O Poder Judiciário e o Ato Infracional

5 de agosto de 2005

Desembargador do TJERJ, membro da Associação Juízes para a Democracia, membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania

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Ao tomar posse na Presidência do Tribunal de Justiça o Desembargador Sergio Cavallieri ratificou o compromisso da Justiça com a sociedade. “O Judiciário moderno não se limita aplicar cega e automaticamente as leis aos casos concretos. A sua missão é muito mais ampla na medida em que tem que interpretar e ajustar as leis às reais necessidades da sociedade”. Justiça, para o presidente eleito, não é apenas dar a cada um o que é seu. “Isso importa em dar cada vez mais ao que tem muito e cada vez menos ao que tem pouco, gerando desigualdade social. Essencial é dar a cada um o mínimo existencial, o mínimo para viver com dignidade”, ressaltou.

Para Cavallieri, não somos mais um país pobre, já que estamos na base do terço dos países mais ricos do mundo. O desembargador citou que pelo menos 70% dos países são mais pobres do que nós. Mas o Brasil, segundo ele, é um dos que tem a maior desigualdade no mundo, empatando com a África do Sul e outros menores. “Países com a renda per capta do Brasil têm apenas 8% da sua população abaixo da linha de pobreza. O Brasil tem 33%, ou seja, mais de 50 milhões de brasileiros vivem abaixo dessa linha” , afirmou.

Ainda de acordo com o desembargador o Judiciário tem compromisso com a sociedade tanto quanto o Executivo e o Legislativo. E a sua missão está ligada à efetividade e à eficiência operacional. “Se o povo, se a sociedade como um todo, têm sede e fome de justiça, então o Judiciário tem por obrigação saciá-los. Não pode esperar por reformas constitucionais demoradas, tampouco pela edição de medidas milagrosas e leis mirabolantes”, defendeu o presidente do TJ-RJ, para quem essa é a cultura do repasse que tem atrasado a verdadeira reforma do Judiciário por várias décadas.

O discurso do novo presidente marca de forma definitiva que deve haver um casamento perfeito entre o que diz a Constituição e as leis da Nação e a realidade de nosso povo, e que não podem os juízes se limitar a simples e burocrática aplicação das leis sem o sentir das ansiedades, necessidades e desejos da sociedade.

Refletindo a opinião pública da sociedade em recente pesquisa publicada aponta que quase 70% dos magistrados brasileiros são a favor da redução da responsabilidade penal para 16 anos. A pesquisa não aponta, no entanto, qual o percentual desse universo de magistrados ouvidos que efetivamente conhece e está em dia com a efetivação dos direitos constitucionalmente assegurados à infância e à juventude.

No que tange a aplicação das medidas sócio-educativas, o noticiário é farto na demonstração da incompetência das autoridades administrativas para a efetiva execução das mesmas. A Febem de São Paulo encontra-se em permanente estado de rebelião apesar dos esforços das autoridades que se sucedem em medidas equivocadas ao invés do simples cumprimento das regras constitucionais, dos compromissos internacionais e da Lei 8069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A polêmica jurisprudencial marcada pelas posições dos diversos Tribunais quanto à interpretação se devem ou não aos maiores de 18 anos que praticaram atos infracionais permanecerem nas unidades destinadas ao cumprimento das medidas sócio-educativas é um exemplo da insensibilidade das autoridades judiciárias para o caos em que se encontram as escolas em todo o país. A finalidade da aplicação das medidas sócio-educativas é a ressocialização do adolescente e a promoção de sua cidadania que muitas vezes é a verdadeira e única razão de seu envolvimento com a conduta anti-social.

Ora, se o Poder Público foi incompetente para obter o desiderato que é a ressocialização do adolescente durante o tempo da aplicação da medida, outro caminho não há senão a decretação da extinção da medida sócio-educativa eis que o jovem atingiu a maioridade civil, o que constitui causa de extinção da medida sócio-educativa. A excepcionalidade da medida de internação e o advento do novo Código Civil que igualou a capacidade civil à penal impõe a interpretação restritiva que importa na imediata liberação daquele que atingiu a maioridade civil e penal. Ainda, é de se ressalvar que: “Com o advento do Novo Código Civil, seu artigo 5º estabeleceu que a plena capacidade é atingida aos 18 (dezoito) anos de idade, perdendo os pais o pátrio poder. (sic) Portanto, atualmente, a pessoa maior de 18 (dezoito) anos não pode mais ser considerada pessoa em desenvolvimento, pela aquisição da plena capacidade, não mais se justificando a aplicação de medida sócio-educativa de internação”.

Inicialmente, há que se recordar a manifestação da ilustre Relatora do Projeto de Lei 5.172/90, Deputada Rita Camata, que se transformou no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90, de 13/07/1990, que ressaltou em seu minucioso trabalho que “A base doutrinária sobre a qual se assenta o novo Estatuto é o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. “Nesta perspectiva, propõe sua proteção integral pelo Estado, pela sociedade, pela família, sem qualquer tipo de discriminação, em consonância com os preceitos constitucionais, especialmente aqueles contidos no art 227, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à conveniência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

“Ao contrário do Código de Menores (então) em vigência, que estabelece (estabelecia) o direito tutelar do menor, considerado objeto de medidas judiciais apenas quando em situação irregular, a norma proposta se dirige ao conjunto da população infantil e juvenil do Brasil. Vale dizer, à quase metade da população do país”.

Ficou ainda destacado no relatório da ilustre deputada que “Inova também o projeto no que se refere à atuação do Poder Judiciário, eximindo-o de atividades alheias à função judicante, tais como o atendimento às crianças e adolescentes em situação de desamparo e carência. Ficam, portanto, os órgãos da Justiça livres para prestar serviços de forma mais rápida e eficiente naqueles casos em que sua atuação é indispensável”.

Por outro lado, José de Faria Tavares, em sua obra “Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente”, Editora Forense, 2ª edição – 1995, pág 8, leciona, referindo ao art 2º e seu parágrafo único: “A regra geral estabelecida no caput tem a grande exceção do parágrafo único, que admite referência a menores de 21 (vinte e um) anos de idade com mais de dezoito anos, ou seja, aqueles que não mais são adolescentes por terem dezoito ou mais anos de idade, porém, ainda civilmente menores por não haverem completado os 21 anos, a maioridade civil. Dependem da assistência e do consentimento de quem sobre elas exerça o pátrio poder-dever (CC – arts 384/395) ou o substitutivo que é o instituto da tutela (CVC – arts 406 a 445) ou mesmo da guarda judicial”. (Ressalte-se que a referência é ao Código Civil antigo – de 1916).

“O universo dessas pessoas na faixa etária 18/21 anos, remanesce no direito comum, sob o regime do Código Civil, ressalvados os casos de legislação especial. Penalmente, são considerados de relativa responsabilidade, como se depreende dos comentários ao art 104”.

Da mesma forma, Valter Kenji Ishida, em seu Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência – 3ª edição Editora Atlas S/A, 2001, pág 26, também leciona: “O ECA expressamente permite a internação do maior de 18 anos: v. § 5º do at 121. Para Roberto João Elias (1994:3), a exceção do parágrafo refere-se somente a internação.” E ainda às mesmas páginas, sobre questão de guarda: “A guarda extingue-se de pleno direito a partir do momento em que o menor atinge 18 anos, não havendo nenhum dispositivo legal que a estenda até os vinte e um anos. Por via transversa o parágrafo único do art 2º diz ser aplicável o Estatuto às pessoas entre 18 e 21 anos de idade, apenas excepcionalmente e nos casos expressos em lei, e não há, repitamos, norma legislativa que imponha ao guardião o encargo de permanecer zelando pelo adolescente após tal idade.”

Efetivamente, a doutrina sobre a qual dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente é o da proteção integral, que, consoante estabelece o artigo 227 da Constituição da República, é responsabilidade de todos, da família, do poder público e da sociedade assegurar com absoluta prioridade a crianças e adolescentes, na forma definida no artigo 2º da Lei 8069/90.

No mesmo sentido, o artigo 3º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do Adolescente estabelece que em todas as ações e decisões administrativas, legislativas e judiciárias prevalecerá sempre o interesse superior da criança. Esclareça-se que a mesma Convenção, erigida à categoria de norma constitucional pela última reforma, define em seu artigo 2º, criança como “todo ser humano com menos de dezoito anos”.

O artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente define as diretrizes de interpretação da lei que deve “levar em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. Fica claro, portanto, que os destinatários dessa lei são “os seres humanos com menos de dezoito anos”, ou seja, crianças e adolescentes, assim definidos na lei como “pessoas em desenvolvimento”.

Ora, deve ser grifado que, com a vigência do novo Código Civil (Lei 10.406, de 10/01/2002), a partir de 11/01/2003, houve uma drástica redução da idade para a capacidade plena da pessoa, limitada aos dezoito anos completos, com fulcro no art 5º (A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil), aliás, a modesto ver, com imediata repercussão nas normas dos Códigos Penal e Processo Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente, no seu parágrafo único, do art 2º da Lei 8069/90 (Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos de idade) e no § 5º de seu art 121 (A liberação será compulsória aos 21 (vinte e um) anos de idade), que deverão ser interpretados como dezoito, e não como vinte e um anos de idade.

A excepcionalidade antes admitida evidentemente ocorria em razão da existência da duplicidade de lapso temporal para uma modalidade ou outra de capacidade. A capacidade civil e penal, agora unificadas para o mesmo período de tempo, 18 anos, não justificam mais a excepcionalidade.

Ademais, o intérprete deve levar em conta os fins sociais a que a lei se dirige que, no caso, é a ressocialização dos adolescentes em conflito com a lei. Considerando que atingida a maioridade, o aparelho sócio-educativo deixou de cumprir seu objetivo ressocializador, a manutenção da segregação equivale a uma medida inócua e prejudicial à própria sociedade que estará insistindo na aplicação de uma medida que jamais atingirá seu objetivo prático: a ressocialização de um adolescente como pessoa em desenvolvimento. Não há mais adolescente a ser ressocializado, mas um adulto penalmente e plenamente responsável por seus atos e passível de aplicação das normas penais.

Ainda há que se observar que a permanência desse jovem entre os demais adolescentes só servirá para contaminar aqueles que, estando em processo de desenvolvimento, podem receber dos maiores de dezoito anos as más influências de uma experiência infracional mais madura, prejudicando, desse modo, o bem comum da coletividade.

Não se argumente que o ato infracional praticado permanecerá impune, eis que não é essa a finalidade das medidas sócio-educativas e sim a promoção de sua ressocialização. Considerar que a permanência do jovem após atingir a maioridade poderá recuperá-lo é uma ilusão, e mantê-lo apenas e tão somente em razão do ato infracional praticado é laborar contra os interesses da coletividade. Por fim, se não foram atingidos os objetivos ressocializadores das medidas aplicadas devem a família, o poder público e a sociedade responder por sua própria ineficiência e negligência no cumprimento de norma constitucional que obriga a todos.

Importa, ainda, ressaltar que sendo o jovem um adulto e não  mais adolescente e que, nos dias atuais,   sendo penalmente, portanto, responsável, não deve este continuar internado, pois não se justifica a manutenção da medida internação aplicada; haja vista que a preocupação do Juízo precisa direcionar-se, especialmente, aos infratores menores de dezoito anos que em número elevado perambulam pelas ruas, e deixar aos maiores, civil e penalmente responsáveis, responderem por seus atos com fulcro no Código Penal se novamente voltarem a delinqüir.

Ainda, a lição jurisprudencial traduzida nos arestos do Egrégio Superior Tribunal de Justiça a seguir in verbis transcritos, da lavra sempre brilhante dos eminentes ministro Paulo Gallotti, ministro Vicente Leal e ministro Felix Fischer, referem-se a fatos em que a maioridade consumava-se aos vinte e um anos e, com propriedade, podem ser adequados à nova maioridade aos dezoito anos.

Em resumo, o parágrafo único do art 2º do ECA dispõe que entre 18 e 21 anos, o referido estatuto só se aplica nos casos expressos em lei, mas apenas excepcionalmente  e, não sistematicamente como, data venia, vem sendo acolhido, inclusive para medidas de semi-liberdade e de liberdade assistida.

Acrescente-se que as medidas sócio-educativas não podem ser interpretadas como sanção penal, pois a legislação tem o fito de proteger o adolescente como pessoa em desenvolvimento.

A aplicação subsidiária da Lei de Execução Penal em detrimento dos interesses superiores dos adolescentes é incabível, uma vez que afronta a doutrina da proteção integral e contraria os princípios de interpretação insculpidos no art. 6º da Lei 8069/90.

Essa questão tormentosa que tem dividido as opiniões dos mais diversos e cultos Tribunais do país demonstra o distanciamento existente entre a letra da lei e a realidade em nos encontramos. Desse modo também os discursos dos políticos e administradores encontra-se no mesmo diapasão, ou seja, há uma grande distância entre o discurso na mídia e a realidade a ser enfrentada para que efetivamente sejam respeitados os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Urge que os Conselhos de Direitos tenham uma atuação mais vigorosa no sentido de apontar as verdadeiras causas e caminhos que os administradores devem traçar para garantia da cidadania das crianças pobres e excluídas. Por outro lado, os Conselhos Tutelares devem ser aparelhados de forma a dar cumprimento a sua missão de garantidor da efetivação desses direitos e a Municipalidade imbuída da responsabilidade de elaborar políticas públicas que assegurem o acesso das crianças aos seus direitos fundamentais.

No entanto, é preciso que haja não só uma conscientização coletiva desse dever de zelar pelos direitos das crianças, mas, sobretudo que se faça através de uma conduta suprapartidária colocando o interesse superior das crianças e dos adolescentes acima de todas as decisões administrativas, legislativas ou judiciais.