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Penhora, depósito e prisão do devedor

5 de abril de 2001

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“E se algum devedor, depois de ser condenado em alguma quantia de dinheiro, pão, vinho ou outra semelhante cousa, que se costuma contar, pesar, ou medir, alhear seus bens em prejuízo do vencedor, por neles se não fazer execução, seja preso, e o não soltem até cumpridamente satisfazer ao vencedor, sem poder fazer cessão” (Livro III, Título LXXXVI, § 13, Ordenações Filipinas, 1603).

A doutrina e a jurisprudência pátrias são férteis em debater e decidir casos em que o devedor aliena ou onera os bens que se encontram penhorados com o fim de garantir a satisfação do direito do credor, no entendimento quase unânime de que os negócios jurídicos realizados (v.g., compra e venda, promessa de compra e venda, doação, etc.) são ineficazes em relação ao credor, embora válidos e eficazes em relação aos terceiros contratantes1. Padecem os debates, no entanto, de um rigoroso enquadramento da conduta do devedor que aliena ou onera o bem penhorado, esquecendo-se os operadores do Direito de que o mesmo, normalmente, se encontra na posição de depositário do bem com todas as obrigações e deveres daí decorrentes. Indaga-se, portanto, se o devedor-depositário do bem penhorado encontra-se sujeito à prisão, em razão da alienação ou oneração?

A análise da questão deve se iniciar pela responsabilidade patrimonial do devedor perante seu credor, posto que “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei” (CPC, 591). A responsabilidade é patrimonial, não mais sujeitando a vida ou a pessoa do devedor à satisfação de suas obrigações; assim, o patrimônio (entendido em sua acepção jurídica, como o universo de bens, materiais e imateriais, de valor jurídico-econômico), é o limite da responsabilidade do devedor. O art. 612 do Código de Processo Civil, a seu turno, estabelece que “realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados”. A penhora individualiza, no universo patrimonial do devedor, o bem necessário e suficiente à satisfação do crédito, revelando-se ato de extrema importância em todo o processo de execução.

Citado e deixando o devedor de pagar, o oficial procederá à penhora de “tantos bens quanto bastem para o pagamento do principal, juros, custas e honorários advocatícios”, na dicção do art. 659 do Código de Processo Civil. A penhora é um ato processual complexo, subordinado a exigências legais de tempo, modo e com objeto próprio, a fim de ser válida e eficaz em seus contornos jurídicos.

Rege o art. 664 do Código de Processo Civil que “considerar-se-á feita a penhora mediante a apreensão e o depósito dos bens”, sendo elemento constitutivo do auto de penhora  “a nomeação do depositário dos bens” (CPC, 665, IV). A preocupação do legislador sobressai de ambos os dispositivos, voltada para a preservação da integridade jurídico-material dos bens que sofreram a constrição judicial, posto que, doravante, servirão à satisfação do direito do credor, seja por transformação (venda em hasta pública), seja pela adjudicação ou usufruto. Pretende a lei que o bem penhorado seja destinado a cumprir o comando insculpido no art. 591 do Código de Processo Civil, ou seja, a responder patrimonialmente pelas obrigações do devedor.

O depósito dos bens penhorados se apresenta como elemento intrínseco ao próprio ato finalístico da penhora; penhora sem depósito é penhora sem garantia eficaz, permanecendo o bem desguarnecido de qualquer proteção quanto às investidas do próprio devedor ou de terceiro2. Enquanto que o ato de penhora se destina a separar, apreender e afetar parte do patrimônio do devedor, o ato de depósito faz nascer para o depositário (o próprio devedor ou terceiro), obrigações materiais de guarda e proteção inerentes ao depósito. Ao invés de representar mera formalidade procedimental, o ato de nomeação do depositário do bem penhorado se revela de extrema importância, sujeitando o infrator das obrigações legais pertinentes, a responder especificamente pela ofensa causada, sem se confundir com o andamento do processo de execução e satisfação do crédito (fraude à execução).

O devedor-depositário encontra-se ungido ao chamado “depósito necessário”, previsto no inc. I do art. 1.282 do Código Civil, que é aquele “que se faz em desempenho de obrigação legal”, posto que decorrente da norma genérica trazida no art. 666 do Código de Processo Civil, que estabelece ser o devedor o depositário, salvo “se o credor não concordar”3. Cabe, desta forma, ao proprietário do patrimônio afetado, a guarda e conservação desta parcela que sofreu a penhora, como interessado maior em sua preservação. A regra atende, ainda, à determinação judicial de que “a execução se fará pelo modo menos gravoso para o devedor” (CPC, 620), sabendo-se que a nomeação de terceiro como depositário do bem penhorado implicará, na maioria das vezes, em despesas inerentes ao ato4.

A distinção dos efeitos da conduta do devedor, pessoalmente, e em relação ao credor e a terceiros, quando aliena ou onera o bem penhorado, deve ser aprofundada, eis que traz conseqüências diversas para o ato e para a própria pessoa do devedor. É cediço que a alienação ou oneração do bem constrito judicialmente não tem eficácia jurídica em relação ao credor, que permanece com direito de preferência sobre o bem disposto indevidamente pelo devedor. Embora o devedor permaneça com a livre disposição dos bens, tanto que o ato de alienação ou oneração é válido em relação ao contratante (adquirente ou beneficiário), há de se considerar que tal ato acarreta maior demora e maior custo ao credor na solução da demanda executiva, posto que o terceiro poderá opor embargos na defesa do negócio jurídico realizado com o devedor, impondo ao credor o ônus de defender o ato judicial. Além disso, é provável que a oposição dos embargos acarrete a suspensão do processo de execução, conforme dispõe o art. 1.052 do Código de Processo Civil, segundo o qual “quando os embargos versarem sobre todos os bens, determinará o juiz a suspensão do curso do processo principal; versando sobre alguns deles, prosseguirá o processo principal somente quanto aos bens não embargados”. A conduta do devedor é causadora direta e imediata de tais efeitos processuais negativos, suportados exclusivamente pelo credor.

O sistema jurídico volta-se com rigor para a repreensão de tal comportamento do devedor-depositário, pois infrator do comando insculpido no art. 179 do Código Penal, que estabelece o seguinte tipo penal: “fraudar a execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas: pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa”, iniciando-se a ação penal por iniciativa privada (queixa). A conjugação da reprimenda penal em razão do comportamento do devedor desenvolvido perante o Juízo Cível, torna claro que o sistema reprime tal comportamento, sujeitando o devedor infrator às penas da lei. Além disso, o devedor também ofende a norma processual civil trazida no art. 600, inc I, do Código de Processo Civil, segundo a qual “considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato do devedor que frauda a execução”. O foco legislativo é duplo, um de natureza penal, outro, processual civil, sendo que uma conseqüência não traz obstáculo ao reconhecimento da outra. O art. 601 do Diploma Processual, a seu turno, esclarece que o devedor indigno sujeita-se à multa, “sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material”. Necessário, assim, que o operador do Direito esteja cônscio das múltiplas facetas que o ato de alienação ou oneração do bem penhorado pelo devedor acarreta ao mesmo, fazendo com que a primazia do ato de constrição seja respeitado.

No debate jurídico hodierno, existe preocupação crescente em se banir do sistema judicial a possibilidade de se proceder à prisão do devedor por dívida, salvo as hipóteses constitucionalmente previstas do devedor de obrigação alimentícia e do depositário infiel (CF, 5º, LXVII). Não se prega um retorno anacrônico aos tempos em que o devedor respondia pessoalmente pela obrigação não cumprida, isto é, com a sua vida, o seu corpo ou a sua liberdade. O que se pretende é tornar claro que o sistema jurídico positivo é perfeitamente definido em seus contornos e em sua extensão, devendo estes serem explorados inteiramente, a fim de que os comandos normativos tenham plena eficácia na vida prática dos cidadãos. Além disso, a plena atuação do Direito, em sua função pedagógica, deve ser enfatizada, de molde a servir como reconhecimento aos justos e como admoestação aos faltosos.

Ao proceder à alienação ou oneração do bem que se encontra penhorado, o devedor-depositário vergasta a própria ordem jurídica; põe em cheque a seriedade da punição prometida ao agente do ato que atenta contra a “dignidade da justiça”, voltada esta para a efetiva satisfação do direito previamente reconhecido5. O devedor-depositário, assim, deve responder pessoalmente pela infração aos deveres de depositário, eis que se revela infiel às suas obrigações legais, sem prejuízo da declaração judicial de ineficácia do ato de disposição6.

O art. 1.287 do Código Civil estabelece que, “seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a faze-lo, mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos (art. 1.273)”. O art. 601 do Código de Processo Civil pune o devedor indigno com a multa, deixando azo às outras “sanções de natureza processual ou material”, sendo que esta última é a própria pena de prisão estabelecida no citado artigo do Código Civil, sem prejuízo da perseguição criminal. A dificuldade que pode se apresentar, no caso concreto, é a identificação do momento para se decretar a prisão, posto que a situação prática da disposição do bem imóvel e do bem móvel são veiculadas no processo através de mecanismos distintos e oportunidades próprias.

O art. 593 do Código de Processo Civil se utiliza de dois verbos para caracterizar a fraude à execução, quais sejam, “alienação” e “oneração”, de molde a incluir a conduta do devedor no gênero maior “disposição” dos bens. Alienar e onerar são negócios jurídicos de ontologia e efeitos diversos, posto que a alienação faz retirar o bem do patrimônio do devedor, transferindo-o a terceiro, enquanto que a oneração mantém o bem incólume, podendo retirar do devedor apenas a utilização de alguma de suas qualidades (v.g., direito obrigacional de uso, direito real de garantia, etc.). Em qualquer delas, no entanto, há transferência da posse do bem, seja da posse direta (v.g., locação, comodato), seja da posse indireta (v .g. hipoteca), mantendo o devedor a propriedade intacta no caso de oneração, e despojando-se dela, no caso de alienação. Para os fins de ser considerado como depositário infiel, o devedor-depositário apenas incorre nas sanções legais prescritas, na hipótese de alienação do bem, posto que, enquanto simplesmente onerado, continua possuindo indiretamente o bem, exercendo controle finalístico de sua utilidade, embora subordinado às obrigações contratuais assumidas para com terceiro (v.g., o locatário, o comodatário, o credor hipotecário, etc.).

Acentue-se, mais uma vez, que se pretende distinguir os efeitos do ato do devedor e os efeitos da conduta do devedor: enquanto que a conseqüência jurídica é a mesma, ou seja, o ato de oneração é ineficaz em relação ao devedor, a circunstância de que o devedor continua depositário do bem (ainda que de sua posse indireta), faz com as repercussões negativas para o credor sejam de natureza e gravidade diversas e menores, quando comparadas com a alienação do bem penhorado.

O depositário exerce posse sobre o bem sujeito aos deveres de guarda, proteção, conservação e exibição, obrigando-se a devolve-lo; é para o exercício desta posse que é nomeado depositário. A repreensão prisional do sistema jurídico visa tornar efetivo estes deveres de depositário. O depositário, mesmo exercendo a posse indireta no caso de simples oneração, permanece com os deveres de vigilância sobre o bem onerado. Os direitos do possuidor direto do bem onerado, em caso de realização de hasta pública, não poderão ser opostos ao credor ou ao arrematante, resolvendo-se em obrigação pessoal exclusivamente em relação ao devedor. No caso da oneração se dar através de direito real de garantia (penhor, hipoteca, alienação fiduciária, anticrese), sua averbação poderá ser feita, mesmo quando já constar inscrita a penhora (CPC, 659, § 4º), podendo se revelar insubsistente a garantia real que o terceiro pretendia obter com a realização do negócio (CC, 859), assim como se dará com a própria alienação7. A oneração pode vir a ser conhecida em qualquer momento após a realização do negócio jurídico que lhe deu causa; no entanto, permanecendo o devedor na posse indireta do bem onerado, não poderá ser reconhecido como depositário infiel, sabendo-se que a posse direta exercida pelo beneficiário da oneração (locatário, comodatário, etc.), não poderá opor sua posse ao credor.

Quanto à alienação do bem, sua repercussão negativa para o desenvolvimento do processo de execução é muito maior, havendo interesse e permissão do sistema jurídico para que o devedor faltoso seja pessoalmente responsável pelo ato de disposição indevida do patrimônio penhorado. Embora o bem penhorado continue integrando o patrimônio do devedor e este continue sendo seu proprietário e, como tal, senhor dos direitos inerentes à propriedade (CC, 524), a penhora torna o bem preferencialmente destinado à satisfação do direito do credor (CPC, 612). A penhora reduz consideravelmente o poder de disposição do bem, colocando o credor em uma relação de preferência sobre os destinos daquele bem do devedor. A verificação do momento em que se dá a infração dos deveres de depositário, em se tratando de bem imóvel, é aquela em que se constata a averbação do negócio jurídico de alienação no registro imobiliário. A propriedade, no sistema jurídico brasileiro, por ato entre vivos, somente se adquire pelo registro (CC, 530, I), havendo mero direito obrigacional enquanto não registrado o título de aquisição. Mesmo que o devedor tenha alienado o bem penhorado, mas o instrumento do negócio jurídico não tenha sido averbado, sua eficácia para com terceiros é absolutamente nenhuma, permanecendo intocável a penhora realizada e inscrita (CPC, 659, § 4º). As obrigações decorrentes do depósito do bem penhorado, assim, continuam a existir entre o credor e o devedor, mesmo que este não mais exerça, faticamente, o poder de guarda e vigília sobre a coisa, cuja posse direta foi transferida, pelo ato de alienação, para terceiro. Este terceiro, às escâncaras, não poderá opor sua posse ao credor, que terá livre acesso ao bem para os fins de avaliação e hasta pública.

Ajustam-se as hipóteses que podem ocorrer: o devedor-depositário onera o bem penhorado, mas não responde como depositário infiel, eis que continua exercendo a posse indireta sobre o bem; o devedor-depositário aliena o bem penhorado, respondendo como depositário infiel, mesmo que o negócio jurídico não tenha sido averbado no registro de imóveis. Em ambos os casos, o ato de disposição é ineficaz em relação do direito do credor, por representar fraude à execução (CPC, 593, II), prosseguindo a execução e a hasta pública sobre o bem penhorado; estando a penhora inscrita (CPC, 659, § 4º), os requisitos de má-fé e insolvabilidade do devedor são desnecessários, nos termos do art. 240 da Lei 6.015/73, segundo o qual “o registro da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer alienação posterior”8.

A oneração ou alienação de bem móvel penhorado é de mais fácil apreensão. Sua verificação, normalmente, se dá quando se procede à avaliação para os fins de hasta pública e o bem não é encontrado na posse do devedor-depositário. Nesse caso, instado a apresentar o bem e não o fazendo no prazo assinado pelo juiz, caracterizada está a infração dos deveres de depositário, servindo a certidão do oficial de justiça como prova suficiente de tal desmando. A apresentação posterior, caso ainda interesse ao processo (não tendo o objeto da penhora sido substituído por outro, por exemplo), suprirá a falta anterior, sem escusar o devedor, no entanto, de responder pessoalmente pelo ato infrator.

De qualquer forma, para se reconhecer que o devedor é depositário infiel, necessário que o juiz declare que o ato de disposição foi feito em fraude à execução (CPC, 593). A decisão judicial assume importância crucial para que o devedor seja responsabilizado como depositário infiel, posto que, enquanto não declarada a fraude, o devedor continua livre para dispor de seu patrimônio, inclusive do bem penhorado, eis que proprietário (CC, 524). É a alienação fraudulenta, ou seja, de forma a causar prejuízo a satisfação do direito do credor, que gera a responsabilidade do depositário faltoso, sem impedir a decretação de ineficácia relativa do ato (em relação ao credor)9. O devedor pode alienar ou onerar o bem penhorado, com o intuito, inclusive, de saldar seu débito para com o credor através da percepção do produto da venda ou oneração; a fraude se verifica quando, após o ato de disposição, o devedor deixa de proporcionar garantia adequada ao credor, desprovendo o Juízo de bem que servirá aos atos de arrematação ou, quiçá, de adjudicação. Não haveria qualquer invalidade do ato em que o devedor viesse a dispor do bem penhorado e requeresse a substituição da penhora pelo depósito do dinheiro proveniente do negócio jurídico realizado, obedecendo, inclusive à gradação prevista no art. 655, I, do Código de Processo Civil. É o comportamento fraudulento que gera a responsabilidade pessoal pelo ato de disposição.

A decisão judicial tem natureza declaratória, posto que o pedido incidental do credor é ver declarada a ineficácia do ato de disposição em relação a si próprio, pouco lhe importando as relações jurídicas encetadas pelo devedor para com o terceiro beneficiário do negócio jurídico realizado. Sendo reconhecida a ineficácia por decisão judicial, o credor prosseguirá nos ulteriores atos do processo, até a realização de hasta pública. Sendo declaratória, os efeitos da decisão retroagem à data do ato de disponibilidade do bem, alcançando, inclusive, eventuais frutos produzidos no período.

Na mesma decisão que declarar ser o ato fraudulento, o juiz decidirá, fundamentadamente (CF, 93, IX), quanto a aplicação da pena de prisão ao devedor depositário infiel, nos termos autorizativos do art. 601 do Código de Processo Civil, não sendo necessária a provocação da parte interessada, eis que a análise do comportamento do devedor encontra-se ungido aos deveres do juiz na condução do processo de execução, conforme estabelece o art. 499 do mesmo Código, inserindo-se a medida como decorrência maior do dever processual que lhe compete no sentido de “prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça”, na dicção normativa do inc. III do art. 126 do Código, aplicável, por similitude, ao processo de execução (CPC, 598)10. Não se há de confundir, conforme acentuado acima, o comportamento processual do devedor depositário infiel, com o comportamento penal de fraudar a execução; o foco de atenção e interesse do juiz é diverso, devendo, no primeiro caso, contentar-se em averiguar a vontade do devedor em proceder à disposição do bem penhorado, independente do dolo (v.g., causar prejuízo, subtrair-se a ação da Justiça, etc.), elemento essencial do delito, de análise cogente no segundo caso. A prisão do devedor depositário visa a resguardar a maestria do ato judicial de penhora, com vista à satisfação do direito do credor através da destinação de parcela do patrimônio do devedor a fim específico; não tem por escopo a imposição de pena de natureza criminal (multa ou restrição da liberdade), cuja ação penal está subordinada ao oferecimento de queixa pelo ofendido, mas sim, de natureza processual, visando a eficácia prática do processo11. Por esta razão, deverá o Juiz decidir, a questão referente à responsabilidade do devedor por sua conduta enquanto depositário infiel, na mesma oportunidade em que declarar a ineficácia do ato de alienação, não podendo postergar, para fase posterior do processo, a decisão quanto à aplicação da pena de prisão (CPC, 601: “sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material”). A simultaneidade de ambas as decisões visa a preservar a finalidade da prisão processual, qual seja, a preponderância do ato estatal em face da vontade fraudulenta do devedor.

O prazo da prisão do devedor depositário vem regulado no art. 1.287 do Código Civil (“não excedente a um ano”) e no § 1º do art. 902 do Código de Processo Civil (“cominação da pena de prisão até 1 ano”). Observe-se que a pena de prisão, de natureza criminal, prevista no art. 179 do Código Penal, para a hipótese de “fraude à execução”, situa-se no intervalo mínimo de 6 meses e máximo de 2 anos. A dicotomia de respostas não vicia o fundamento da prisão: resguardar a utilidade final do processo e punir aquele que foi investido de um múnus público. Fica ao alvedrio do Juiz a estipulação do prazo certo da prisão processual, considerando os prejuízos causados, o bem penhorado, o momento em que se deu a conhecer a infração processual, a possibilidade física e jurídica de reaver o bem alienado, etc.

A decisão que decreta a prisão tem natureza constitutiva, pois visa a modificar o estado de liberdade do devedor; além disso, se apresenta como interlocutória (CPC,162, par. 2º), desafiando recurso de agravo (CPC, 522). O período de prisão deverá ser cumprido nas dependências da própria delegacia policial, posto ser processual e não criminal, embora seja definitiva e não provisória, para os fins processuais penais. Sua execução ficará subordinada ao transcurso do prazo para a interposição do recurso cabível, no caso, 10 (dez) dias, devendo ser cumprida através de mandado, por Oficial de Justiça. O recurso será julgado por Câmara Cível do Tribunal de Justiça, seja para apreciar o agravo de instrumento ou o habeas corpus, eis que a matéria é civil, em todos os seus contornos.

Em suma, ao assumir a responsabilidade de depositário, o devedor deverá ter em mente as responsabilidades inerentes à função pública de que se fará executor, com obrigações de guardar, conservar, vigiar, exibir e devolver o bem penhorado; faltando a quaisquer delas em razão de ato negocial de alienação do bem, que será ineficaz em relação ao credor, responderá pessoalmente pela infração processual, sujeito à pena de prisão civil.

Notas __________________________________________________________________________________

1 Ovídio Baptista da Silva esclarece que “a penhora torna ineficaz, em relação ao credor penhorante, o ato de alienação que o devedor praticar do bem penhorado, de modo que a atividade executória prosseguirá sobre o bem afetado penhora mesmo contra o adquirente” (cf. Curso de Processo Civil, Vol. II, pág. 61, 1990, Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre). No mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco leciona que “no tocante à fraude de execução, pode-se dizer pacífica a doutrina brasileira atual, quando afirma tratar-se de causa de ineficácia do ato dispositivo” (cf. Execução Civil, pág. 252, 3ª ed. 1993, Malheiros, São Paulo). Por fim, pode-se citar Yussef Said Cahali, acentuando que “na realidade, doutrina e jurisprudência, com maior precisão técnica, estão consolidadas no sentido de qualificar o ato praticado em fraude de execução, como sendo inoperante ou ineficaz em relação ao credor exeqüente, para deduzir daí a possibilidade de serem excutidos os bens assim alienados, com o objetivo de ser satisfeita a dívida” (cf. Fraude Contra Credores, pág. 392, 1989, Ed. RT, São Paulo).

2 “É nula a penhora feita sem nomeação de depositário. E a gravidade da falha caracteriza nulidade absoluta, reconhecível e decretável de oficio, o que esta Câmara providencia em fazer”. (ac. un. , 3ª Cível, TARS, de 14.02.90, ap. 189.101.843, rel. Juiz Sérgio Gischkow Pereira, JTARS 77/130).

3 Barbosa Moreira, em sua obra “O Novo Processo Civil Brasileiro”, arremata que “os bens podem ficar sob depósito nas mãos do próprio executado, se o exeqüente concordar (art. 666, caput); em semelhante hipótese, assume aquele as responsabilidades inerentes à posição, tornando-se passível das mesmas sanções aplicáveis, quando for o caso, a qualquer outro depositário” (cf., ob. cit., pág. 313, 10ª ed., 1990, Ed. Forense, Rio de Janeiro).

4 “Indiscutível o direito do executado de ficar depositário dos bens penhorados, quando inexistam motivos relevantes para modificação desta situação, visto que a execução deve ser efetivada da maneira menos gravosa para o devedor” (ac. un. 7ª Cam. 1ª TACivSP, 25.03.83, apel. 302.188, rel. Juiz Paulo Shintate, RT 579/146).

5 Conforme assevera Cândido Dinamarco (ob. cit., pág. 289): “a alienação do bem penhorado constitui forma particularmente grave de fraude de execução, em que até mesmo se dispensa o requisito da insolvência do alienante. Ela se resolve num atentado ao estado de concreta sujeição do bem, e não apenas na tentativa de subtrair bem responsável e ainda não constrito. Isso significa que, no jogo entre a eficácia do ato de alienação realizado apesar da penhora e a do ato imperativo do Estado, há de prevalecer invariavelmente esta, independentemente de quaisquer outras considerações”.

6 “A responsabilidade do executado e depositário do bem penhorado não se resolve aí nos termos da lei civil, pois lhe não é dado substituir o que lhe foi entregue por coisas do mesmo gênero, quantidade e qualidade, o que suporia a sua disponibilidade. Cabe-lhe, no exercício da sua função processual, empregar “a diligência de um bom pai de família”, estando sempre pronto a apresentar em juízo os bens que lhe foram confiados. Verdadeira função pública, portanto, o depositário responde civil e criminalmente pela guarda dos bens sob sua custódia, qualquer que seja a natureza, sob pena de ação de depósito com a implicação prisional” (ac. un. 1ª Turma do STF, 12.12.80, rec. HC 58.475-SP, rel. min. Luiz Rafael Mayer, RTJ 97/597).

7 Conforme leciona Afranio de Carvalho, “dada a eficácia relativa da inscrição preventiva, o executado continuará titular do domínio e, nessa qualidade, pode alienar o imóvel penhorado. Embora o adquirente fique sujeito a ver decretada a ineficácia da alienação, não incumbe ao registrador antecipá-la, pelo que há de praticar o ato registral” (cf. Registro de Imóveis, pág. 288, 3ª ed., 1982, Forense, Rio de Janeiro).

8 Confira em Cândido (ob. cit. , pág. 289): “tem-se, pois uma escala de gravidade (…) a alienação de bem penhorado ultraja a constrição judicial efetiva e pendente (…), por isso é que, na mesma proporção, as reações do direito são correspondentemente crescentes (…) não se exigindo uma nem outra quando alienado o bem penhorado (insolvência e má-fé)”.

9 Pontes de Miranda, em linguajar característico, assevera que “a compra e venda em fraude de credores é anulável; a em fraude à execução, ineficaz. Por isso mesmo, se o que vendeu, ou o que comprou, in fraudem creditorum, solve a dívida, torna-se eficaz. Existiu e valia, posto que ineficaz; agora, existe, vale e tem eficácia. Se fosse nula, não seria possível convalidar-se. Entre o terceiro e outros valem os contratos e  outros modos de transmissão; apenas são ineficazes. Valem mesmo atos do executado” (cf., Código de Processo Civil Comentado, pág. 468, 1ª ed., Forense, Rio de Janeiro).

10 A Súmula 619 do Supremo Tribunal Federal aplica-se à matéria: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.

11 Os seguintes arestos, um anterior à Constituição Federal de 1988 e outro posterior, assentes no entendimento sumular, permitem a apreensão do enfoque do texto: “Habeas corpus. Prisão civil do executado que não restituiu ao Juízo os bens penhorados de que era depositário. Tratando-se de depósito de direito processual, em que o depositário é auxiliar do Juízo da execução, a prisão civil é imposta no processo em que se realizou o depósito, não se lhe aplicando as normas da ação de depósito, pois esta visa apenas à tutela do depósito que não seja judicial” (HC, 55.271-PE, 2ª Turma, DJ 26.08.77, Rel. Min. Moreira Alves). O segundo, assim deduzido: “Depositário. Judicial. Prisão. Possibilidade. Pode o Juiz decretar a prisão do executado, nomeado depositário judicial do bem penhorado, se o alienou. Deslealdade processual, quebra da confiança do juízo que não pode restar inconseqüente. Por não se tratar de prisão administrativa, mas judicial, por emanar de Juiz no exercício da jurisdição, não contraria a Constituição. Ao reverso, tem nela seu fundamento maior (art. 5º, LXVII). Prisão nos próprios autos. Súmula 619 do STF. Precedentes jurisprudenciais. Agravo provido” (AI, 191137280, 1ª Câmara Cível, 19.11.1991, Rel. Juracy Vilela de Souza, RJTARGS 81/116).