguardar a revisão da MP pelo Congresso Nacional.