Poder Judiciário – Bastião do Império da Cidadania

5 de junho de 2001

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Em seus Pensamentos, discorrendo sobre o carater do homem, MONTESQUIEU dizia que “e precise ter opinioes, paixoes, pois so assim estamos em unissono com todo mundo. Todo homem que tem sentimentos moderados, aduzia, nao esta em unissono com ninguem”.

Permitam-me trilhar pelos caminhos do grande filosofo, se nao com a mesma destreza do autor do Espirito das Leis, pelo menos com a intenção de deixar registrada a expressão da Ordem dos Advogados do Brasil, nesta quadra particularmente polemica e tensa da vida politico­institucional do pais.

E por que e polemico e tenso o momento que estamos atravessando? Pela razao de que estamos na iminencia de abrirmos um cicio de mudanças fundamentais para o revigoramento de nossas instituições. E tambem, porque forças do atraso teimam em querer segurar a dinamica do tempo, como se isso fosse possivel e, por conseguinte, perpetuar o estado das velhas praticas e de uma ordem politica compromissada com o passado.

Nao e de se estranhar que estejamos vivenciando, de maneira particularmente intensa na area politica, o entrechoque de grupos antagônicos.

A sociedade, pela vontade de suas maiorias, pela arregimentação de suas entidades civis, pela força expressiva de figuras ilustres e de compartamento ilibado, tem sinalizado no sentido da modernização institucional e politica, cujos eixos repousam numa base moral e etica. Base moral e etica que implicam: na investigação das denuncias de corrupção que mancham a vida de setores da administração publica, de dirigentes, governantes e politicos; na punição dos culpados; no restabelecimento do imperio da lei e da ordem, frequentemente vilipendiado pela usurpação das funções do Poder Legislativo por outro e por violações a direitos fundamentais retratadas em despótica forma de legislar; na vontade politica de combater a criminalidade, que se expande por todas as regiões; na necessaria e premente reforma politica, ferramenta indispensavel para a moralização de praticas e costumes, para a densidade doutrinaria dos partidos, para o aperfeiçoamento da sistemática eleitoral; no planejamento ordenado de nossas politicas e de nossa infra-estrutura social e econômica, para nao sofrermos com a improvisação, pelo terror das incertezas, provocadas por ameaçadores “apagões”, enfim, pelo medo do futuro; na equitativa distribuição das riquezas nacionais, unica condição para que o nosso sistema democratico seja enriquecido de conteudo social; na recriação e multiplicação dos espaços dos cidadaos, de forma a motiva-los a inaugurar o cicio da democracia participativa em nosso pais; no conceito de Nação em que o espaço do povo ocupe o lugar central, lugar hoje tomado pelos privilegios de grupos; na subordinação, enfim, do modele econômico ao projeto maior de desenvolvimento social, rejeitando-se a politica argentaria de se privilegiar a moeda em detrimento da dignidade humana.

Vossa Excelencia assume a presidencia da mais alta Corte de Justiça do pais em um momenta em que grandes interrogações pairam sobre nossas cabeças. Interrogações de toda a ordem e disparadas em todas as direções. Ha tantas incertezas e indagações afloram: teremos condições de superar o crescente quadro de dificuldades que ameaça romper a estabilidade cada vez mais tenue para nossas visoes? teremos condições de sustar o processo de ruptura constitucional, que desfila aos nossos olhos pela passarela aviltante das Medidas Provisorias, agora invadindo e negando os direitos fundamentais? teremos condições de assegurar as reformas indispensaveis ao desenvolvimento da ordem politica, da ordem juridica, da ordem econ6mica e da ordem social? teremos condi90es de garantir ao pais um programa de desenvolvimento auto-sustentavel, serio, comprometido com a sociedade?

A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, ao interpretar os sentimentos de parcela ponderável do pensamento nacional, tem as suas duvidas, as suas interrogações, as suas angustias, mas tambem conserva algumas certezas.

A certeza, por exemplo, de que qualquer passo do pais na trilha dos avanços institucionais passa, necessariamente, pelo fortalecimento do Poder Judiciario. E por sabermos que os momentos difíceis que a nação passa tem trazido dissabores a este Poder, queremos, neste momento, reafirmar a nossa crença, a nossa firme disposição, a nossa vontade de estar a frente das lutas que se fizerem necessarias para preservar a dignidade da mais alta Corte de Justiça do pais, cuja missao, de maneira eloquente e exuberante, foi proclamada por nosso patrone RUI BARBOSA, em seu celebre discurso sobre o Supremo Tribunal Federal: “a garantia da ordem constitucional, do equilibrio constitucional, da liberdade constitucional, esta nesse templo da Justiça, nesse inviolavel sacrario da lei, onde a consciencia juridica do pais tem a sua sede suprema, o seu refugio inacessivel, a sua expressao final”.

Se, naquele famoso 19 de novembro de 1914, quando tomava posse no cargo de presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, berço da OAB, o grande tribuno e jurista verberava contra a investida reacionaria da nulificação da justiça, esboçada em grandioso projeto de castração do Supremo Tribunal Federal, hoje, aqui estamos, na condição de presidente da entidade maior dos advogados, para dizer ao presidente que toma posse, que a missão da Suprema Corte, nestes momentos conturbados, e de extraordinária significação para a paz social. Como lembrava RUI, “os tribunais não usam espadas. Os tribunais nao dispoem do Tesouro. Os tribunais nao escolhem deputados e senadores. Os tribunais nao fazem ministros, nao distribuem candidaturas, nao elegem e deselegem presidentes. Os tribunais nao comandam milicias, exercitos ou esquadras. Mas e dos tribunais que se temem e tremem os sacerdotes da imaculabilidade republicana”.

Temem os tribunais, sim, os governos arbitrarios, as ditaduras, os poderes discricionários. Se formos examinar a historia do Supremo Tribunal Federal, desde a sua criação ate os nossos dias, vamos nos deparar com algumas das mais belas paginas de civismo e de cidadania, como bem o demonstra a professora EMÍLIA VIOTII DA COSTA, em seu recente livro O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. Confrontos historicos com o Executivo, sublevações e golpes de Estado, sucessivas constituições, atos institucionais vilipendiosos, suspensao de garantias constitucionais, desobediencia as decisoes emanadas dos Tribunais tem sido uma constante na historia do STF. Mas, a dignidade desta Excelsa Corte de Justiça se manteve e se mantem, mesmo em momentos de grande tensao e contrariedade.

Algumas passagens sao emblematicas. No nascer da Republica, desgostoso com o desempenho do Supremo Tribunal, o presidente Floriano Peixoto nomeia um medico e dois generais para preencher suas vagas, o que mostra como essa Corte teve de suportar, nao raro, com galhardia, a ira dos governantes.

A defesa das liberdades civis, o estabelecimento da jurisprudencia, a recorrente reafirmação da inviolabilidade dos direitos constitucionais de reuniao e livre manifestação do pensamento passaram a ser, dentre outros, os alicerces que, ao longe do tempo, transformaram o STF de poder subordinado, como na epoca do Imperio, em um poder independente. Nao foram poucos os constrangimentos, nao foram poucas as humilhações. No governo autoritario do Estado Novo, conforme conta a professora Emilia Viotti, os ministros desta Casa passaram por situações extremamente dificeis. O ministro PRADO KELLY, em 1952, durante homenagem ao ministro Laudo de Camargo, assim descreveu a epoca: “O Supremo Tribunal Federal sofria a pior condenação – de viver cerceado em um mundo de ficções remanescentes; em derredor dele, haviam ruido todas as colunas da sociedade livre. Dentro das contingencias em que passou a operar, cada ministro possuia apenas o escudo de sua consciencia para opor ao mando incontrastavel e triunfante. Resguardar a dignidade, a fim de acudir, ao menos a dignidade alheia; manter a independencia, para nao se anular na submissao geral; desempenhar uma função diminuida, para que os restos dela nao desaparecessem; dar um minima de satisfação aos que aspiravam ao maximo de amparo, de modo que nao lhes faltasse tudo”.

Que bela pagina de civismo escrita sob o rigor das praticas autoritarias, tal como. recentemente, escreveu ao enfrentar a furia do regime militar. E assim, açoitada tantas vezes, vergada, jamais, esta Corte cravou suas marcas nos ciclos sucessivos da cultura juridica, institucional e politica do pais. Sao marcas profundas deixadas nos periodos da liberalização do Estado Novo, no cicio da redemocratização e nas decadas mais recentes. Uma conclusao se faz necessaria: a modelagem do nosso sistema politico-institucional deve, e muito, a ação do Supremo Tribunal Federal.

Por isso mesmo, precisamos realçar a missao politica desta Corte. Missao, as vezes, incompreendida e ate questionada. Nao tenhamos duvida, porem, que integra a sua identidade. Ao avaliar e descrever as funções do Poder Judiciario, nos Estados Unidos, na viagem que fez, em 1831, ALEXIS DE TOCQUEVILLE, em seu famoso testemunho A Democracia na America, reconhecia: “as instituições judiciarias exercem uma grande influencia sobre o destino dos anglo-americanos; tem um lugar muito importante entre as instituições politicas propriamente ditas”.

A observação se faz oportuna para entendermos a função politica do Supremo Tribunal Federal, função ainda mais aceitavel quando compreendemos que a democracia nao se restringe a uma tecnica de organização e administração do poder, completamente dissociada de fins e valores, e das condições sociais, políticas e econômicas do pais. TOCQUEVILLE, ROUSSEAU e ARISTOTELES jamais concordariam que a democracia fosse considerada apenas como sistema de observancia de regras tecnicas formais. A DEMOCRACIA se alimenta do espirito do tempo, dos valores eticos e morais, da dinamica das circunstancias, das demandas sociais, das pressoes e contrapressoes, enfim, da cadeia que une os elos dos sistemas sociais, econômicos e politicos. E ao colocar os seus traços nessa moldura democratica, o Supremo Tribunal Federal esta, efetivamente, desempenhando um papel que transcende o escopo tecnico de suas funções constitucionais. Reside ai seu papel politico. O Poder Judiciario deve se impor como PODER que e, verdadeiro bastião do imperio da cidadania.

Os advogados brasileiros aplaudem sua eleição para presidir a mais Alta Corte de Justiça do pais, bem assim do Ministro ILMAR GALVÃO, acreano ilustre e excelso Magistrado, para o cargo de Vice-Presidente desta Augusta Corte. Posso garantir que o animo dos advogados esta em festa. E se esta em festa, e porque Vossa Excelencia encarna um elevadissimo conceito perante todos nos.

Temos a mais sincera convicção de que sabera exercer com dignidade, competencia, destemor e altanaria a Presidencia da mais Elevada Corte de Justiça do pais. Conhecemos e admiramos a grandeza de suas atitudes, a postura independente do magistrado imanente a seus atos, a integridade de uma personalidade irreprochavel, mesmo que possa parecer polemica.

Não podemos deixar de registrar, mais uma vez, o fato de que sua posse na presidencia do STF ocorre em um momenta particularmente agudo de nossa historia. O Brasil que se descortina esta a exigir do Poder Judiciario grandes responsabilidades e uma atenção toda especial para o conjunto das complexidades e demandas em praticamente todos os campos da vida politica e institucional. O espirito de independencia, encarnado por Vossa Excelencia, se ajusta plenamente aos desafios das novas realidades institucionais.

Tambem e nossa crença de que filigranas de natureza administrativa que, seguramente ha de encontrar, algumas ate com intenção de restringir o escopo administrativo da presidencia da Corte, nao serao obstaculos a eficacia da gestao, porque, ha de se lembrar, o estilo e o homem. Diz a Sagrada Escritura que “nenhum homem, por maior esforço que faça, pode acrescentar um palmo a sua altura” e alterar o pequeno modelo que é o corpo humano. Esta sabia lição quer significar tambem que força externa alguma conseguira alterar a grandeza de um caráter.

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