Pílulas de farinha e o delito do art. 273 do Código Penal

6 de outubro de 2014

Compartilhe:

Luis-Paulo-CotrimO tipo previsto no art. 273 do Código Penal, que pune as condutas de “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, sofreu séria alteração em seu preceito secundário por conta da chamada Lei dos Remédios (Lei no 9.677/1998), aprovada pelo Congresso Nacional em 2/07/1998, quando passou a estabelecer uma pena de reclusão de 10 a 15 anos, além de multa (na redação anterior, o tipo estabelecia uma pena de 1 a 3 anos de reclusão, além de multa) para quem viesse a praticar aqueles núcleos descritos.

Não fosse a substancial alteração trazida na nova roupagem condenatória, talvez sua aplicabilidade não despertasse tanta perplexidade, como se detecta hoje, na comunidade formada, em geral, pelos aplicadores da lei e por especialistas. De fato, com a edição daquela lei, no ano de 1998, a pena mínima desse ilícito passou a ser elevada em dez vezes e a máxima em cinco, circunstância merecedora de efetiva reflexão.

A Lei dos Remédios foi concebida em um momento de especial comoção social, quando a empresa Schering do Brasil produziu determinado lote do medicamento anticoncepcional, o Microvlar, de conteúdo totalmente ineficaz. Tudo teve início quando, em 20 de maio de 1998, essa empresa recebeu uma carta anônima, na qual se lia que um lote de seu produto mais vendido, o citado anticoncepcional, havia saído da fábrica com as pílulas adulteradas. A carta foi acompanhada por uma cartela com os tais remédios. Pela explicação técnica, eram remédios neutros, sem componentes ativos, ou seja, sem os hormônios que impedem a gravidez. Eram pílulas de farinha.

Como previsível, após a ingestão regular do medicamento adulterado, determinado número de mulheres acabou engravidando, o que ocasionou o ajuizamento de várias ações de indenização contra a empresa Schering, haja vista sua atitude de silêncio e inação acerca dos fatos, durante longo tempo, conforme apurado. Depois de incisiva denúncia pelos meios de televisão, a empresa trouxe a público a alegação de roubo de um dos lotes do produto, o que não restou confirmado.

De qualquer forma, ao lado deste caso – que ocasionou grande repercussão – apura-se que inúmeros outros medicamentos vendidos em nosso país sofreram falsificações em suas fórmulas, como o adulterado antibiótico contra infecção hospitalar Trioxina, que causou a morte de uma criança; o antiinflamatório Tandrilax; a Vacina AP, da Novak, para tratamento de alergias; o antiácido Mylanta Plus; o Merthiolate vermelho e outros como o Androcur, falsificado na forma de farinha, utilizado para o tratamento de câncer de próstata.

Tendo em vista, pois, o combate àquelas perigosas práticas é que foi editada a Lei no 9.677/1998, que passou a prescrever, então, elevadas sanções para as condutas acima descritas, quais sejam “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”.

Ainda que se tenha em consideração o contexto histórico fomentador da criação de uma legislação mais eficaz – como foi o panorama jurídico desta Lei dos Remédios – é preciso reconhecer, por outra ótica, que a nova regra trouxe em seu bojo aspectos de excepcionalidade ou casuísmo, sendo portadora de técnicas isoladas do contexto ditado pela ordem jurídica vigente.

O casuísmo, concebido aqui como o envolvimento emocional da população acerca de fatos ocorridos e divulgados, em determinado momento histórico, foi fator determinante para a edição de muitas normas, inclusive penais. Lembramos aqui a própria Lei no 8.072/1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, cujo projeto original – Projeto de Lei no 5.281/1989 – estabeleceu o regime integralmente fechado para determinados crimes, como o de extorsão mediante sequestro, vedando, ainda, o livramento condicional, a anistia, a graça e a possibilidade de fiança.

Os importantes meios de comunicação da época e a opinião pública passaram a exigir do Congresso maior rigor no combate a tais delitos, particularmente após o sequestro dos empresários Abílio Diniz (1989) e Roberto Medina (1990). A edição daquela lei pretendeu ser uma resposta a esse clamor manifestado amplamente pela mídia.

O crime de homicídio doloso, por sua vez, de inci­dência visivelmente recorrente nas classes mais pobres da população, passou a ter tratamento jurídico exasperado por conta da aprovação de um projeto de lei, no ano de 1994, que veio a alterar a Lei no 8.072/1990 – cujas assinaturas foram capitaneadas pela autora Glória Perez –, alteração essa que fez incluir, entre os crimes hediondos, o homicídio qualificado (mediante paga ou promessa, por motivo fútil ou pelo emprego de meios cruéis).

Em 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou o parágrafo 1o do art. 2o dessa legislação, ao entender como inconstitucional o dispositivo que proibia a progressão de regime naqueles delitos tidos como hediondos. De alguma maneira, a decisão da Corte refletiu a análise que a comunidade jurídica vinha desenvolvendo em relação à matéria, aplicando moldura mais ampla na interpretação de normas restritivas que pudessem ter sido inspiradas em casuísmo.

Também o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já vinha assentando a possibilidade de início de cumprimento da pena em regime aberto e sua substituição por penas restritivas de direitos nos delitos de tráfico de entorpecentes, ou outros crimes hediondos, antes mesmo da entrada em vigor da Lei no 11.343/2006 e da Lei no 11.464/2007 (REsp. 915.442-SC, Rel. Min. Maria Thereza A. Moura, 14/12/2010).

Retornando à análise do art. 273 do CP, não é demais sustentar que uma sanção corporal, para ser considerada mínima, haverá de ter características de reprimenda quantitativamente mais branda, ou seja, que possa contemplar situações fáticas menos ofensivas socialmente.

Ao estabelecer pena mínima de 10 e máxima de 15 anos de reclusão, o legislador aproximou esses limites de privação de liberdade, de tal forma que os diluiu, tornando-os inócuos. No homicídio simples (art. 121), por exemplo, a pena mínima é fixada em 6 anos, o que faz gerar certa perplexidade quando nos debruçamos sobre o bem jurídico protegido por esses dois tipos penais.

Vale ilustrar ainda que, recentemente, o Senado Federal acabou por votar o projeto que libera a produção e a venda de inibidores de apetite no Brasil. Os Senadores aprovaram projeto de decreto legislativo que suspende a proibição imposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a tais medicamentos – Resolução no 52, de outubro de 2011, que vetou a produção e a venda, mesmo sob prescrição médica, dos inibidores que ajudam no emagrecimento.

Na justificativa do texto, o Relator do Projeto (Deputado Federal Beto Albuquerque) argumentou que a liberação dos inibidores de apetite é importante para o tratamento da obesidade e de doenças correlatas e que a proibição da produção e da comercialização dos medicamentos anorexígenos anfepramona, femproporex e mazindol e a restrição para o uso da sibutramina causou grande insatisfação na classe médica. Eis mais um caso de interpretação e alteração de texto normativo com forte carga de restrição casuística, sem desconsiderar, evidentemente, a extraordinária importância que o texto originário representa à nossa sociedade.

Tendo em mira a análise desses aspectos técnicos, faz-se mister delinear singelo paralelo entre a mencionada lei dos remédios e a legislação especial que pune o delito do tráfico ilícito de drogas.

Efetivamente, o crime de tráfico de substâncias entorpecentes também passou a ter novo tratamento em nosso contexto jurídico. No que diz respeito ao dispositivo sancionatório, verificamos que a Lei no 6.368/1976 estabelecia, em seu art. 12, pena de 3 a 15 anos de reclusão, além da multa. A lei revogadora – Lei no 11.343/2006, de 26 de agosto de 2006 – veio a exasperar a pena mínima desse sério delito, fixando, então, reprimenda de 5 a 15 anos de reclusão, além da mencionada multa.

O aumento vertiginoso do tráfico de entorpecentes na última década, impulsionado por estruturadas organizações criminosas – que costumam camuflar a prática ilícita com a lavagem de ativos na aquisição de imóveis urbanos e rurais, aeronaves, gado e outros bens valiosos – acabou por despertar, na sociedade, a expectativa direcionada à elaboração de uma legislação penal mais firme e, ao mesmo tempo, mais abrangente do ponto de vista da política criminal, resultando, assim, na edição da citada Lei no 11.343/2006.

Confirmando esse quadro, o jornal Folha de São Paulo, edição de 30/8/2014, informa que o número de pessoas presas por tráfico de drogas no Aeroporto Internacional de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo, cresceu 145% em dez anos. Os estrangeiros correspondem a 83% das prisões. A maioria é de sul-africanos, angolanos, nigerianos e tailandeses. A quantidade de cocaína apreendida nesse período foi de mais de uma tonelada.

A par de tão grave panorama estampado, podemos constatar que a nova lei aumentou a pena mínima do delito do tráfico de entorpecentes em apenas dois anos (de 3 para 5 anos de reclusão), mantendo, entretanto, a máxima no patamar original, ou seja, no mesmo da lei revogada.

Ainda que a exasperação da pena mínima possa transparecer, a princípio, como de pouca monta, por outro ângulo, somos forçados a reconhecer o caráter flexível do texto penal, quando viabiliza a individualização da pena do agente em razão da quantidade ou qualidade da droga (art. 42); da transnacionalidade do tráfico (art. 40, I), ou mesmo por meio de inúmeras outras contingências, como a prática do delito em estabelecimentos de ensino ou em transportes públicos (art. 40, III).

A Lei no 11.343/2006 prevê, ainda, a possibilidade de amenização da situação penal do agente, seja pelo expediente da delação premiada (art. 41) – quando colaborar voluntariamente com a investigação policial ou processual na identificação de outros autores, com a redução da pena de 1/3 a 2/3 – ou também daquele transportador eventual da droga, como se dá em relação às denominadas mulas, fixando o parágrafo 4o do art. 33 uma fração móvel de 1/6 a 2/3 como causa de diminuição da pena, caso não integre organização criminosa nem se dedique a atividades criminosas. Normatiza, de igual forma, a situação do dependente químico, isentando-o de pena caso seja comprovada a dependência (art. 45), ou seja, essa normatização municia efetivamente o magistrado a dosar, de forma justa e criteriosa, a reprimenda a ser aplicada ao agente, mediante a utilização de mecanismos ínsitos no próprio texto, estabelecendo, destarte, o adequado equilíbrio na individualização da pena.

Deveras, não se busca no aspecto quantitativo da pena o único meio eficaz à repressão do delito praticado. Ela se faz efetivar por meio da regular persecução penal; da resposta final ao processo, pelo Judiciário, dentro do tempo razoável de duração, e da adequação da reprimenda ao caso em análise na conformidade do ordenamento penal-constitucional. Por isso, não é demais destacar que essa legislação especial (Lei no 11.343/2006), a par de todas as saudáveis críticas, possui também virtudes indiscutíveis.

Retornando à análise do aspecto incriminador do art. 273 do Código Penal, é fácil perceber que a equivocada técnica legislativa de seu preceito secundário – pena de 10 a 15 anos de reclusão – não se explica, tão somente, por infração à ordem constitucional, com base nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, vistos como diretrizes basilares para todos os Poderes Constituídos quanto à edição de suas normas.

Este dispositivo penal em estudo também peca por transgressões técnicas, não prevendo as necessárias causas especiais, sejam de diminuição ou aumento, ou qualquer outro mecanismo jurídico que venha permitir ao aplicador da lei adequada individualização da pena do agente, redundando, em verdade, no “engessamento” da atividade judicial.

O mesmo decisum do STJ acima referido, ao enfrentar a matéria concernente ao presente estudo, destacou a “excessiva desproporção da pena prevista ao art. 273 do CP, cabendo ao Judiciário promover o ajuste principiológico da norma, mostrando-se razoável a aplicação do preceito secundário do delito de tráfico de drogas.” (REsp. no 915.442-SC)

Com razão, sem meios técnicos para calibrar adequadamente a condenação final daquele agente que importou remédios ou cosméticos em quantidade irrelevante socialmente, restará ao aplicador da lei a prolação de uma sentença tecnicamente petrificada, ferindo as garantia do devido processo legal (CF, art. 5o, LIV).

A garantia do due process of law, alinhada em nosso texto constitucional, é o fundamento maior da utilização dos meios jurídicos existentes para o estabelecimento do contraditório entre as partes, ou da denominada paridade de armas, buscando, em última análise, o controle da arbitrariedade ou da discricionariedade dos atos do Poder Público.

Ao lado disso, é preciso destacar a garantia do processo legal em seu sentido substantivo, o que é facilmente verificado pela sóbria leitura do mesmo texto constitucional, em seu artigo 3o, inciso I, ao prever que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Nada mais quis nos dizer o constituinte, pela comunhão desses dispositivos gêmeos, que uma sociedade para ser considerada justa pressupõe, necessariamente, que todas as normas e demais atos expedidos pelos Poderes Constituídos sejam dotados de razoabilidade, racionalidade e proporcionalidade. Essa é a essência substancial da garantia do processo legal e qualquer ofensa ao núcleo constitucional em apreço será passível de controle pela Suprema Corte, uma vez que o próprio ordenamento jurídico restará exposto em sua unidade sistêmica.

Mas a redação do próprio dispositivo em exame nos apresenta outras situações postas à serena reflexão: no parágrafo 1o-A, ficam, incluídos entre aqueles produtos sujeitos à apenação mínima de 10 (dez) anos de reclusão, os cosméticos. Ora, cosméticos, pelo léxico, “são substâncias ou tratamentos aplicados à face ou a outras partes do corpo para alterar a aparência, para embelezar ou realçar o atrativo da pessoa”.

A Anvisa, no que tange os cosméticos, possui listas dos produtos que têm autorização para sua comercialização; especifica-os e descreve, ainda, seus variados tipos: Produtos de 1o Grau (água de colônia, aromatizante bucal, baton labial, corretivo facial, creme, loção e gel para o rosto, desodorante axilar e outros) e Produtos de 2o Grau (blush, bronzeador, condicionador anticaspa, depilatório químico, desodorante de uso íntimo, esmalte para unhas infantil e outros).

Com a devida propriedade, René Ariel Dotti adverte que “a possibilidade, ao menos em tese, de se punir a adulteração de um produto para a limpeza de pele com pena de reclusão de 10 a 15 anos, além de multa, chega às raias do absurdo. (Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 1, p. 51, maio de 2000).

Não é demais lembrar, nesse passo, que o delito narrado no art. 273 do CP, assim como o contido no § 1o-A, onde se inserem os cosméticos, são tidos como crimes hediondos, assim capitulados na Lei no 8.72/1990, inciso VII-B (Lei dos Crimes Hediondos), obtendo, por isso, tratamento mais rigoroso por nosso ordenamento processual penal.Podemos concluir que o excesso e a pressa acabaram comprometendo, de alguma forma, o sentido punitivo desta norma penal. Penas descalibradas e em confronto com o contexto penal geral, assim como a descrição de infinitas condutas no corpo do art. 273, CP, desviando o foco principal do ilícito a ser combatido, trouxeram à tona a reflexão sobre a real efetividade de leis nascidas do casuísmo ou do impulso emotivo da população, em dado momento histórico.

(Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 1, maio de 2000).