O princípio da territorialidade e os ofícios de registro de títulos e documentos

19 de abril de 2013

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Este trabalho é feito com o intuito de levar a uma reflexão mais profunda sobre o tema do título, mormente diante de recente decisão do Colendo Supremo Tribunal Federal, envolvendo a questão da notificação prévia para constituir o devedor em mora, nas ações baseadas em contratos de arrendamento mercantil e de financiamento com alienação fiduciária, cujo ato vem sendo feito em flagrante violação ao princípio da territorialidade, data vênia daqueles que entendem de modo diverso.

A meu ver, não se trata apenas de afirmar a fé pública do Oficial de Registro em todo o território nacional, isto não se discute; mas sim perquirir sobre as suas atribuições e, principalmente, o território de sua atuação. Historicamente, em precedente de 2007, a Eg. 3ª Turma do STJ entendeu que, em virtude do disposto nos arts. 8o e 9o da Lei 8935/94, tal ato não poderia ser praticado pelo Oficial do Cartório fora do município para onde recebera a delegação. Anote-se:

Notificação extrajudicial. Artigos 8o e 9o da Lei no 8.935/94. 1. O ato do tabelião praticado fora do âmbito de sua delegação não tem validade, inoperante, assim, a constituição em mora. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 682399/CE, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 07/05/2007, DJ de 24/9/2007).

Posteriormente, em sede de recurso repetitivo, aquela mesma Corte veio a adotar posição contrária, ao fundamento de que os dispositivos legais referidos dizem respeito apenas aos atos notariais dos tabelionatos de notas e dos registros de imóveis e civis de pessoas naturais, não restringindo a atuação dos Cartórios de Títulos e Documentos à circunscrição geográfica para a qual foi recebida a delegação, daí que descaberia interpretar a norma de forma mais ampla. Registre-se:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE AUTOMÓVEL COM GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REALIZADA POR CARTÓRIO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS SITUADO EM COMARCA DIVERSA DA DO DOMICÍLIO DO DEVEDOR. VALIDADE. 1. A notificação extrajudicial realizada e entregue no endereço do devedor, por via postal e com aviso de recebimento, é válida quando realizada por Cartório de Títulos e Documentos de outra Comarca, mesmo que não seja aquela do domicílio do devedor. Precedentes. 2. Julgamento afetado à Segunda Seção com base no procedimento estabelecido pela Lei no 11.672/2008 (Lei dos Recursos Repetitivos) e pela Resolução STJ no 8/2008. 3. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (REsp 1184570/MG, 2ª Seção, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 09/05/2012, DJ de 15/05/2012).

Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça, entendendo que a área de atuação dos Cartórios (territorialidade) é matéria de cunho administrativo, no Pedido de Providências no 0001261-78.2010.2.00.0000, decidiu:

(…) o entendimento deste Conselho é no sentido de que os agentes delegados dos serviços de registro de títulos e documentos somente realizem notificações dentro dos limites territoriais das respectivas circunscrições, ou seja, deve ser observado o princípio da territorialidade.

A primeira decisão, proferida no PCA n. 642, obrigou somente os registradores de títulos e documentos do Estado de São Paulo e a segunda, proferida quando da aprovação do Auto Circunstanciado de Inspeção do Poder Judiciário do Espírito Santo, não obstante ter declarado que o princípio da territorialidade fosse observado pelos registradores de todo o País, não providenciou a intimação de todos os Tribunais Estaduais do teor da decisão, razão pela qual determinei a intimação destes para que não haja equívocos quando do cumprimento por todos os registradores de títulos e documentos.

Os efeitos de tal decisão foram sustados em virtude de medida liminar concedida pelo Min. Dias Toffoli, do Colendo STF, no Mandado de Segurança no 28.772/DF, o qual, entretanto, em decisão recente, veio a ser julgado extinto, com a consequente cassação da liminar. Verbis:

Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado por Limongi, Wirthmann Vicente e Bruni Advogados S/S, contra ato do Conselho Nacional de Justiça. Ato consubstanciado em decisão do Conselheiro Leomar Barros Amorim de Souza proferida no Pedido de Providências no 0001261-78.2010.2.00.0000 (…) que “determinou que ‘os Oficiais de Títulos e Documentos de todo o País obedeçam ao princípio da territorialidade’, de forma que ‘somente realizem notificações dentro dos limites territoriais das respectivas circunscrições”. (…) Segundo o impetrante, a Lei no 6.015/73 e a Lei no 8.935/94 não contêm proibição para que os Oficiais de Registro de Títulos e Documentos efetuem notificações além de suas circunscrições. Essa, a propósito, seria a jurisprudência de alguns Tribunais de Justiça estaduais. Daí requerer a concessão da segurança para confirmar “à Impetrante o direito de continuar a utilizar quaisquer Cartórios para notificar extrajudicialmente devedores independentemente da circunscrição territorial”. (…) – É o relatório. – Após a instrução do processo, e atento às ponderações tanto das partes quanto do Procurador-Geral da República, tenho que o presente mandado de segurança não merece seguimento. – É que falta ao impetrante legitimidade para defender o alegado direito líquido e certo “de continuar a utilizar quaisquer Cartórios para notificar extrajudicialmente devedores independentemente da circunscrição territorial”. – Ora, o direito de efetuar notificações extrajudiciais além da circunscrição do cartório, se é que existe, pertence aos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos. A propósito, foram eles (Oficiais de Registro de Títulos e Documentos) os destinatários da decisão impugnada. Ademais, mesmo que se aceitasse a legitimidade ativa dos usuários do serviço notarial e de registro, ela seria dos clientes do impetrante, e não dele próprio, escritório de advocacia. Nesse sentido, confira-se o parecer do Procurador-Geral da República: – “O impetrante é um escritório de advocacia (pessoa jurídica) que, segundo ele próprio afirma na inicial, tem por objeto social, entre outros serviços, a cobrança extrajudicial e judicial de valores, ou seja, cobrança judicial e extrajudicial de valores para os seus clientes. Em seu pedido, o impetrante requer a concessão da ordem para que lhe seja assegurado ‘o direito de continuar a utilizar quaisquer Cartórios para notificar extrajudicialmente devedores independentemente da circunscrição territorial’ (fl. 27, v. 1). Portanto, o impetrante pretende assegurar a possibilidade de, na condição de representante dos seus clientes, em nome e na defesa dos direitos desses, notificar extrajudicialmente devedores independentemente da circunscrição territorial. – No caso, o impetrante não está pleiteando direito próprio e sim agindo como verdadeiro substituto processual dos seus clientes. – Além disso, a determinação do Conselheiro Relator do CNJ tem como destinatários os Oficiais de Títulos e Documentos de todo o país. Caberia aos Oficiais eventual defesa contra o ato do Relator, não ao impetrante, na condição de prestador de serviços de cobrança. – Ademais, cabe destacar que o impetrante não demonstrou o interesse processual para a ação; na realidade, o que demonstrou foi interesse econômico.” – 9. Por fim, cabe salientar, como bem o fez a União, que “restou incólume o que decidido no Pedido de Providências no 642, vale dizer, permanece válida a obrigatória observância do princípio da territorialidade pelas serventias vinculadas ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Estado onde se encontra sediado o escritório impetrante”. Pelo que fica ainda mais caracterizada a ausência de interesse processual do autor. – 10. Ante o exposto, não conheço do mandado de segurança e casso a liminar de fls. 295/305. Custas pelo impetrante, não havendo que se falar em condenação em honorários de advogado, nos termos da Súmula no 512 desta Corte. – Publique-se. – Brasília, 1o de fevereiro de 2013. (grifos meus).

Como visto, o Colendo Supremo Tribunal Federal, ao não conhecer do mandado de segurança, fez prevalecer a decisão do Conselho Nacional de Justiça, “no sentido de que os agentes delegados dos serviços de registro de títulos e documentos somente realizem notificações dentro dos limites territoriais das respectivas circunscrições, ou seja, deve ser observado o princípio da territorialidade” (sic).

No Estado do Rio de Janeiro tal entendimento ganha maior proporção diante dos termos da Súmula 153, do teor seguinte:

Nos contratos de alienação fiduciária em garantia, a teor do art. 2o, § 2o, do DL no 911/69, a notificação extrajudicial do devedor será realizada por Ofício de Títulos e Documentos do seu domicílio, em consonância com o princípio da territorialidade.

Além do mais, a Consolidação Normativa da Corregedoria Geral de Justiça tem regras próprias sobre o tema:

Art. 946. As notificações e demais diligências serão realizadas por escreventes autorizados pelo Oficial.
§ 1o Os atos de notificações e demais diligências poderão ser praticados, também, mediante a utilização dos serviços da Empresa brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT).
§ 2o As notificações extrajudiciais, de que trata este artigo, serão praticadas pelos Oficiais de registro de Títulos e Documentos dos Municípios onde residirem ou tiverem sede os notificandos.
§ 3o Constitui dever dos registradores de títulos e documentos deste Estado a obediência ao princípio da territorialidade declarada no § 2o, sob pena do cometimento de infração administrativa e de outras sanções legais, conforme estabelecido na Decisão inserto nos procedimentos administrativos nos 2006/026402; 2006/026429; 205/204225; 2005/028938; 2005/021718; 2005/ 01100428; 2002/131424 e 2006/149211, de cunho obrigatório desde sua publicação no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, Parte III,
Poder Judiciário, em 19/12/2006.

Aliás, exsurge bastante clara da leitura atenta da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), a flagrante limitação territorial no caso específico dos Cartórios de Títulos e Documentos. Vejamos:

Art. 127. No Registro de Títulos e Documentos será feita a transcrição: I – dos instrumentos particulares, para a prova das obrigações convencionais de qualquer valor; II – do penhor comum sobre coisas móveis; III – da caução de títulos de crédito pessoal e da dívida pública federal, estadual ou municipal, ou de Bolsa ao portador; IV – do contrato de penhor de animais, não compreendido nas disposições do art. 10 da Lei n. 492, de 30.8.1934; V – do contrato de parceria agrícola ou pecuária; VI – do mandado judicial de renovação de contrato de arrendamento para sua vigência, quer entre as partes contratantes, quer em face de terceiros (art. 19, § 2o, do Decreto n. 24.150, de 20.4.1934); VII – facultativo, de quaisquer documentos, para sua conservação.
Parágrafo único. Caberá ao Registro de Títulos e Documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressa­mente a outro ofício.
Art. 128. À margem dos respectivos registros, serão averbadas quaisquer ocorrências que os alterem, quer em relação às obrigações, quer em atinência às pessoas que nos atos figurem, inclusive quanto à prorrogação dos prazos.
Art. 129. Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros: 1o) os contratos de locação de prédios, sem prejuízo do disposto do artigo 167, I, no 3; 2o) os documentos decorrentes de depósitos, ou de cauções feitos em garantia de cumprimento de obrigações contratuais, ainda que em separado dos respectivos instrumentos; 3o) as cartas de fiança, em geral, feitas por instrumento particular, seja qual for a natureza do compromisso por elas abonado; 4o) os contratos de locação de serviços não atribuídos a outras repartições; 5o) os contratos de compra e venda em prestações, com reserva de domínio ou não, qualquer que seja a forma de que se revistam, os de alienação ou de promessas de venda referentes a bens móveis e os de alienação fiduciária; 6o) todos os documentos de procedência estrangeira, acompanhados das respectivas traduções, para produzirem efeitos em repartições da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios ou em qualquer instância, juízo ou tribunal; 7o) as quitações, recibos e contratos de compra e venda de automóveis, bem como o penhor destes, qualquer que seja a forma que revistam; 8o) os atos administrativos expedidos para cumprimento de decisões judiciais, sem trânsito em julgado, pelas quais for determinada a entrega, pelas alfândegas e mesas de renda, de bens e mercadorias procedentes do exterior; 9o) os instrumentos de cessão de direitos e de créditos, de sub-rogação e de dação em pagamento.
Art. 130. Dentro do prazo de vinte dias da data da sua assinatura pelas partes, todos os atos enumerados nos arts. 128 e 129 serão registrados no domicílio das partes contratantes e, quando residam estas em circunscrições territoriais diversas, far-se-á o registro em todas elas.
Parágrafo único. Os registros de documentos apresentados, depois de findo o prazo, produzirão efeitos a partir da data da apresentação.

Do exame sistemático de tais dispositivos legais, não há como deixar de concluir que o registro dos contratos sob exame deve ser feito no cartório do domicílio das partes contratantes (art. 130), averbando-se à sua margem qualquer ocorrência posterior, aí se incluindo, por lógico, as notificações para constituir em mora o devedor inadimplente, por se tratarem de “ocorrências que os alterem, quer em relação às obrigações, quer em atinência às pessoas que nos atos figurem”, conforme reza o art. 128, acima transcrito.

Se tal não fosse o bastante para justificar a invalidade de qualquer ato praticado em outra unidade da federação, que não aquela em que são domiciliadas as partes, temos, ainda, a regra do art. 160, do mesmo estatuto, que reza poder o Oficial “requisitar dos ofícios de registros, em outros municípios, as notificações necessárias”, requeridas pelo apresentante do título, deixando claro que nem mesmo o Oficial a quem é atribuído o registro pode notificar os interessados em outro município diretamente, devendo fazê-lo através da delegação de atribuições. No mesmo sentido, o comentário de Juliana de Oliveira (Direito Notarial e Registral, Campus Jurídico, 2008, fl. 214), que assim se pronuncia:

O oficial poderá, também, requisitar aos oficiais de registros de outros Municípios as notificações necessárias, por exemplo: “A”reside na cidade “x” e quer notificar “B” que reside na cidade “y” – “A” deverá requerer no RTD de sua comarca e este solicitará auxílio do RTD da comarca de “Y”. Por esse processo, também, poderão ser feitos avisos denúncias e notificações, quando não for exigida a intervenção judicial (art. 160 da LRP).

A registrar, ainda, que a Lei 8.935/94, que trata exclusivamente dos serviços notariais e de registro, não trouxe qualquer modificação às regras acima comentadas, da Lei de Registros Públicos e pertinentes ao cartório de Registro de Títulos e Documentos. O art. 12, daquele diploma legal, que sujeita apenas os ofícios de registro de imóveis e civis de pessoas naturais ao princípio da territorialidade, sem fazer referência aos de títulos e documentos, justifica-se diante das características específicas de tais serventias, que têm definidas suas circunscrições geográficas. Isto não quer dizer que o ofício de títulos e documentos esteja livre para praticar atos envolvendo pessoas domiciliadas em qualquer localidade do país. Apesar de inexistir áreas geográficas dividindo a atuação de tais serventias, elas devem respeitar, ao menos, a área do Estado que lhes deu a delegação para o exercício da atividade.

De acrescer que estamos diante de uma relação de consumo, o que garante ao consumidor o direito constitucional de ampla defesa, de forma facilitada, nada justificando, portanto, tenha ele que se deslocar à uma comarca longínqua a fim de obter uma certidão do ato, caso dela necessite para exercer aquele sagrado direito. A admitir-se como válida as notificações que vêm sendo feitas, a maioria no Estado de Alagoas, isto estaria trazendo dificuldades para o consumidor defender-se.

Concluindo e renovando a discussão, entendo que o princípio da territorialidade no âmbito dos serviços registrais de títulos e documentos permanece em vigor no cenário jurídico pátrio, nada justificando, portanto, que as notificações sejam feitas no cartório de preferência do credor, sem qualquer limitação.