O Papel contramajoritário do STF

30 de abril de 2012

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No atual cenário, embora em constante mutação, do constitucionalismo contemporâneo assume especial destaque o papel contramajoritário do Poder Judiciário, em particular das Cortes Constitucionais, como o nosso STF.

Veja-se, desde logo, pelo texto do art. 102, I, “a” da CRFB:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (Redação dada pela Emenda Constitucional no 3, de 1993);

No mesmo sentido, ainda que com diferentes alcance e extensão, merecem referência a alínea “q” e os §§ 1o e 2o, bem como o inciso III, alíneas “a”, “b” e “c” do mesmo art. 102, e o art. 103, § 2o, igualmente da CRFB:

(…)

q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal;

(…)

§ 1o – A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

§ 2o – As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

(…)

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

(…)

§ 2o – Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

Como facilmente se depreende, posto que com profundidade e eficácia manifestamente diversas, em todas essas situações verifica-se contraposição do papel do STF em relação aos Poderes assentados na representatividade e, na maioria, como critérios de escolha e decisão, ou seja, nomeadamente o Executivo e o Legislativo.

Somente assim pode-se tornar efetivo um sistema político-jurídico de supremacia da Constituição, sobre a qual se pronuncia, com sua habitual maestria, JOSÉ AFONSO DA ILVA:

II. SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

6. Rigidez e supremacia constitucional

A rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial consequência, o princípio da supremacia da constituição que, no dizer de Pinto Ferreira, “é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”. Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos.  É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.

(…)

8. Supremacia Constitucional Federal

Nossa Constituição é rígida. Em consequência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.

(Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 18 ed., 2000, p. 47/48)

Por outro lado, ainda sob o enfoque do constitucionalismo contemporâneo em sua dimensão pós-positivista, tem-se na atualidade o conceito de constituição aberta, interagindo com os direitos fundamentais e apresentando, em assinalada novidade a reforçar a atuação da democracia participativa e republicana, enorme repercussão na vida e na expressão política da cidadania.

Já se vão longe, felizmente, os tempos em que os preceitos constitucionais eram considerados meramente programáticos, sempre dependentes, para sua aplicação concreta, de regulamentação pelo legislador ordinário, com isso se exigindo condição que, na prática, muitas vezes, os transformava em figuras de ficção.

Nesse sentido, importante relembrar a lição de PAULO BONAVIDES, considerado como verdadeiro patrono do novo constitucionalismo brasileiro:

Dantes regia-se o Direito maiormente pelo dogma positivista e absoluto do princípio da legalidade, princípio que colocava, em certa maneira, a lei acima da Constituição, por haver a Carta Magna qual mera plataforma programática, com a força inspiradora da ideia, mas sem a energia vinculante da regra de Direito e, por isso mesmo, portadora de uma densidade normativa extremamente baixa, que os positivistas só reconheciam, por subsidiária, quando faziam uso dos princípios de Direito nas províncias jusprivatistas da Velha Hermenêutica.

Apartado, porém, da legitimidade, de todo o ponto perdida ou erodida, com a queda dos valores clássicos da velha corrente liberal associada ainda ao privilégio (as exclusões burguesas), o princípio da legalidade chegou ao termo de sua hegemonia. Cedeu passo, numa dimensão menos formal e mais material, a outro, agora de grau superlativo e categórico: o da constitucionalidade.

Este derradeiro princípio se expandiu na doutrina e entrou a incorporar elementos e conteúdos de legitimação do mais subido teor axiológico, até fundar o Direito contemporâneo com a supremacia inatacável dos princípios constitucionais, trasladados, por inteiro, da orla jusnaturalista, metafísica, abstrata e programática para a esfera juspositivista, concretista, executória e pragmática, onde avultam por sua qualidade, já incontrastável e irrecusável, de normas das normas na hierarquia do sistema.

(…)

O futuro das Constituições pertence, pois, ao princípio da legitimidade. Um princípio qualificado pela democracia participativa no universo político contemporâneo, onde a cidadania do gênero humano é a cidadania do mundo; onde as Cartas constitucionais exaradas pelo povo, em sua versão legítima, hão de sancionar e consagrar a tetradimensionalidade dos direitos fundamentais. Essa é, pelo menos, a plataforma constitucional de seus valores de libertação.

(Teoria Constitucional da Democracia Participativapor um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade, Malheiros Editores, 2 ed., 2003, p. 314/315)

Diante da caminhada, tão clara quanto significativa, desse neo-constitucionalismo, caracterizado por uma abertura, uma densidade e uma expressão concreta sem precedentes, a própria humanidade vem seguindo trajetória – mas que de simples formulação – de acentuada efetivação dos direitos fundamentais, assim referidos e assegurados nas cartas constitucionais das modernas democracias participativas, em movimento que irradia sua expansão para os mais diversos cantos do planeta.

Nesse contexto, aparece o papel do Judicário, como guardião da Constituição, de contramajoritário, controlando – exatamente na perspectiva de sua constitucionalidade – a atuação dos poderes Executivo e Legislativo, bem como das entidades paraestatais e, até mesmo, das empresas e sociedades privadas, abrangendo, com isso, a política, o mercado e todas as forças sociais.

Se assim acontece com o Judiciário como um todo, por meio do controle difuso de constitucionalidade, com muito maior intensidade se manifesta o fenômeno pela atividade  exercida  de controle concentrado exercida pelo Supremo Tribunal Federal.

Nessa linha de raciocínio, não mais prevalece o chamado império da lei, mas, muito ao contrário, apenas daquela lei cujo conteúdo normativo esteja conforme à Constituição Federal, não se podendo mais argumentar com sua autoridade como decorrente da vontade de maiorias governamentais ou parlamentares que, antes de tudo, devem pautar suas condutas pela supremacia da Constituição, submetida esta à incontrastável interpretação do STF.

É valiosa a respeito do tema a apreciação formulada por LUIGI FERRAJOLI, professor da Universidade de Camerino, Itália, em magnífico artigo intitulado “O Direito como sistema de gaants”:

É nesta sujeição do juiz à constituição, e portanto no seu papel de garantir os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, que reside o principal fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do Poder Judiciário frente aos Poderes Legislativo e Executivo, embora estes sejam – e até porque o são – poderes assentes na maioria. Precisamente porque os direitos fundamentais em que se baseia a democracia substancial são garantidos incondicionalmente a todos e a cada um, mesmo contra a maioria, eles constituem o fundamento, bem mais do que o velho dogma juspositivista da sujeição à lei, da independência do Poder Judiciário, que para a sua garantia está especificamente vocacionado. Daí resulta que o fundamento da legitimação do Poder Judiciário e da sua independência mais não é do que o valor da igualdade, enquanto igualdade endroits: visto que os direitos fundamentais são de cada um e de todos, a sua garantia exige um juiz terceiro e independente, subtraído a qualquer vínculo com os poderes assentes na maioria, e em condições de poder censurar, como inválidos ou como ilícitos, os atos praticados no exercício desses poderes. É este o sentido da frase “há tribunais em Berlim”: tem de haver um juiz independente que possa intervir para reparar as injustiças sofridas, para tutelar o indivíduo mesmo quando a maioria e até a totalidade dos outros se coligam contra ele, para absolver no caso de falta de provas, mesmo quando a opinião pública exige a condenação, ou para condenar, havendo prova, quando a mesma opinião é favorável à absovição.

Esta legitimação não tem nada a ver com a da democracia política, ligada à representação, pois não deriva da vontade da maioria. O seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. E todavia é uma legitimação democrática, que os juízes recebem da sua função de garantia dos direitos fundamentais, sobre os quais se baseia aquilo a que chamamos “democracia substancial”. (O novo em Direito e Política, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 7 ed., págs. 101/102)

Da presente exposição, não é difícil concluir acerca da essencialidade do papel contramajoritário do Poder Judiciário, em geral, e muito especialmente do STF, a quem compete precipuamente a atividade de intérprete final e de guardião da Constituição Federal.

Não será por outro motivo que o STF, marcadamente nesse tempo de tão grandes transição e transformações políticas, sociais e econômicas, vem sendo chamado a julgar a constitucionalidade de normas referentes a uma gama cada vez mais variada de assuntos relevantes para o país, lembrando-se, como alguns dos mais recentes, o da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, o da realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, o da união estável homoafetiva, o da chamada marcha da maconha, o da aplicação – no mesmo ano – de sua publicação da lei sobre a elegibilidade dos que não apresentavam “fichas limpas”, entre outros de enorme repercussão.

Por outro lado, importa ressaltar que nem mesmo as emendas constitucionais escapam ao crivo do controle de constitucionalidade, ao qual também não podem deixar de se submeter as maiorias governamentais e/ou o constituinte derivado. Convém salientar que a soberania do povo, encontrada na Carta Política, deve estar ao abrigo de propostas – ainda que bem intencionadas – e de delírios escondidos sob a capa supostamente respeitável de “reformas constitucionais”.

Diante de tudo isso, ainda que a tese encontre pensamentos refratários, possivelmente por confundirem investidura em poder estatal como sempre decorrente de eleição ou sufrágio, por isso mesmo como representação da maioria, assim como ocorre com os Poderes Legislativo e Executivo, pode-se sustentar, com razoável tranquilidade, a legitimação democrática – que nem por isso representa qualquer seguro contra mazelas – e a importância para a democracia participativa do papel contramajoritário do Poder Judiciário e, com especial relevância, do Supremo Tribunal Federal.