Para que o natural não fique imutável

31 de maio de 2009

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O pensamento é de Brecht: “Não digam que isso é natural, porque, dizendo-o, há o risco de torná-lo imutável”. O oportuníssimo seminário do jornal “Valor Econômico”, realizado em Brasília, há poucos dias, do qual participei como um dos painelistas, certamente vai contribuir para que a inoportuna megalicitação dos transportes interestaduais comece a ser questionada como algo completamente fora do natural. Sobre o tema e com o título “Desmonte”, em 10 de fevereiro de 2008, no jornal “O Globo”, já havia emitido opinião assim resumida: “Tudo está encaminhado para o réquiem do maior e mais barato sistema de transporte coletivo rodoviário do mundo que, se ocorrer, ficará na história do País como um ato fronteiriço entre a insanidade política e a insensatez econômica”.

Se ocorrer? Não, Senhores, está ocorrendo.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres — ANTT, agência governamental a quem foi deferido o exercício do poder concedente desses serviços, nesse processo, está com as mãos amarradas. Ela mesma confessou que se encontra algemada ao ouvir sua área jurídica, constrangida, dizer que nada podia ser feito para evitar tal desastre, porque um ato presidencial havia determinado, há dez anos, o fim dos contratos das transportadoras, em 7 de outubro de 2008, tornando-os improrrogáveis embora prorrogáveis fossem. Confessa a área jurídica da ANTT que “…ininteligível é a retirada dessa expectativa que consta expressamente no contrato, violando, assim, o princípio constitucional do ato jurídico perfeito”. No entanto, “o Poder Executivo, exercido pelo Presidente da República (art. 76 da CF/88), deixou explícito, ao editar o Decreto no 2.521, de 1998, que não é conveniente nem oportuno que se prorroguem os contratos firmados sob a égide do art. 94 do Decreto no 952, de 1993 (…). Assim, enquanto não houver alteração dessa ordem legal, com a edição de novo dispositivo revogando ou alterando seus termos, há de prevalecer o que foi estabelecido no Decreto Presidencial”. Concluindo, lamentou: (…) Ante o exposto… “ainda que possa soar estranho, não pode a Administração da  ANTT  autorizar  a prorrogação desses contratos”.

A improrrogabilidade e sua [inexistente] fonte

O Parecer da área jurídica da ANTT deixa claro que o art. 98 do Decreto no 2.521/98 é violador do princípio constitucional do ato jurídico perfeito ao tornar improrrogável o que já fora deferido como prorrogável. Para a administração pública parece natural que o decreto paralise a Constituição. Mas não é só por atingir um ato jurídico perfeito que o contundente art. 98 agride a ordem jurídica.  O exame desse art. 98 do Decreto no 2.521/98 —  que gerou essa pandemia licitatória — mostra que ele busca sua justificação no atendimento ao disposto no art. 42 da Lei no 8.987/95 (sic), isto é, ele está regulamentando a norma transitória do art. 42 para a área dos transportes interestaduais. A proibição da prorrogação, porém, não tem registro algum no art. 42. Esta norma transitória dizia e continua dizendo que as delegações anteriores consideravam-se válidas pelo prazo constante dos respectivos contratos ou atos de outorga. Quando a Lei no 8.987/95 trouxe ao mundo jurídico essa norma transitória de confirmação das delegações a ela anteriores, já existiam centenas de contratos celebrados na área interestadual e internacional com origem no art. 94 do Decreto no 952/93, com cláusula de prorrogação de quinze anos; o mesmo direito já estava assegurado mesmo às outorgas efetuadas ainda sem  contratos por celebrar. Não existe a palavra improrrogabilidade no art. 42 e, por isso mesmo, a norma do Decreto no 2.521/98 extraiu do texto legal uma proibição que ali não está expressa nem implícita. O Presidente da República, quando expede regulamentos, só pode fazê-lo para fiel execução da lei (CF/88, art. 84, IV). Logo, o art. 98, como o 99, que lhe dá complemento, é francamente exorbitante do dever regulamentar e, por isso, indisfarçavelmente inconstitucional. Há, portanto, nessa regra que diz ter sido expedida em atendimento (sic) ao art. 42 da Lei no 8.987/95, uma dupla violação da Constituição, porque o decreto infiel à lei fere também o princípio da separação de Poderes. Nos contratos, havia dois prazos, que foram considerados válidos pelo art. 42 cuja leitura foi distorcida pelo decreto.

A [falsa] premissa da ilegitimidade

O que ocorreu e está ocorrendo, na verdade, decorre de um festival de premissas de justificação extremamente duvidosas e até mesmo preconceituosas. A primeira delas diz respeito a uma suposta ilegitimidade das permissões por não terem origem em processo licitatório, embora tenham elas sido constituídas em época em que não se cogitava de tal procedimento como preliminar da contratação. Criou-se uma histeria (apenas quanto a ônibus) de que, sem passar pela pia batismal da licitação, a atividade não pode entrar no “reino dos céus”. Temos lido, em manifestações de Tribunais da maior hierarquia, como o STJ, afirmativas de que as permissões de ônibus não gozam de proteção alguma por se tratarem de delegações ilegítimas. Não podem reivindicar tarifas nem invocar a regra clássica das delegações acerca do equilíbrio da equação entre receitas e encargos. Nessa linha, o STJ disse, e o repetiu várias vezes, em ações do Estado de Minas Gerais[1]. As permissionárias, mesmo lesadas pelo Poder Público, têm menos direitos que empregados sem carteira assinada. Estes, pelo menos, podem pedir socorro à Justiça do Trabalho e nela sua pretensão é invariavelmente reconhecida. Em razão desse pecado original de investidura no serviço público, permissão não tem direito a nada. Os Tribunais parecem ignorar que esse [inexistente] pecado — se pecado fosse — teria contaminado as concessões de serviços públicos da maior importância em nosso País. Todas tiveram origem contratual, quer dizer, em contratos sem prévia licitação, como as concessões de estradas de ferro — de meados do Séc. XIX — com prazo de  noventa anos; as de energia elétrica e bondes, do começo do Séc. XX,  contratadas por sessenta anos; a aviação — a Varig é de 1927 —, que nunca passou pela experiência licitatória; também os telefones, os portos, a radiodifusão. Esta é o máximo: outorga do Presidente da República, não-renovação somente com 2/5 do Congresso em votação nominal (CF/88, art. 223). Nem por isso todo o sistema concessional brasileiro é ilegítimo. A lei do tempo protegia tais atos, e o tempo, inexorável tempo que tudo consolida ou apaga, é o grande legitimador de situações inicialmente instáveis, precárias ou mesmo contrárias à ordem jurídica. O Brasil de hoje, nascido da violação do Tratado de Tordesilhas, é um país legítimo mesmo perante o Direito Internacional. Por que, então, permissões de ônibus, por não terem origem em procedimentos licitatórios, em época que estes não eram exigidos, são ilegítimas, enquanto empresas de energia elétrica, de telefones, de aviões etc. não são?

Prorrogação como violação da Constituição

Por esse [des]fundamento, centenas de ações, de Norte a Sul, promovidas pelo Ministério Público, Federal e Estadual, copiadas umas das outras, perturbam a estabilidade das relações entre Poder Público e concessionárias ou permissionárias. Trata-se de uma espécie de jihad, de uma guerra santa, em que se sustenta que essas delegações, por serem anteriores à Constituição e de origem espúria [isto é, sem prévia licitação], não podem ser prorrogadas. Quem ler a Constituição, desarmado, sem partido, sem compromisso ideológico, não conseguirá fazer tal leitura do texto máximo.  O que a Carta diz é que, a partir de 5 de outubro de 1988, todas as permissões e concessões serão contratuais e  deverão, sempre, ser precedidas de licitação; a permissão, antes desprotegida, passa a equiparar-se às concessões.  Resumindo: o texto constitucional estabeleceu que o ingresso no serviço público só pode ser efetuado pela porteira da licitação e impôs a forma contratual tanto para concessões como para permissões (CF/88, art. 175). A Constituição, como todas as leis, dispõe para o futuro. Ela não apaga a ordem jurídica anterior, criando um vazio jurídico no espaço social. Nenhuma permissão anterior à Carta podia ter violado algo que não existia. Para evitar a violência da retroatividade, quase sempre maligna, a própria Carta dos Direitos estabelece que a lei protegerá o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido (CF/88, art. 5o, XXXVI).  Para não ser recepcionada a lei antiga, é preciso que ela seja claramente incompatível com o novo texto.  No fundo, a recepção, que é a regra, nada mais traduz que um princípio constitucional mais amplo, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, o princípio da segurança jurídica. Em segundo lugar, é a própria Constituição que, no parágrafo único do mesmo art. 175, estabelece que à lei incumbe dispor sobre o caráter especial do contrato de concessão e permissão e de sua prorrogação. A Lei no 8.987/95, que regulamentou a Constituição, por sua vez, complementa que a cláusula de prorrogação é essencial e, portanto, compulsória, em todos os contratos. Logo, a regra é simples: licitar para ingressar; prorrogar para permanecer, de modo que quem licita, não prorroga e quem prorroga, não licita. Por que então prorrogações de permissões ou concessões de ônibus não podem ser efetuadas e são execradas desde os juízes até alguns tribunais?  Insisto: por quê?

Prorrogação é faculdade

Para pôr pá de cal no assunto, outros sustentam que a cláusula, mesmo legal (Lei no 8.987/95, art.  23, XII) e constitucional (CF/88, art. 175, parágrafo único, inc. I) — e o li numa sentença da Justiça Federal de Brasília — tem a natureza de mera faculdade, ato discricionário cuja oportunidade e conveniência dependem do arbítrio dos dirigentes da administração. O poder concedente não precisa de motivos para negá-la. Basta um mal-querer; um despertar de mau humor ou o desejo de favorecimento a padrinhos ou a amigos. Quem sustenta que a cláusula prorrogatória não vale nada rasga a teoria geral do Direito e ignora a existência do § 2o do art. 6o da Lei de Introdução ao Código Civil. Ali está positivado o direito condicional como direito adquirido. O direito condicional não é uma expectativa de direito [que não é direito] mas, como diria o esquecido grão-mestre Pontes de Miranda, um direito expectativo [que direito é]. O direito condicional existe desde sua constituição, assim como o nascituro que possui direitos mesmo antes de nascer. O problema está na condição,  para que o direito se liberte da condição e encontre sua realização plena. Comparo o direito condicional a um barco preso ao cais pelas suas amarras. Imagino que a condição é que permite a desatracação. O barco só navega quando as amarras da condição que o prendem ao cais são desatadas. Mas o barco lá está, já existe, à espera da ordem de partir quando as condições previstas ocorrerem. Assim, quando alguém contrata e o contrato contém o prazo inicial e o de prorrogação [condicional], o contratante tem ciência de que, implementando a condição [o bom desempenho], não está sujeito ao arbítrio do outro contratante. O implemento da condição liberta o direito, já adquirido, cujo exercício está simplesmente travado. Nesse passo, peço licença para sugerir a leitura de Parecer de Ives Gandra da Silva Martins acerca da cláusula de prorrogação dos contratos de concessão do Estado do Rio Grande do Sul[2]. Ali o tema dos direitos condicionais está claramente explicado com apoio em Clóvis Bevilaqua, Caio Mário e outros mestres da matéria.

As algemas e como abrí-las

O Presidente Fernando Henrique não tinha bola de cristal para saber que sua decisão iria explodir no epicentro de uma crise internacional, cujo último precedente, de 1929,  abalou a economia mundial tal como esta. Mesmo que crise alguma tivesse existido, nenhum administrador pode afirmar, dez anos antes, que é inconveniente e inoportuno que, no futuro, tal ou qual ato da administração venha a ser ou não praticado. Oportunidade e conveniência constituem um espaço de liberdade do administrador e não um ato de futurologia. Oportunidade diz respeito ao momento presente, jamais ao momento futuro. Conveniência, por sua vez, se mede pelo metro do interesse público sobre uma situação atual. Administração não é premonição. O art. 42 da Lei no 8.987/95 considerou válidos os contratos e atos de outorga anteriores pelo prazo neles estabelecidos. Cortar o prazo de prorrogação como se não fosse prazo fere a lógica mas, considerado natural até agora, transformou-se numa lógica aparentemente imutável. O Presidente Fernando Henrique algemou o Presidente Lula e este transferiu as amarras para os pulsos da ANTT. A chave, capaz de abrir as algemas, não está, porém, no Supremo Tribunal Federal, que já as regulamentou para evitar abusos e espetáculos pirotécnicos de poder policial. Está no bolso do Presidente da República e nas gavetas do Congresso Nacional. O Presidente, por decreto, para fiel execução da lei (Constituição, art. 84, IV) pode revogar o art. 98 do Decreto no 2.521/98 e repristinar o anterior, o art. 94 do Decreto no 952/93; ou o Congresso,  por decreto legislativo, tem competência para sustar o ato normativo do Poder Executivo, exorbitante do poder regulamentar (Constituição, art. 49, V). Ou um ou outro tem a chave da solução. A questão está em que o clamor do fato tem de subir as rampas de acesso ao poder.

Quando a indústria automobilística acordou com seus pátios congestionados de automóveis sem compradores, o Presidente a escutou e a socorreu. Um automóvel é ele e centenas de circunstâncias, como poderia dizer Ortega y Gasset. O mesmo ocorreu com a indústria de motocicletas, concorrente direta dos ônibus urbanos. Quando as fábricas anunciaram que a demanda estava sendo drasticamente reduzida, o Presidente as acudiu. A construção civil, em função do emprego, também foi ajudada. Eletrodomésticos, igualmente. Os bancos tiveram liberados substanciais recursos para impedir que a crise no crédito paralisasse a economia do País. Por óbvio, nem por isso os juros ficaram menores. O Presidente tomou sábias e rápidas decisões para contornar os efeitos da crise internacional na economia interna. Pode ser que o ruído de muitos motores do sistema interestadual de ônibus seja escutado antes que boa parte deles pare definitivamente e o silêncio caia sobre as garagens enlutadas. Se isso é natural, será imutável. Depende de nós dizer não.

No Seminário do “Valor Econômico”, ao fim de minha participação, invoquei o poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, quando escreveu “No caminho com Maiakovski”, um poema  sobre o tema da omissão, do silêncio, do medo, da inércia… e de suas consequências.

“Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta e não podemos dizer mais nada.”

Espero que ainda possamos dizer alguma coisa.


[1] RESP 443796 / MG e mais uma dúzia de Acórdãos dentro dessa linha

[2] Entre outras publicações, pode ser lido em “Questões de Direito Administrativo”, Ives Gandra da Silva Martins, Obra Jurídica Editora, 1999, Florianópolis, págs. 147/163