O Princípio da transparência e o uso de cartões corporativos

11 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 94, 05/2008)
 
A sociedade brasileira, recentemente, foi surpreen-dida com reprováveis escândalos, envolvendo o uso desvirtuado de cartões corporativos, que, ao invés de serem utilizados com parcimônia por agentes públicos para suprir unicamente necessidades esporádicas e emergenciais, vêm sendo manejados, muitas vezes, de forma imotivada e ilícita, através de saques vultosos em dinheiro e despesas sem qualquer relação direta com a atividade administrativa, em afronta a princípios constitucionais e violação das regras licitatórias e da boa gestão administrativa.
 
O desvio de conduta e abuso de direito perpetrados por determinados agentes públicos, que transformaram os cartões corporativos em mais um potente instrumento de mau uso do dinheiro público na contramão do interesse da coletividade, revela a urgente necessidade de se aumentar os instrumentos de controle e assegurar a publicidade de todos os gastos com despesas administrativas, posto que somente a absoluta transparência na gestão pública propicia o controle eficiente da administração e de seus agentes.
 
Não se pode perder de perspectiva, ainda, que, da forma desvirtuada como vêm sendo utilizados os aludidos cartões de crédito, vislumbra-se o risco de se vulnerar, rotineiramente, a regra da adoção, nas contratações públicas, da licitação, que corresponde ao procedimento administrativo voltado à seleção da proposta mais vantajosa para a contratação desejada pela Administração e necessária ao atendimento do interesse público, cuja dúplice finalidade é a de permitir a melhor contratação possível, com a seleção da proposta mais vantajosa para a administração, e a de possibilitar que qualquer interessado possa validamente participar da disputa pelas contratações.
 
O grave problema configurado deve ser combatido, com firmeza, através da inafastável aplicação dos princípios constitucionais a seguir abordados, que não podem deixar de ser informados aos cidadãos brasileiros, já que somente um povo esclarecido é capaz de controlar e combater os abusos administrativos de quaisquer dos três Poderes e fazer valer seus direitos constitucionais e cívicos, construindo, assim, uma sociedade justa, fraterna e solidária.
 
O Direito Administrativo, assim como as demais ciências jurídicas, é regido por vários princípios, que merecem uma profunda e detida reflexão num momento como o evidenciado atualmente, em que se encontram em crise aguda a ética e o comportamento probo e honesto exigível de todos agentes públicos.
 
Compreende-se Direito Administrativo o conjunto de normas e princípios que regem a atividade administrativa, as entidades, os órgãos e agentes públicos, que devem atuar com o único objetivo de atender, de forma adequada, transparente e justa, às necessidades da coletividade.
 
A função administrativa constitui o dever do Estado de atender ao interesse público, e para alcançar tal mister, o Estado exerce determinadas atividades, executando serviços para o bem-estar e o progresso da coletividade.
 
A vontade do Estado se manifesta através de seus agentes, que são pessoas naturais que recebem a importante tarefa de atuar em nome do Poder Público e que, portanto, não podem adotar, em nenhum momento no exercício de suas funções, condutas reprováveis, divorciadas da ética e da boa administração, em atendimento a interesses pessoais, manifestamente egoístas, sob pena de incorrerem em infrações civis, penais e administrativas.
 
São princípios básicos da Administração Pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição da República: a ‘legalidade’, segundo o qual ao administrador somente é dado realizar o que estiver previsto em lei; ‘impessoalidade’, que exige que a atuação do administrador público seja voltada ao atendimento impessoal e geral, ainda que venha a interessar a pessoas determinadas, não sendo a atuação atribuída ao agente público, mas à entidade estatal a que se vincula; ‘moralidade’, que estabelece a necessidade de toda a atividade administrativa atender à lei e à moral, em suma, aos deveres da boa e honesta administração; ‘publicidade’, que faz com que sejam obrigatórios a divulgação e o fornecimento de informações de todos os atos praticados pela Administração Pública, e ‘eficiência’, que impõe a necessidade de adoção, pelo administrador, de critérios técnicos e profissionais que assegurem o melhor resultado possível, rechaçando-se qualquer forma de atuação amadorística e ineficiente do Poder Público.
 
A fiel observância dos princípios supramencionados se revela essencial em um Estado Democrático de Direito, regime político que visa estabelecer um razoável equilíbrio entre os direitos da pessoa e os direitos da sociedade, entre a liberdade e a soberania, através do qual o povo se governa a si mesmo, quer diretamente, quer por meio de representantes eleitos para gerir os negócios públicos e elaborar as leis.
 
Isto se justifica pelo fato de que Democracia significa um Estado constitucional, governado por autoridades eleitas por sufrágio universal em eleições periódicas, em que deve ser assegurada a prevalência do império da lei e dos direitos e liberdades civis e políticas.
 
Em razão do ‘princípio da legalidade’, somente é considerada legítima a atuação do agente público se for permitida por lei. Isto porque toda atividade administrativa que não estiver autorizada por lei é ilícita, ressaltando-se que, se ao particular é autorizado fazer tudo quanto não estiver proibido, ao administrador somente é franqueado o que estiver permitido por lei.
 
O ‘princípio da impessoalidade’ compreende a igualdade de tratamento que a administração deve dispensar aos administrados que estejam na mesma situação jurídica. Exige, também, a necessidade de que a atuação administrativa seja impessoal e genérica, com vistas a satisfazer exclusivamente o interesse coletivo.
 
O ‘princípio da moralidade’ evita que a atuação administrativa distancie-se da moral, que deve imperar, com intensidade e vigor, no âmbito da Administração Pública, o que exige que a atividade administrativa seja pautada, cotidianamente, não só pela lei, mas também pelos princípios da boa-fé, lealdade e probidade, deveres da adequada administração.
 
No que se refere ao ‘princípio da publicidade’, convém esclarecer que a Administração Pública tem o dever de “dar publicidade plena”, ou seja, de conduzir ao conhecimento do povo o conteúdo e a exata dimensão do ato administrativo, a fim de facilitar o controle dos atos da administração. Isto se explica pelo fato de que a atividade administrativa deve ser caracterizada pela ‘absoluta transparência’, não se podendo utilizar, de forma imotivada e divorciada da realidade, termos vagos para impedir o controle dos gastos públicos e pessoais de agentes políticos e servidores públicos, sob pena de se vulnerar o Estado Democrático de Direito cobrindo com um manto intransponível os gastos com dinheiro público e o necessário controle da atividade administrativa.
 
Quanto ao ‘princípio da eficiência’, podemos dizer que o ordenamento jurídico censura a atuação amadorística do agente público, que no exercício de sua função deve imprimir incansável esforço pela consecução do melhor resultado possível e o máximo proveito com o mínimo de recursos financeiros.
 
Outros princípios de Direito Público também devem ser observados e cumpridos com rigor na rotina administrativa.
 
O princípio da ‘supremacia do interesse público’ ensina-nos que, no confronto entre o interesse do particular e o interesse público, prevalecerá o segundo, no qual se concentra o interesse da coletividade.
 
É necessário que os interesses públicos tenham supremacia sobre os individuais, posto que visam garantir o bem-estar coletivo e concretizar a justiça social.
 
Em razão do ‘princípio da indisponibilidade’, não é concedida liberdade absoluta ao administrador para concretizar transações de qualquer natureza sem prévia autorização legal.
 
Insta salientar que os bens, direitos e interesses públicos são confiados ao administrador tão-somente para a sua gestão e jamais para a sua disposição sem justa causa.
 
O ‘princípio da razoabilidade’ sinaliza que o administrador não pode atuar segundo seus valores pessoais, optando por adotar providências segundo o seu exclusivo entendimento, devendo considerar valores comuns a toda coletividade.
 
Já o ‘princípio da motivação’ exige que o administrador público justifique seus atos, explicitando, de forma clara e precisa, os pressupostos de fato e de direito das decisões tomadas.
 
A não observância de qualquer dos princípios da Administração Pública pode macular a edição de um ato ou contrato administrativo, tornando-o inválido e incapaz de produzir efeitos jurídicos, o que nos revela a enorme importância do tema ora tratado, que não pode deixar de ser observado na rotina administrativa, sob pena de se consolidar o ilícito e estimular a improbidade administrativa, maculando, consideravelmente, o Estado Democrático de Direito.
 
Por fim, urge destacar que somente com a irrestrita aplicação do ‘princípio da transparência’ nos negócios públicos e a consolidação da ética e dos deveres da boa administração na rotina administrativa ocorrerá a tão desejada transformação de uma realidade social censurável e não mais tolerada pelo povo brasileiro, conduzindo-se, destarte, a sociedade a um novo patamar de harmonia, respeito e equilíbrio, com a concretização do controle pleno dos gastos e do patrimônio público, propiciando a adequada gestão administrativa.

 

 
Alexandre Guimarães Gavião Pinto
Juiz de Direito do TJ/RJ