Os indigentes da cidadania

5 de outubro de 2002

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Em Seminário promovido recentemente pelo Conselho da Justiça Federal intitulado “As  Minorias e o Direito”, veio a lume questão relevante e que vem suscitando polêmicas no  âmbito da doutrina jurídica nacional, sobretudo em face do princípio da igualdade, consagrado na Carta Constitucional em vigor.

Falo das chamadas ações afirmativas, objeto de cuidados de algumas leis e projetos de lei, mercê das quais se busca minimizar os múltiplos matizes da desigualdade material ainda existente em nosso País, e que concorrem para a exclusão de grandes parcelas da população de negros, de deficientes e de pobres, da educação de qualidade, do acesso ao trabalho honesto e bem remunerado e, principalmente, da fruição de tudo o que decorre de um tratamento social condigno – falo aqui da dignidade tal como a anteviu Kant ao reconhecer que, se tudo tem o seu equivalente (e, portanto, tudo pode ser trocado) só os seres humanos fogem a essa premissa porque cada um é absolutamente o único e, justamente por isso, cada um é um fim em si mesmo.

Tais ações estão a ser implementadas por conduto das chamadas “quotas” de participação, através das quais se tenta garantir a esse expressivo segmento da sociedade brasileira a possibilidade de, pelo menos, ver garantido o direito a um percentual de vagas nos diferentes graus do ensino formal, de sorte a que possam participar, em igualdade de condições, da desmedida competição que ora se engendra em todas as áreas sociais.

Os detratores desse tipo de “incentivo” utilizam-se de vários argumentos contrários às ações afirmativas, sendo o mais contundente aquele que se afeiçoa ao cânone constitucional garantidor da igualdade de tratamento; tal edito, afirma-se, representaria empeço insuperável para a concessão de benesses a determinados tratamentos sociais, pois, com isso, só restaria a burla ao princípio jurídico da igualdade, conquista que, entre nós, ainda se está a amealhar a cada dia.

Sem prejuízo de averbar o respeito que essa sorte de raciocínio possa merecer, entrevejo nele alguns equívocos; dentre eles, o que reputo ser o principal e que se conecta ao próprio conceito de igualdade, para uns, adstrito tão-somente à paridade de tratamento abstratamente referida na lei enquanto que, para outros, estaria necessariamente vinculado a um igualitarismo de facto, ou seja, a uma igualdade que não se circunscreveria unicamente à letra impessoal da lei, mas que se demonstrasse perceptível e materialmente corporificada, em relação a cada indivíduo, no seio da sociedade.

É nessa última concepção que se aninha a igualdade buscada; aquela que a todos alicia porque se expõe como instrumento único para a construção de uma sociedade menos injusta; igualdade que não se apresta a valer de passatempo na mão de intelectuais ou de elites descompromissadas, ou de sintaxe utilizada para manter a Casa Grande longe da Senzala e, menos ainda, de norma que não faça ressoar em uníssono o coro em favor dos que nada têm e que, justamente por isso, não empalmam qualquer condição para disputar em pé de igualdade, por exemplo, os postos políticos relevantes da Nação; o que se encobre nisso, em verdade, é preconceito que já se enraizou, malsão, em muitas das nossas consciências.

A vetusta segmentação dos direitos de primeira, segunda e terceira gerações, dessa sorte, deve ser vista com a parcimônia necessária em moldes a que se possa entender que, a liberdade (direito de primeira geração) está necessariamente vinculada à igualdade (direito de segunda geração); esses dois direitos, sob o influxo da indissociabilidade, devem integrar um mesmo núcleo de proteção, qual seja: o da liberdade que venha necessariamente conectada à dignidade (retorno a Kant) e ao exercício pleno das potencialidades individuais e sociais, sem os obstáculos resultantes do preconceito visceral e burro.

São os indigentes da cidadania que, sem terem a possibilidade de disputar, de igual para igual, os grandes e próprios espaços que o estado democrático de direito reserva aos seus cidadãos, têm de suportar ainda a pecha hipócrita de serem despreparados, quando despreparados, em verdade, somos todos nós, partícipes impassíveis dessa melancólica história, repetitiva e angustiante, que só envergonha a todos quantos vislumbre o ser humano na sua acepção mais abrangente, isto é, como aquele que pode, a um só tempo, plasmar pegadas inesquecíveis na superfície rugosa da lua e, do mesmo jeito, ofertar singelamente abrigo a uma criança desamparada ou abrir mão de um pouco de sua “paz”, em homenagem solidária à dor do semelhante.

À vista dessa indiscutível e perversa realidade que ainda hoje nos permeia, enxergarem os intérpretes do Direito afronta ao princípio constitucional da igualdade no fato da existência de previsão legal consagradora de tratamento jurídico diferenciado em favor dos integrantes de alguns dos estamentos da sociedade, é tentativa de manter os juristas aferrados tão-só à justiça da retribuição, perspectiva, por sinal, bastante limitada do ideal de Justiça.

Esse vezo é ainda mais inquietante quando se sabe que, economistas e cientistas políticos – os mais importantes arautos da justiça distributiva nos dias que correm – já se aperceberam que só essa última face desse valor capital que sempre esteve a orientar a civilização e o progresso, é que se sintoniza por inteiro com a busca permanente da concretização do bem comum.