Olhemos o espelho

30 de abril de 2008

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Nesta semana, lembrei de um colega de curso primário, Fernando Acosta Rodriguez, o melhor aluno da turma, filho de espanhóis bem recebidos no Brasil, há quase 60 anos. Hoje, Fernando é tão brasileiro como qualquer de nós e deve ter ficado indignado com o comportamento dos funcionários de fronteira do aeroporto de Barajas, que impediram brasileiros de entrar na Espanha porque não comprovaram dispor de dinheiro suficiente para ficar no país.

Com razão, reclamamos do fato dos jovens brasileiros serem barrados na fronteira da Espanha quando iam fazer um curso. Mas nós mesmos não deixamos entrar nas boas escolas os filhos daqueles que não podem pagar as mensalidades. Os muros das nossas escolas são tão protegidos quanto as fronteiras dos aeroportos do mundo.

Ainda pior, porque se o imigrante consegue entrar, pode ficar anos circulando clandestinamente; mas nas escolas e faculdades, se o aluno não pagar, as catracas automaticamente o barram na próxima vinda à aula.

No Brasil, a entrada de qualquer hospital de qualidade é protegida por barreiras mais difíceis de atravessar do que as fronteiras europeias. Para entrar, não basta estar doente, é preciso ter dinheiro, conta bancária, documentos de seguro em dia. As exigências da portaria do hospital brasileiro são muito mais rígidas do que dos aeroportos na Espanha.

Se um brasileiro pobre conseguir pagar o ônibus para ir a um shopping, corre o risco de ser abordado pelo segurança e convidado a se retirar, porque não parece pertencer àquele mundo de consumo, por causa da roupa, do chinelo, dos dentes. Ou simplesmente porque, para os guardas, ele representa uma ameaça aos privilegiados frequentadores, tanto quanto, para os guardas de fronteira espanhóis, nós somos uma ameaça aos privilegiados habitantes da Comunidade Econômica Europeia.

Ver nossos compatriotas impedidos de entrar na Espanha é um absurdo que deve nos indignar, mas não nos esqueçamos dos 16 milhões de brasileiros adultos impedidos de entrar na modernidade porque não receberam as condições para serem alfabetizados. Criticamos o excesso de zelo nas fronteiras espanholas impedindo a entrada de brasileiros naquele país, para estudar ou trabalhar, e nos esquecemos da nossa falta de zelo de permitir que os brasileiros recebam a educação e a formação profissional para entrar no mundo do trabalho.

Precisamos manifestar nossa indignação com o comportamento dos países ricos que a cada dia dificultam mais o ingresso de turistas, estudantes, trabalhadores em busca de alternativas melhores no exterior. Mas precisamos olhar no espelho de nossa própria sociedade e nos perguntarmos por que só merece crítica o comportamento dos policiais da fronteira contra alguns brasileiros que vão ao exterior, ignorando o comportamento do emaranhado de fronteiras dentro do Brasil contra os brasileiros que desejam alguma alternativa aqui dentro.

O Brasil é um país dividido por fronteiras tão rígidas quanto as do aeroporto de Barajas ou qualquer outro de um país rico. Nós barramos os brasileiros.

E há uma fronteira pior: a dos olhos fechados, da falta de percepção para ver estas fronteiras contra os brasileiros pobres. E que é capaz de provocar a recusa de artigos como este, dizendo que é muito diferente o impedimento de um turista entrar em um país estrangeiro e de um doente entrar em um hospital em seu próprio país. Diferente contra que lado do espelho: dos espanhóis ou dos brasileiros?