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O Supremo contra a devassa

5 de julho de 1999

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O Supremo Tribunal Federal cumpre o seu papel maior, que é o de guardar a Constituição, a Lei, os direitos do cidadão. A liminar concedida pelo ministro José Paulo Sepúlveda Pertence lava a alma dos que ainda acreditam na justiça, dos que não aceitam o arbítrio, dos que reagem à quebra dos direitos do indivíduo, da pessoa, qualquer que seja ele, o positivo, a subjetivo, até o natural. Afinal, uma sociedade é organizada na base do direito; desrespeitá-lo, qualquer que seja a justificativa, agride a ordem social, e não apenas a ordem jurídica. Invadir a privacidade, desrespeitar o sigilo do que se conversa a dois, ou a quatro ou a dez, do que se faz com os recursos próprios, do que se escreve em caráter particular, só deve ocorrer em casos muito excepcionais, por razões de segurança pública, ou para a apuração de crimes que haja indícios veementes de autoria. Basta ler, e qualquer leigo entenderá, o que diz o art. 5ºda Constituição Federal, em seus nos. X, XI e XII. A quem recorrer contra o abuso, a não ser ao tribunal maior do País?

“CPI não é devassa”, disse em seu despacho o ministro Pertence. Quem me acompanha deve recordar-se que foi este ponto em que fundamentei para criticar o comportamento dos que, na CPI, quando do depoimento frustrado do ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, trataram o depoente como um criminoso, ao mesmo tempo em que lhe negavam os direitos assegurados na Constituição e nos códigos, de não depor como testemunha. Ele foi preso por um delegado federal, em transmissão ao vivo pela TV, e seus advogados, expulsos da sala em que se realizava audiência e onde se praticava o arbítrio, foram chamados de “moleques” e “cachorros” pelo próprio presidente do Senado.

Foi a cena mais triste e lamentável mostrada por uma emissora de TV. Alguns senadores, não todos, ainda bem, berravam contra a depoente, um homem austero, tímido, ameaçando-o com a prisão. O presidente da CPI, aturdido e pressionado, cancelou sua decisão de suspender a sessão par alguns minutos, e adotou a sugestão dos senadores em crise de nervos, prendendo o homem que até dias antes comandava o mais importante órgao controlador da economia e das finanças do País.

A decisão de Sepúlveda Pertence foi ampla e abrangente. A liminar concedida libera os bens de Chico Lopes, proíbe a quebra dos sigilos telefônico, fiscal e bancário determinados pela CPI dos Bancos no Senado. “CPI não é devassa”, disse o ministro Pertence. Para ele, a Constituição assegura à CPI poderes próprios de investigação, como o autorizado às autoridades judiciárias. Mas entende que indisponibilidade de bens, quebras de sigilos bancários, fiscal e telefônico, são medidas de extrema gravidade que devem ser tomadas apenas através da decisão judicial. Registre-se, apenas, que não foi bem assim que o Supremo decidiu nos tempos de Collor.

Pertence mencionou, ainda, o sensacionalismo que domina as comissões parlamentares de inquérito. “É fato notório que as CPIs não têm se preocupado em resguardar segredo legalmente imposto aos dados obtidos a partir de sua intervenção nas áreas protegidas de privacidade. É cotidiana, pelo contrario, a sua divulgação pela imprensa”.

Ninguém, muito menos o ministro Pertence, está defendendo o ex-presidente do Banco Central. Não se entrou no mérito do que contra ele se pretende provar, por supostas irregularidades praticadas em atos de sua gestão naquele banco, e por alegado desvio de recursos para fora do país, em nome de terceira pessoa. O que se defende, e é este o dever de todas as pessoas de bem e especialmente dos que fazem parte do mais alto colégio judiciário brasileiro, é a necessidade de assegurar os direitos e as garantias individuais e constitucionais do cidadão, qualquer que seja ele, por pior que ele possa ser, o que todos reconhecem, não é o caso do Sr. Francisco Lopes, até prova rigorosa em contrário, um homem de bem.

Foi o que fez, com a coragem que lhe é habitual, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, mineiro de Sabará, para honra nossa, como outro famoso ministro e ex-presidente do STF, Orosimbo Nonato, que jamais deu uma entrevista à imprensa, por entender que o juiz só fala nos autos, e que, se vivo fosse, morreria de espanto e de vergonha por tudo que está acontecendo no Brasil.