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O Sistema dos Juizados Especiais como instrumento de cidadania

20 de abril de 2018

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Constituição de 1988 traz em seu corpo inúmeras promessas que vão do acesso universal à saúde, à felicidade, passando pela segurança, equilíbrio nas relações sociais e comerciais. Elas podem ser sintetizadas no ­termo cidadania material.

Junto com as promessas, o Constituinte criou ferramentas de acesso aos sonhos que brandiu, mas passados cerca de três decênios muitas ficaram no campo dos conceitos, sem materialização prática para a maioria de nós.

Dentre essas ferramentas, o legislador constituinte de 1988, talvez sem perceber o alcance da revolução que se seguiria, estabeleceu poderoso instrumento para concretude da cidadania, no art. 98: “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.

Simples como deve ser, e nem sempre consegue ser, a solução proposta para abrir portas de acesso à cidadania pela via judicial merece ser cuidada e sempre ­renovada com o grau trazido pela própria Constituição: simplicidade, oralidade, celeridade, conciliação.

Em suas três facetas, cível, fazendária e penal, o Sistema dos Juizados deve permitir à discussão todos os aspectos da atividade humana: da responsabilidade ­social da atividade econômica ao princípio da dignidade humana, no acesso a serviços que hoje são indissociáveis da vida normal, como por exemplo acesso a meios de comunicação; da resistência do cidadão perante o Estado à necessidade de se preservar a ­autonomia administrativa dos representantes democraticamente eleitos, como na inafastável intervenção na questão da saúde pública; e na aparente contradição existente num sistema que torna penalmente relevantes questões da convivência humana que tinham sido esquecidas pelo sistema penal, e ao mesmo tempo pretende pela via da consensualidade despenalizar a solução dos conflitos.

A relação de consumo se rege por regras de mercado: a livre concorrência em tese traria a liberdade de escolha e levaria o consumidor a privilegiar o prestador mais eficiente. Todavia o princípio da livre escolha pressupõe paridade de armas; as regras da livre concorrência ­devem privilegiar a transparência das relações. Na própria relação entre o fornecedor e o consumidor pode haver necessidade de intervenção fixando, por exemplo, a responsabilidade da instituição financeira pelo fornecimento de crédito em consumidor vulnerável.

A relação entre o Estado e o cidadão encontra seu vértice no processo democrático de escolha periódico. Bem assim, soberanamente o povo escolhe quem e como aplicará as verbas públicas na promoção da saúde. Nada obstante, a saúde, além de representar uma premissa lógica do direito à vida, constitui uma faceta da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República brasileira, e no atendimento do caso concreto, autoriza-se a subversão dessa ordem natural para ditar a política pública.

A relação interpessoal não poderia ser
estranha a esse Sistema
Desde o advento dos Juizados de Pequenas Causas, na esteira do movimento de desburocratização, já se havia descoberto que uma das formas mais eficazes de resolução dos conflitos é permitir o consenso direito entre as partes.

O que a Constituição apregoa, de maneira inovadora, e a Lei 9.099/95 materializa, é a possibilidade de trazer os princípios da informalidade e do consenso para a esfera do Processo Penal. Como o Processo Penal tem, e diga-se, deve mesmo ter, arraigados princípios de presunção de inocência, de devido processo legal, com garantias de contraditório e ampla defesa, era necessário que a própria Constituição criasse a franquia para um direito penal de consenso, negocial, com aceitação de sanção penal pelo próprio autor do fato e a civilização do conflito penal, com renúncia do Estado ao direito-dever de punir diante do interesse maior das pessoas diretamente envolvidas no conflito.

Pode se criticar a escolha legislativa pelo termo “menor potencial ofensivo”. Por certo para a vítima de ameaça, a situação vivenciada jamais será de menor potencial. O que dizer então para a vítima de um atropelamento no trânsito que perde as duas pernas?

O termo infeliz que etiqueta essa série de conflitos da convivência humana não deve, contudo, plasmar o Sistema, da mesma forma que não se pode atribuir ao Juizados Criminal a pecha de banalizar a violência. Na verdade, o Sistema da Lei 9.099/95 dá azo a uma abordagem muito mais severa ao “autor do fato”, do que o sistema penal tradicional, a partir de seu próprio nascedouro, em que já se atribui a autoria sem necessidade de investigação.

A Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, do artigo 60 ao 92 dispõe sobre o procedimento criminal e em suas disposições gerais da parte criminal, estabelece, in verbis:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor ­potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (Redação dada pela Lei no 11.313, de 2006)

Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-­se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. (Redação dada pela Lei no 13.603, de 2018)

Nesse momento histórico, nosso legislador poderia simplesmente afastar a aplicação da legislação penal da resolução de conflitos interpessoais. Mas, bem ao contrário, juntou na mesma jurisdição especial a possiblidade de aplicação cumulativa ou alternativa das soluções penais e civis, e para isso flexibilizou alguns princípios do Direito Processual, objetivando a celeridade processual e aplicação de penas não privativas de liberdade, limitado esse aspecto à sanção penal mitigada da transação penal, nunca à sentença penal de eficácia plena, com afirmação de culpa e seus consectários (perda da primariedade, etc.), para a qual é pressuposto o devido processo tradicional.

Assim, a compreensão do Sistema em matéria penal se estrutura em degraus: solução negociada direta entre as partes envolvidas (suposto autor do fato e suposta vítima), com exclusão da jurisdição penal; solução ­negociada entre as partes envolvidas (suposto autor do fato e suposta vítima) e o Estado-acusador; com ­jurisdição penal mitigada, através da solução transacional; solução negociada entre as partes envolvidas e o Estado-acusador com início da formalização da ­jurisdição penal (suspensão condicional do processo); solução penal tradicional.

Como o Sistema é essencialmente progressivo, a preterição de qualquer das etapas gera contaminação por nulidade da etapa seguinte.

Muito embora o legislador não tenha alterada substancialmente as normas incriminadoras, ao instituir um Sistema de Justiça Especial, força, pela via principiológica, uma revolução no Direito Penal.

Deve se ter em mente os objetivos perseguidos pelo Sistema, ditados no art. 62 de nossa Lei de ­regência: objetivando, sempre que possível, (1) a ­reparação dos danos sofridos pela vítima e (2) a aplicação de pena não privativa de liberdade.

Assim, só uma leitura torta e ideologicamente contaminada das leis dos juizados pode levar à conclusão de que a grande inovação dos Juizados Especiais Criminais foi permitir a informalidade para o início do ius persequendi para efetivar com maior celeridade o ius puniendi, buscando, a partir da Lei 9.099/95, formalizar e punir pequenas infrações que o Estado há tanto tempo vinha desprezando por falta de estrutura.

É correto afirmar que o Estado desprezava, ao argumento falacioso de falta de recursos, a maioria dos delitos hoje tratados nos juizados. Mas na mesma medida também desprezava os delitos que tinha valoração de pena mais intensa. Basta ver o número pífio de homicídios que são levados a julgamento:

O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em pesquisas realizadas, inclusive a realizada pela Associação Brasileira de Criminalística, 2011, que varie entre 5% e 8%. Este percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de 80%. A quase totalidade dos crimes ­esclarecidos decorre de prisão em flagrante e da repercussão do caso nos meios de comunicação (Relatório Nacional da Execução da Meta 2 : um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília : Conselho Nacional do Ministério Público, 2012. Página 22).

A quase totalidade dos crimes esclarecidos decorre de prisão em flagrante e da repercussão do caso nos meios de comunicação.

Estabelecida a ESTRATÉGIA NACIONAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA – ENASP, fixou-se meta (Meta 2) que mandava “concluir todos os inquéritos e procedimentos que investigam homicídios dolosos instaurados até 31 de dezembro de 2007”. Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, o resultado obtido em termos de efetividade foi desprezível. O Estado do Rio foi o ­segundo que mais arquivou: 96% dos casos examinados. Só foi superado por Goiás (97%), que teve mais da ­metade de todos os inquéritos arquivados no país.

Neste aspecto, os princípios de simplicidade, ­infor­malidade e oralidade permitem retirar das ­es­tru­turas estatais ineficientes o instrumento principal de trabalho dos Juizados: o Termo Circunstanciado. Se a estrutura de polícia judiciária se mostra despreparada para atender à demanda, nenhum sentido há em se pretender enxergar monopólio da Polícia Civil ou Polícia Federal para sua lavratura.

A formalização do Termo Circunstanciado, além de estar em frontal colisão com a Lei 9099/95, presta inúmeros desserviços, a saber, (a) desestímulo à notificação do fato pela suposta vítima ou ao policial militar, ambiental, rodoviário em razão da demora na lavratura; (b) retirada de recursos humanos escassos do policiamento ostensivo, também em razão da demora na ­lavratura do termo; (c) pobreza do conteúdo ideológico do Termo Circunstanciando em razão da transcrição por terceiros (o policial civil) que não vivenciou o fato; (d) utilização desnecessária da estrutura de polícia judiciária que, outramente, poderia estar se ocupando de cumprir adequadamente a Meta 2 antes citada.

Esta matéria já foi enfrentada pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais – FONAJE, em seu ENUNCIADO 34: “Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar”.

No mesmo sentido, a Justiça Estadual do Rio de ­Janeiro passou a aceitar o envio direto dos Termos ­Circunstanciados lavrados pela Polícia Rodoviária ­Federal, sem a necessidade de expedição de nenhuma regulamentação, partindo apenas do texto expresso do art. 62, da Lei 9099/95 (O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade), com a redação dada pela Lei no 13.603, de 2018, que em especial destacou a regra da simplicidade.

Demonstrado que a desmaterialização do Direito Penal não abrangia apenas as chamadas “infrações penais de menor potencial ofensivo” resta desmontar a ideia de que se busca reinserir na esfera punitiva essa enorme gama de delitos.

Como se vê da leitura dos princípios que informam o sistema, a busca da civilização das relações interpessoais é a pedra de toque do Sistema. Para isso serve a informalidade e a bem nesse sentido caminha o entendimento assentado pelos Juízes de Juizado em seu Fórum Nacional – FONAJE:

ENUNCIADO 37 – O acordo civil de que trata o art. 74 da Lei no 9.099/1995 poderá versar sobre qualquer valor ou matéria (nova redação – XXI Encontro – Vitória/ES).

ENUNCIADO 74 (Substitui o enunciado 69) – A prescrição e a decadência não impedem a homologação da composição civil (XVI Encontro – Rio de Janeiro/RJ).

ENUNCIADO 76 – A ação penal relativa à contravenção de vias de fato dependerá de representação (XVII Encontro – Curitiba/PR).

ENUNCIADO 89 (Substitui o Enunciado 36) – ­Havendo possibilidade de solução de litígio de qualquer valor ou matéria subjacente à questão penal, o acordo poderá ser reduzido a termo no Juizado Especial ­Criminal e encaminhado ao juízo competente (XXI Encontro – Vitória/ES).

ENUNCIADO 99 – Nas infrações penais em que haja vítima determinada, em caso de desinteresse desta ou de composição civil, deixa de existir justa causa para ação penal (nova redação – XXIII Encontro – Boa Vista/RR).

ENUNCIADO 113 (Substitui o Enunciado 35) – Até a prolação da sentença é possível declarar a extinção da punibilidade do autor do fato pela renúncia ­expressa da vítima ao direito de representação ou pela conciliação (XXVIII Encontro – Salvador/BA).

ENUNCIADO 119 – É possível a mediação no âmbito do Juizado Especial Criminal (XXIX Encontro – ­Bonito/MS).

Num apertadíssimo resumo, o acordo civil em sede de Juizado Especial é cabível mesmo em contravenções penais e crimes para os quais a lei preveja ação penal pública incondicionada, desde que identificável um titular do direito materialmente violado, passível de composição; o termo composição civil abrange não só a composição pecuniária, mas sim e especialmente a composição moral; a composição civil não encontra amarras em natureza da prestação ou seu valor, e pode abranger toda a rede de pertinência das partes envolvidas; a composição deve ser perseguida em qualquer momento do processo.

Voltando ao aspecto de exercício do poder de punir estatal, a leitura do Sistema dos Juizados também pode ser inovadora.

Ao aceitar a pena sem processo, estabelecida em negociação, o legislador Constituinte deixa claro que não se flexibilizam as garantias constitucionais fundamentais, exigindo devido processo e ampla defesa material até mesmo para a pena resultante da transação (ENUNCIADO 111 FONAJE: O princípio da ampla defesa deve ser assegurado também na fase da transação penal – XXVII Encontro – Palmas/TO), e que a transação penal tem caráter de “pena” mitigada, não gerando reincidência ou presunção de culpa. Punir, para a Lei dos Juizados, é realmente a ultima ratio.

Com o advento da nova Lei de Drogas (Lei 11343/06), ficou bem evidenciada a cisão principiológica entre a pena e a transação penal.

Com a Lei de Drogas, o Brasil firmou que a posse de drogas para uso próprio não deve ser objeto de aplicação de pena em molde tradicional, quer se entenda que a conduta deva ser criminalizada ou não, discussão que por si só mereceria vários compêndios.

Fato é que, no estado atual da arte, não há espaço legal para imposição de sentença penal condenatória no fato descrito no art. 28 da Lei de Drogas.

Bem sesse sentido, também se manifestaram os Juízes de Juizado, no seu Fórum:

ENUNCIADO 115 – A restrição de nova transação do art. 76, § 4o, da Lei no 9.099/1995, não se aplica ao crime do art. 28 da Lei no 11.343/2006 (XXVIII ­Encontro – Salvador/BA).

ENUNCIADO 118 – Somente a reincidência especifica autoriza a exasperação da pena de que trata o ­parágrafo quarto do artigo 28 da Lei no 11.343/2006 (XXIX Encontro – Bonito/MS).

ENUNCIADO 124 – A reincidência decorrente de sentença condenatória e a existência de transação ­penal ­anterior, ainda que por crime de outra natureza ou contravenção, não impedem a aplicação das ­medidas despenalizadoras do artigo 28 da Lei 11.343/06 em sede de transação penal (XXXIII ­Encontro – Cuiabá/MT).

ENUNCIADO 126 -A condenação por infração ao artigo 28 da Lei 11.343/06 não enseja registro para efeitos de antecedentes criminais e reincidência. (XXXVII ENCONTRO – FLORIANÓPOLIS/SC).

Como o parágrafo quarto do art. 28 da Lei de Drogas prescreve que “em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses”, fica claro que sempre deve ser buscada na via negocial a resolução do processo gerado por este fato típico.

Não há espaço legal para processo penal condenatório.

Observe-se que a menção que a própria Lei de Drogas faz do Sistema dos Juizados remete ao art. 76, que cuida da transação penal (art. 48, § 5o).

Assim, nas hipóteses de reincidência (rectius, reuso) o usuário deve ser encaminhado a nova transação penal, sendo certo que a própria Lei de Drogas afasta, até mesmo no caso de descumprimento, qualquer possibilidade de intervenção penal tradicional.

Na verdade, o Juiz atua como um dos elos da corrente multidisciplinar prevista em Lei, agindo como garantidor do acesso à saúde (art. 28, § 7º. O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado).

Vivenciamos tempos difíceis, com polarização visível em todas as áreas da atividade humana. A Justiça obviamente, não poderia ser excluída. Consumeristas se opõem àqueles que defendem a liberdade de mercado; defensores do Estado se contrapõem aos defensores dos cidadãos; garantistas levantam armas contra os defensores da lei e da ordem. No meio dessa guerra, mais das vezes, o homem do povo queda-se perplexo: esqueceram de mim e ficaram a discutir o processo! O ser humano não pode mais ser visto como objeto do processo.

É um equívoco pensar que um Sistema novo tenha sido criado para replicar, apenas com economia de recursos públicos, o velho e ineficaz modo de prestar jurisdição. O Sistema dos Juizados resgata conceito de justiça participativa, fornece instrumentos eficazes para o consumidor se equiparar ao fornecedor; para o cidadão se empoderar frente ao Estado e para as pessoas atingirem a pacificação social em suas ­relações interpessoais.

No Juizado Criminal propiciar ação punitiva não pode ser a razão da inovação institucional. Bem ao reverso, deve o lidador do direito buscar nessa nova senda o atalho para a novidade, a civilização dos ­conflitos interpessoais para alcançar a pacificação social.

Talvez seja a última chance de o Estado intervir e resgatar sua credibilidade.