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O Rio de fevereiro – Intervenção federal cheia de enganos mil

20 de março de 2018

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Desembargador Henrique Nelson Calandra

Não há lugar do planeta tão reverenciado pela beleza quanto a cidade do Rio de Janeiro. O litoral contornado por morros como o Pão-de-Açúcar, que dão vista para o infinito do Atlântico, fazem do carioca um povo feliz por natureza. Entretanto, qualquer pessoa que resida ou venha visitar a região não tardará em perceber os inúmeros contrastes da terra de São Sebastião. As contradições, que começaram desde o período pré-colonial, agora saltam aos olhos do mundo com o decreto de intervenção federal.

Na primeira metade do século XVI, o desinteresse da Coroa Portuguesa por suas conquistas ultramarinas permitiu a formação da França Antártica, que acabou sendo desmantelada pelos legítimos possuidores, em virtude das constantes investidas militares conhecidas como Expedição Guarda-costas. O incidente bélico já era uma prévia do que iria ocorrer nos séculos posteriores, em que pessoas unidas pelos mesmos laços culturais passariam a se enfrentar em luta de morte, assim como fizeram as nações indígenas associadas ao homem branco europeu, em uma guerra com objetivos completamente estranhos aos seus interesses. Desde então, o espaço físico que hoje compreende o município Rio de Janeiro jamais perdeu a sua posição de destaque na historiografia nacional. Por suas praias vieram os jesuítas carregando a cruz do Redentor, que hoje assiste a tudo do alto do Corcovado; dos seus campos partiram os bandeirantes para envergar a linha de Tordesilhas; e em seu terreno tomado de pedras ergueram-se os prédios que abrigaram a Monarquia; o primeiro Banco do Brasil; a Biblioteca Nacional; o Teatro Municipal; o Forte de Copacabana; e o Palácio do Catete, onde as decisões governamentais eram proferidas em última instância para as demais unidades da federação.

Em razão de o grande capital ter ficado concentrado no Rio de Janeiro, inevitavelmente, todo o resto a ele agregado não poderia deixar de se ambientar ao redor, sem qualquer possibilidade de triagem quanto aos respectivos efeitos de cunho sociológico. Assim, em paralelo ao grandioso parque industrial, implantado sem a mínima infraestrutura no setor de habitação e transporte, foram germinando as favelas. Os anos foram passando, e o inchaço populacional, agravado pela intensa imigração de todas as regiões do país, transformou rios, praias e lagoas em verdadeiros esgotos a céu aberto; nas proximidades dos grandes hotéis, proliferou-se a prostituição; e em virtude da ausência de políticas públicas para proporcionar o mínimo de oportunidade para a maioria da população, veio, sorrateiramente, a violência.

A omissão dolosa dos governantes em todas as esferas do poder transferia para as polícias a responsabilidade de promover a segurança pública. Obviamente, o máximo que poderia ser realizado a base de ferro e fogo era a tarefa de colocar o pobre – sempre visto como bandido em potencial – em seu devido lugar, em nome de uma suposta paz social. Há de convir que, em uma cidade onde a maior favela do mundo fica ao lado de um clube de golfe, e apenas uma rodovia de mão dupla a separa dos luxuosos condomínios com vista para o mar (onde até governadores e presidentes da república já fixaram residência), o papel da polícia, indubitavelmente, por muito tempo, foi desempenhado com maestria.

Ocorre que, nos dias atuais, os antigos métodos não produzem mais os efeitos esperados. A crise econômica, somada ao saque das riquezas do povo fluminense orquestrado pelas organizações criminosas extraídas das urnas, antecipou o inevitável. O caos tomou conta das ruas, e não há mais lugar onde a integridade física do cidadão não fique sob dano iminente, independente da hora e do dia. Quem anda com a janela do carro aberta, por exemplo, ou atende ao comando do sinal vermelho, se revela como um ingênuo forasteiro que acaba de chegar à cidade para uma estreia inesquecível; e aquele que se atreve a utilizar o celular enquanto caminha pelas ruas, se não foi o próprio autor da subtração do aparelho, talvez padeça de alguma anomalia que mereça ser avaliada em minucioso exame clínico.

Foi nesse clima que o povo carioca passou a clamar por socorro, de preferência advinda das Forças Armadas. A população do Rio de Janeiro, assim como a do resto do país, não tinha a menor ideia de como tal providência poderia ser tomada de modo a envolver os militares em um projeto emergencial de segurança pública. Com o baixíssimo grau de instrução e escolaridade, obviamente não era de se esperar que a multidão tivesse ciência a respeito dos dispositivos constitucionais relativos a um problema jurídico e social de alta complexidade. Por esse motivo, até hoje há quem denomine de “intervenção militar” o conjunto de medidas em andamento.

O certo é que o Presidente Temer atendeu ao chamamento perante a cúpula do governo estadual que, diante das câmeras, e sem qualquer constrangimento, admite o colapso, embora se esquive do debate sobre as relações de causa e efeito. Depois de dois anos de assassinatos de policiais militares na proporção de um a cada dois dias, quem poderia esperar um carnaval de ordem e paz? Talvez apenas o prefeito do Rio de Janeiro, que estava na Suécia, em suposta missão cultural, no intuito de importar dos nórdicos a tecnologia para lidar com a miséria, entre outros problemas ­tipicamente europeus, como ausência de área disponível para a construção de camelódromos, desfiles de escola de samba, febre amarela, desabamento de ­ciclovias etc. Ironias à parte, de fato deveríamos ao menos ter aprendido com o Primeiro Mundo como planejar e executar medidas extremas de restauração da ordem pública com seriedade e competência.

Como o instituto da intervenção federal ainda não tinha sido aplicado sob a égide da atual Constituição da República, o procedimento adotado pelo governo para responder às gravíssimas questões de segurança vem causando perplexidade. O primeiro passo foi dado pelo Presidente ao anunciar em rede nacional o conteúdo do seu decreto. Neste aspecto, o Brasil inovou na arte da guerra, pois antes de invadir a área de conflito, pediu, gentilmente, para que o inimigo o esperasse, pois havia uma burocracia a cumprir, “coisa e tal” (só faltava distribuir senha para os bandidos e pedir para que retornassem em nova data, como de costume na administração pública). Em seguida, foi dado início ao processo legislativo que o crime organizado teve a oportunidade de acompanhar pela televisão, com direito a um resumo exibido pelo Fantástico. Como se não bastasse, foi preciso enviar um relatório para o Tribunal de Contas da União, outro para a Advocacia-Geral da União, outro para o Ministério Público, e outro para o Ministério dos Direitos Humanos, até que as tropas, finalmente, fizessem a inserção nas áreas de risco. Porém, como os ajustem ainda não tinham sido concluídos, os combatentes, para não fugir ao estilo, passaram alguns dias elaborando relatórios sem nada poder fazer. Fazer o quê?

Sergio Ricardo do Amaral Gurgel, advogado

Pelas estradas que ligam o Rio de Janeiro aos estados vizinhos, é bem provável que os delinquentes tenham transitado tranquilamente. Em um país, onde diariamente passam toneladas de drogas e armas pelas ­rodovias estaduais e federais, não é de se espantar que também atravessem pessoas, até porque, até agora não se sabe exatamente quem estão procurando. Diziam que um dos marginais atende pelo apelido “cabelo duro”. Isso ajuda? Talvez um pouco, mas a imprensa informou que esse indivíduo integrava o PCC, facção criminosa que opera em São Paulo. Tudo é tão confuso que os soldados receberam a ordem para tirar fotos dos moradores exibindo a respectiva carteira de identidade, ou seja, uma “inovação” de improviso no ­tocante à legislação referente à identificação criminal. Depois de anos lutando para a regulamentação da matéria instituída pela Lei 12.037/2013, visando garantir que os métodos de identificação não fossem utilizados inutilmente, sem fundado receio, ou que servissem de cruel instrumento para humilhar o cidadão, voltamos à estaca zero. Porém, quem sabe um desses perigosos traficantes, andando com o um saco de pão francês na mão, e portando uma carteira de identidade autêntica, não tire uma self com um soldado?

Em meio ao esfacelamento do Direito Processual Penal, que começou a agonizar com a deflagração da Lava Jato, voltou-se a questionar sobre a possibilidade de se expedir mandado de busca domiciliar coletivo ou itinerante. Há anos o assunto vem sendo debatido pela doutrina e jurisprudência, e a conclusão sempre foi muito simples: não se encontra previsto em lei, e não poderia ser diferente. A casa é asilo inviolável, e as hipóteses excepcionais que autorizam à entrada a força estão elencadas na Lei Maior. Por sua vez, o Código de Processo Penal estabelece o procedimento para a consecução do ato, quando exercido pelo agente público, exigindo, entre outras medidas, que seja indicada, “o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem; mencionar o motivo e os fins da diligência.” (art. 242, I, II, do CPP). Em que pese muitas casas serem de difícil acesso, ou por terem comunicação entre elas, ou pelos tradicionais “puxadinhos” que fazem com que se perca de vista o limite de uma e outra, devemos lembrar que tais construções foram edificadas sob aplausos do poder público, que nada fez para impedir as inúmeras irregularidades, e que colocam a comunidade em risco constante. Se na tomada do Complexo do Alemão pelos agentes de segurança, em conjunto com as Forças Armadas, a legislação pátria foi respeitada, por que não haveria de ser agora?

Claro que o tamanho da polêmica tinha de ser proporcional à magnitude da operação. Antes mesmo de ser iniciada, houve quem sustentasse a legalidade em atirar em qualquer um que estivesse ostentando um fuzil. Embora a proposta possa parecer razoável, principalmente para quem é obrigado a conviver com esta triste realidade, nenhuma adequação guarda com o ordenamento jurídico em vigor. Considerando que o Brasil não se encontra em estado de guerra declarada (ainda), os agentes públicos só podem atirar, inclusive para matar, na salvaguarda de direito próprio ou alheio, apenas nos casos de legítima defesa, conforme o disposto nos artigos 25 do Código Penal e 44 do Código Penal Militar. A conduta de portar arma de fogo de uso proibido está prevista no art. 16 da Lei 10.826/2013 (Estatuto do Desarmamento), cuja sanção, imposta por um magistrado, pode chegar a seis anos de reclusão, e jamais à pena capital, muito menos aplicada por um soldado ou policial. Deveria ser diferente? Muitos vão concordar. Então que seja convocada nova Assembleia Constituinte!

Claro que o Governo Federal não espera resolver o problema da violência no Rio de Janeiro por intermédio da força bruta. Nem mesmo o mais ignorante cidadão chegaria a crer no engodo da onipotência estatal, mesmo porque não precisa ser um gênio para entender que a selvageria brota na estufa da desordem e da miséria material e intelectual. A intervenção decretada em fevereiro apenas se mostrou necessária, não só pelos episódios de barbárie difundidas no mundo inteiro, como também pelo fato de as próprias autoridades locais admitirem a incompetência para resolvê-los. Entretanto, diante dos métodos que estão sendo utilizados, o que se espera agora é que ao menos as Forças Armadas, que heroicamente conseguiram manter a imagem imaculada, gozando de grande prestígio perante a sociedade, não venham se contaminar com as mazelas políticas que nos levaram ao presente estado de degeneração total.