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Os desafios da Magistratura para a consolidação do Estado Democrático de Direito

3 de setembro de 2018

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Constituição Federal de 1988 trouxe um novo paradigma de Justiça para o Brasil, porque o constituinte escolheu o Poder Judiciário também como o moderador dos conflitos institucionais e por essas e outras
razões reafirmou a independência do Poder Judiciário, garantindo-lhe autonomia administrativa e
financeira.

Na Constituição do Império, de 1824, afirmou-se a independência dos juízes, mas esses eram nomeados pelo Imperador; depois disso eram perpétuos no cargo e só o perderiam por sentença, mas podiam ser removidos. Andrei Koerner, em minucioso estudo sobre o Poder Judiciário, mostra a importância dos juízes no conflito entre senhores e escravos, especialmente depois da Lei do Ventre Livre e afirma: “Com essas mudanças institucionais e sociais, um número cada vez maior de magistrados passou a decidir a favor da liberdade dos escravos, criando relações conflituosas com os poderes locais e alterando a própria prática judicial.”

José Thomaz Nabuco de Araújo, um dos mais preocupados àquela altura com a organização judiciária, levou à discussão, no ano de 1854, a reforma judiciária e os temas mais preocupantes nos debates foram: a) necessidade de separar o juiz da política; b) a ação da polícia da ação da justiça; c) a unidade da jurisprudência; d) a inamovibilidade dos magistrados; e) a melhoria da condição dos juízes e f) a independência dos magistrados.

Passados 164 anos, verificamos, no tocante ao Judiciário, preocupações persistentes e duradouras. José Thomaz Nabuco de Araújo, em discurso proferido no dia 15 de junho de 1861, insistiu na necessidade de magistrados independentes e de uma magistratura dotada de estabilidade e de futuro, cercada de vantagens e esperanças. Fundamentalmente, pretendeu Nabuco despertar e alimentar a vocação do magistrado, elevar a magistratura no estado e cercar de garantias o cidadão e no prefácio de sua proposta de reforma indicou os itens sobre os quais já havia consenso, destacando, dentre elas, a efetiva independência do magistrado.

A Constituição da República de 1934 conformou a estrutura do Judiciário já para algo mais próximo do que conhecemos, com as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, vedado o exercício de outra função pública, salvo o magistério, bem como a atividade político-partidária e o conhecimento de questões exclusivamente políticas. Em seguida, a Carta de 1937 inaugura um novo período ditatorial, ignora o princípio da independência do Poder Judiciário, recuperada somente em 1946, e assim seguiu até o Ato Institucional n. 1/64, quando novo golpe institucional acarreta a suspensão das garantias da magistratura e a exclusão do exame judicial de atos políticos de cassação de mandatos e de cassação de direitos políticos.

A Constituição de 1967 procura restabelecer alguma normalidade, ao menos formal, mas em seguida o AI 5, de 13 de dezembro de 1968, volta a suspender as garantias da vitaliciedade, inamo­vibilidade e exclui do exame judicial todos os atos praticados de acordo com o referido ato.

Nesse contexto, nota-se com alguma clareza o fortalecimento das garantias da magistratura nos regimes democráticos e a supressão delas nos regimes ditatoriais. Isso revela, de maneira indiscutível, o Poder Judiciário como elemento primordial, base de sustentação da nossa democracia, garantidor das liberdades e ao mesmo tempo coloca sobre os ombros de seus integrantes uma enorme responsabilidade e por isso dentre os três poderes é do Judiciário que se exige a maior autocontenção.

A partir de 1988, com a abertura democrática e o advento da chamada “constituição cidadã”, observa-se um fenômeno de amplo acesso à justiça, mesmo porque foi escolha do constituinte conferir ao Poder Judiciário um grande papel de moderador de toda sorte de conflitos, inclusive dos institucionais, diversamente do que ocorre nas ditaduras.

Antoine Garapon, no livro “O juiz e a democracia – O guardião das promessas” observa muito corretamente que o controle crescente da Justiça sobre a vida coletiva é “um dos maiores fatos políticos deste final de século XX” e isso porque nada mais escapa ao controle da Justiça, situação que se verifica no Brasil pós 1988. Basta dizer que, em 1988, a distribuição anual girava em torno de 350 mil processos e chega a 26 milhões de processos em 2016.

Como, então, enfrentar esta nova realidade?

A pedra de toque no Judiciário é a independência.

Sabemos que o direito cria suas próprias realidades, pois é um objeto cultural construído pela comunidade. Vimos na trajetória institucional do Brasil a independência do Judiciário variar, sendo certo que se fortalece quando vigente regime de liberdades públicas e desaparece nos regimes de força.

Bem verdade que independência judicial pode ser enfocada como uma relação entre os juízes e as partes; uma relação entre os próprios juízes e como uma relação entre poderes, utilização mais frequente porque utilizada como símbolo de luta.

Em relação às partes, têm inegável valor porque, como lembra Cappelletti, compartilhando a opinião de Giovanni Pugliese, “a independência não é senão o meio dirigido a salvaguardar outro valor – conexo certamente, mas diverso e bem mais importante do que o primeiro – ou seja, a imparcialidade do juiz.”

E porque a independência é uma garantia do povo, não do juiz, e está diretamente ligada à ideia de soberania, os ditadores buscam, a todo custo, suprimi-la das mais variadas formas, até mesmo nos regimes travestidos de democracias.

Aqui, portanto, reside o maior desafio para a magistratura, a dizer, garantir a independência do Poder Judiciário.

Esse desafio pode sugerir, num primeiro raciocínio, uma conduta de defesa contra inimigos externos. Isso é verdade, mas não basta. A garantia da independência depende muito dos próprios juízes, pois carregam a responsabilidade enorme, permanente e diária, de consolidar a independência judicial e por meio dela garantir e aprimorar o regime democrático. “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”, advertiu um dia Winston Churchill e ninguém nunca afirmou que a democracia seria fácil.

A construção da história de um povo não depende de seus líderes, ou apenas deles, mas especialmente do próprio povo e da cultura que se pretende construir. Um poder judiciário independente incomoda muita gente. Decisões judiciais geram insatisfação, pois é da natureza da decisão imposta por um terceiro o inconformismo de quem não tem seus interesses atendidos em parte ou totalmente. E se assiste hoje no cenário nacional exatamente essa insatisfação, turbinada por interesses políticos de variadas matizes.

Numa sociedade com múltiplos interesses, o ambiente político favorece toda sorte de discursos, no mais das vezes menos preocupados com o bem-estar da nação e mais interessados nas conquistas de poder ou na imposição de linhas de pensamentos uniformes.

Surge, então, um outro grande desafio ao Judiciário, a dizer, equilibrar bem os pratos da balança da Justiça, zelar pelo tesouro da imparcialidade como base da sustentação da independência, porque se o povo não conhecer bem a importância da independência entre os poderes, sente facilmente o que é parcialidade ou imparcialidade, porquanto um está no campo da emoção e outro na área da razão.

Não são poucos os que pretendem suprimir, mais uma vez, as garantias da magistratura e violar a independência judicial, jogando com as decisões judiciais e utilizando de instrumentos que o Judiciário não pode utilizar, especialmente a mídia, de maneira a gerar instabilidade institucional.

O desafio é guardar a prudência e a tranquilidade e agir com sabedoria, em todos os aspectos, para zelar pelo bem maior que é a consolidação da nossa democracia com o fortalecimento das instituições.

Isso exige de nós, juízes, algumas qualidades e uma delas é o exercício do amor. Mas não, de início, o amor pela magistratura, muito necessário para quem é juiz ou juíza. Refiro-me ao amor pelas pessoas, pelo ser humano. Mal comparando, Justiça é como Medicina. É preciso gostar de gente. É preciso enxergar o outro, ver o que está por detrás das folhas de papel ou das telas de um computador. Necessário superar impulsos individualistas, egoísticos, superar a própria realidade vivida, compreender dificuldades sentidas por outras pessoas pelas quais eventualmente não passamos, respeitar a vida humana, com tudo que isso representa, na iluminação de que a família não se limita às advindas dos laços sanguíneos – fundamental em nossa existência e seio do desenvolvimento das melhores características do ser humano – mas alcança a grande família humana, complexa, diversificada, multicolorida, da qual fazemos parte.

Resta ainda um desafio interno relevante: a unidade. Nunca foi tão importante como agora a unidade da magistratura, chegado o momento de superar divergências internas, pois como ensina o professor Adriano Moreira, “o cimento da unidade é a comunhão dos afetos” e é por meio dessa comunhão que se pode manter a unidade na magistratura, para servir de sustentação à garantia da independência do Judiciário e, assim, da construção da democracia. Unidade não implica pensar da mesma forma, agir igual, mas compreender a existência de um bem maior em favor de todos, valores e princípios gerais que suplantam os individuais e necessitam garantir a própria existência do Poder Judiciário independente e imparcial, a sustentar o Estado Democrático de Direito.

Grandes são os desafios, mas também é grande a magistratura brasileira, que segue firme na proteção da Constituição da República de 1988 e no papel que lhe foi confiado, o de guardião da Democracia.

 

Notas__________________________________

1 “Judiciário e Cidadania”, Ed. Hucitec, Departamento de Ciência Política, USP, 1998, p. 29.

2 Idem, pgs. 153, 193, 217.

3 Idem, pág. 639.

4 Cf. Rosalina Corrêa de Araújo, op. cit., pág. 335.

5 Traduçao de Maria Luiza de Carvalho, Ed. Revan, 1999, pg.24.

6 Cf. Dieter Simon, La independencia del juez, Barcelona, Ariel, 1985, p. 10.

7 Op. cit., p. 32.

8 Portugal e a crise global, Almedina, 2016.