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“Poesia: um souvenir eterno do tempo” 

15 de julho de 2015

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Captura de Tela 2015-07-08 às 17.04.57Elisa Lucinda pode ser considerada uma pessoa de talentos múltiplos e ao mesmo tempo singular. Aparentemente incansável, a capixaba de 57 anos buscou explorar desde cedo todas as suas possibilidades – e qualidades – artísticas e profissionais, seja como jornalista, cantora, atriz e, sobretudo, poetisa.

Radicada na cidade do Rio de Janeiro desde 1986, quando deixou sua Vitória natal para seguir carreira artística na capital fluminense, tem se destacado no teatro, cinema e televisão, com trabalhos reconhecidos internacionalmente. Em 1994, publicou sua primeira obra de literatura poética, “O Semelhante” (Editora Record) e, posteriormente, entre poemas, contos e crônicas produziu mais dez livros, sendo o último lançamento “Fernando Pessoa, o Cavaleiro de Nada” (Record, 2014).

Generosa, assim como se serve da poesia, Elisa não se furta em transmiti-la a todos do modo mais natural, espontâneo e verdadeiro, lançando mão de linguagem ao mesmo tempo coloquial e aprimorada, porque moderna. Desfazer a imagem sisuda – e quase intransponível – que muitos têm da poesia e trazê-la para o nosso cotidiano como um novo jeito de se enxergar o mundo parece ser a grande motivação de Lucinda.

Nesta entrevista para a Revista Justiça & Cidadania, a poetisa fala sobre o projeto Versos de Liberdade, levando prosa e verso a educadores e jovens do País,  de sua experiência com a Casa Poema Produção e Educação Cultural, além de opinar sobre temas bastante discutidos no momento, como a redução da maioridade penal,  as cotas para negros e  pardos (nas universidades e agora também no Judiciário) e em como a Justiça pode contribuir para o combate efetivo ao racismo, ao machismo e à homofobia.

E já na forma que Elisa Lucinda escolhe para responder à primeira pergunta fica claro para nós, leitores, o quanto a linguagem poética está presente em sua vida. A poesia fala ao seu coração.

Revista Justiça & Cidadania – Quando foi o seu primeiro contato com a poesia? Você ainda se lembra dela (ou do autor)? E como isso te afetou?

Elisa Lucinda – 

UMA LEMBRANCINHA DO TEMPO

Desde pequena,

a poesia escolheu meu coração.

Através de sua inconfundível mão,

colheu-o e o fez

se certificando da oportunidade

e da profundeza da ocasião.

Como era um coração ainda raso,

de criança que se deixa fácil levar pela mão,

sabia ela que o que era fina superfície clara até então ,

seria um dia o fundo misterioso do porão.

Desde menina,

a poesia fala ao meu coração.

Escuto a prosa,

quase toda em verso,

escuto-a como se fosse ainda miúda e

depois, só depois, é que dou minha opinião.

Desconfio que minha mãe me entregou a ela.

A suspeita, a desconfiança podem ser fato,

se a mão materna que já aos onze

me levou à aula de declamação,

não for de minha memória uma delicada ilusão.

Desde pirralha e sapeca

a poesia, esperta, me chama ao quintal;

me sequestra apontando ao meu olho o crepúsculo,

fazendo-me reparar dentro

da paisagem graúda,

o sutil detalhe do minúsculo.

Distingui pra mim a figura do seu fundo,

o retrato de sua moldura

e me deu muito cedo a

loucura de amar as tardes com devoção.

Talvez por isso eu me

entrelace desesperada nas saias dos acontecimentos,

me abrace, me embarace às suas pernas

almejando detê-los em mim,

querendo fixá-los, porque sei que passarão.

A poesia que desde sempre,

desde quando analfabeta das letras ainda eu era,

me frequenta, faz com que eu escreva

pra trazer lembrança de cada instante.

Assim até hoje ela me tenta e se tornou

um jeito de eu fazer durar o durante,

de eu esticar o enquanto da vida

e fazer perdurar o seu momento.

Desse encontro eu trago um verso como

um chaveirinho trazido dum passeio a uma praia turista,

um postal vindo de um museu renascentista,

um artesanato de uma bucólica vila,

uma fotografia gótica de uma arquitetura de convento,

uma xicrinha,

um pratinho com data e nome do estado daquele sentimento.

É isso a poesia:

um souvenir moderno,

um souvenir eterno do tempo.

RJC –  Como nasceu a ideia da Casa Poema? E como ela funciona?

EL – Nasceu da vontade de um espaço onde pudéssemos dar aula e onde pudéssemos de certa forma institucionalizar o nosso trabalho. Explico: em 1998, eu tinha criado a Escola Lucinda de Poesia Viva. Que nasceu meio sem querer depois que a primeira turma do primeiro workshop que dei no Rio de Janeiro, em minha casa no Leblon, não quis mais ir embora. Em uma dessas turmas tive o prazer de ter como aluna minha querida Geovana Pires, uma jovem atriz que até então não gostava de poesia, mas encantada com o meu jeito de dizer quis aprender também. E se atirou ao método como aluna, mas também como atriz curiosa. Fez todas as funções, nunca faltou a uma só aula sendo bolsista, acabou se transformando na diretora, atriz e professora de poesia falada e grande dizedora de poemas que é hoje. Já tínhamos nós duas uma companhia de teatro, a Companhia da Outra, e em seguida então resolvemos abrir a Casa Poema, onde Geovana é minha sócia. Paralelamente nosso trabalho foi se fortalecendo institucionalmente e assumindo sua missão sociocultural e educativa com muito mais força, ou seja, começamos a dar oficina de poesia falada não só para alunos de várias profissões que pelo curso se interessavam, como também começamos a ministrar essas aulas, a fazer esses workshops para professores, principalmente por meio da sua secretaria de educação. O que fazemos, e acho que a Geovana é principalmente sócia desse olhar, é voltar a poesia ao seu lugar de comunicação com todos os conteúdos que as palavras trazem com todas as intenções que a cada dia cada palavra pode ter e com todas as coisinhas humanas que dão sabor a cada discurso. No meio das conversas nos movemos, fazemos gestos, pausas, engolimos salivas, nos expressamos, rimos, choramos. Se trouxermos essa humanidade para a poesia ela vira organismo vivo que pode transformar o ambiente escolar e qualquer outro ambiente para sempre. Hoje, a Casa Poema tem uma equipe cada vez mais afinada com a própria missão e devo dizer que com a presença do Marcelo Demarchi como coordenador dos projetos sociais vamos avançando, chamamos de objetivo do milênio: um mundo melhor, mais justo, menos desigual que entende a diversidade e produz a paz.

RJC – Como ocorreu o encontro da Casa Poema com a Fundação José Silveira (FJS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a realização do projeto Versos de Liberdade? Como e quando surgiu a ideia?

EL – Eu tenho uma relação muito feliz com a Thaís Farias, que é um grande quadro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e quando nos conhecemos, profissionalmente falando, ela foi extremamente objetiva, me incumbiu de criar um projeto que conseguisse afinar a formação policial aos princípios dos direitos humanos. Ela queria um curso que despertasse emocionalmente o profissional de segurança pública de modo a deixá-lo não frágil, mas forte para compreender e defender o cidadão. E ela imaginava que eu pudesse fazer isso por meio da poesia que eu tinha dito naquela manhã, naquela semana onde ela me conheceu, que tinha tocado muito o seu coração. Foi aí que criamos, nós da casa Poema, o projeto Palavra de Polícia, Outras armas. Fizemos um piloto nas cinco cidades mais expostas a criminalidades com mais conflitos com as polícias no país e tivemos uma experiência linda. Nascia aí a primeira parceira com a Casa Poema e a OIT. Daí a fundação José Silveira conheceu esse trabalho e nós desenvolvemos o mesmo para os meninos que cumprem medidas chamado Versos de Liberdade.

RJC – Como tem sido a reação dos jovens ao serem expostos pela primeira vez ao universo poético?

EL – É incrível. A grande perversão da injustiça e da desigualdade é exclusão permanente que ela faz. Se você é filho de alguma desgraça, se você não teve nenhuma estrutura de pai ou de mãe, a desigualdade não vai facilitar para que você tenha uma chance. Então, o que a gente vê é um Mário Quintana chegando no coração de um adolescente para quem foi dito que isso, esse tipo de cultura não era para ele. Essa exclusão, com o tempo, dispensa o opressor e fica, como diz o teatro do oprimido do Boal, sendo seu auto opressor. De modo que o próprio excluído fala: aquele lugar não é pra mim, poesia eu não vou entender, nem adianta, Deus me livre eu num teatro. Essas crianças marcadas pelo erro quando se veem atraídas a coisa boa que esquenta a sua alma, sua emoção, até uma certa adrenalina só que é sem fugir, sem correr risco de vida. Quando ela se vê recebendo tal semente responde como terra fértil. Além de se sentirem considerados, recebendo uma educação prevista no nome da instituição socioeducativa. Ele responde à altura. Ele também quer parar de correr, de fugir, ele também tem sonhos. Com esse trabalho eles também ganham repertório de palavras e, diante de tal repertório, pode ampliar sua narrativa. Nós somos o que dizemos que somos. Quanto mais palavras tivermos para traduzir mais ampliaremos o alcance de nossas narrativas, incluindo nisso o aumento da compreensão do mundo.

RJC – Há quanto tempo o projeto está em andamento? Você já consegue medir os resultados? 

EL – O projeto está em andamento há quase dois anos. Por enquanto só fizemos no estado da Bahia, pois a fundação é pioneira na iniciativa juntamente com a OIT e claro, a Casa Poema. Apesar de dois anos, só fizemos seis turmas até agora pois o projeto acontece de três em três meses, mais ou menos. Ainda em fase de implantação e como proposta para políticas públicas ainda nem chegamos nas meninas, mas chegaremos lá.

RJC – Além das oficinas em unidade socioeducativas, existe a ideia de estender este projeto às escolas da rede pública de ensino, por exemplo? 

EL – O projeto já está em ação. Com o apoio da Fundação Ford temos os versos de liberdade versão escolas públicas. Seu objeto principal é o racismo. Tocar nesse vespeiro dentro do ambiente escolar é mais do que necessário. Ainda não somos livres, e é como negra que dou esse depoimento. Há muita exclusão de conteúdo na escola pública, apesar dos esforços, ainda se oferece um ensino chinfrim e o menino sai daquela escola sem condições de disputar mercado de trabalho com o menino que sai da escola particular. Quando eu era criança, lá em Itaquari, em Vitória do Espírito Santo, no município de Cariacica, estudava no mesmo colégio, eu que era filha de advogado, mais o filho do pedreiro, mais a filha da manicure, mais o filho do médico, enfim, era mais híbrido o banco escolar. Hoje pode ser que o menino de classe média alta encontre um ou nenhum menino preto em toda a sua vida escolar em sua sala de aula. Nessa confusão social feita de condomínios escolares e favelas escolares, o racismo campeia em grande porte nos dois ensinos. Nosso trabalho é, através da poesia, ampliar a sua consciência do cidadão brasileiro, povo mestiço vindo de um caldeirão de várias etnias, a Lei n. 10.639 garante o ensino da história afrodescendente dentro da sala de aula, mas a nosso ver encontra dificuldades refletidas na própria atitude do professor. Muitas vezes tem atitudes discriminantes sem perceber. Nosso trabalho, pelo que disseram tantos grandes poetas sobre o tema e sobre o lugar de cada um no mundo, põe uma luz nesse porão. O Brasil é racista e não toca nesse assunto.

RJC – A propósito, você acredita que literatura, poesia e cidadania poderiam se tornar disciplinas oficiais nas escolas?

EL – Claro que sim. Eu acredito principalmente que a poesia seja extremamente interdisciplinar. Seus temas englobam seus mais diversos assuntos, por isso seu uso na sala de aula é muito fácil. É naturalmente pedagógica e geralmente, em sua maioria avassaladora, prega a paz. Poetas são em geral, justiceiros, românticos, querem que o mundo seja bom, por isso, que embora filosofias e outras literaturas possam dar conta do assunto, há contento na sala de aula, eu não conheço nada mais atraente, poderoso e sintético do que a poesia para tanto.

RJC – O projeto trabalha com adolescentes condenados por atos infracionais. O que você acha da polêmica atual em torno da redução da maioridade penal?

EL – O Brasil é muito grande. Se o governo pretende discutir essa questão junto com a sociedade deveríamos estar numa campanha educativa sobre o tema, com vários programas, várias entrevistas, e principalmente, um estudo amplo sobre o tema, vendo exemplos em outros países, comparando, pensando nas diferenças de cada pátria, etc. como isso não está acontecendo a ignorância campeia. Como não temos uma educação reflexiva, não pensamos profundamente, só não queremos que nossas vidas estejam ameaçadas por ninguém e por menores que até muitas vezes são usados por adulto. Pensando em se auto proteger a sociedade não pensa profundamente no que realmente significa a diminuição da maioridade penal. O que fazemos quando encontramos uma criança perdida na rua? Tentamos achar a sua casa, sua família, reconduzi-lo ao caminho do qual se perdeu e se a criança não tinha caminho nenhum, o justo seria que sugeríssemos um caminho para ela. O certo é que a criança ou o adolescente que se volta contra a sociedade, é normalmente o excluído, é ele a evasão escolar. O que fugiu de casa para não morrer de apanhar na mão da mãe bêbada ou do padrasto abusador. O menino que não está na escola é o que vira normalmente o menino infrator. Nosso papel é fazer dessas instituições um verdadeiro colégio com horários, disciplinas, com bons conteúdos, com arte, com lazer, esporte, culinária, horta, cursos técnicos, para que ele saia dali e possa entrar no Enem, por que não? Para que ele saia melhor do que entrou. Num país onde o sistema prisional é esta promiscuidade, tudo vai para a mesma cela. Por quê queremos colocar mais cedo o adolescente lá? Para quê? Quais são os nossos planos? Mesmo pensando egoistamente a sociedade deveria querer o melhor para esses meninos por que quando estiver mais gente na cadeia do que gente fora dela, estaremos perdidos quando eles de lá saírem, prefiro apostar neles como força de trabalho. O Brasil precisa desses meninos que estão cumprindo medida, precisa que eles saiam de lá e colaborem com o progresso e o desenvolvimento do país e não atentem contra eles. Ninguém é bandido porque quer. Do grande contingente de meninos cumprindo medidas, 1% cometeu homicídio. A grande maioria foi presa fazendo pequenos furtos ou levando drogas. Nesse ponto eu estou com o Seu Jorge: se eu pudesse eu não seria um problema social.

RJC – Você mediou o “Seminário Discriminação Zero”, promovido pela Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), no final do mês de junho. Como acha que a Justiça pode contribuir para o combate efetivo ao racismo, ao machismo e à homofobia? Na sua opinião, a legislação vigente é satisfatória?

EL – Eu acho que o Brasil tem de se libertar do sistema prisional, acho que as punições não deveriam ser iguais. Você pega um político que roubou dinheiro da merenda escolar, acho que ele tem de cumprir uma parte da prisão dele, a outra metade ele tem de fazer merenda escolar para várias crianças; o cara não pagou pensão, eu acho que ele tem de cumprir a pena dele dentro de uma creche, não é exatamente essas coisas que eu estou sugerindo que tudo pode até parecer absurdo, mas o que eu quero dizer é que se alguém cometer o crime de racismo, tem de trabalhar em uma ONG que trabalhe com o preto, para que ela se remonte, se corrija, cresça e se transforme. A punição não deveria ser em muitos casos só um castigo, a punição devia ser seguida de uma nova chance, de uma possibilidade de transformação nas inúmeras vezes que isso é possível. Acho que a justiça ganharia muito se pensasse nesse ser humano que atenta contra a sociedade como um desafio para ela. Como reintegrá-lo? Como trazê-lo de novo para o jogo?

RJC – Foi aprovada pelo CNJ, no último dia 9 de junho, a criação de cotas de 20% para negros e pardos em concursos do Judiciário. No ano passado, a adoção desse mesmo sistema nas universidades públicas completou dez anos. Como você avalia as cotas no País? 

EL – O que me agrada no sistema de cotas é a tentativa de justiça ainda que seja a fórceps. Mas eu quero que o sistema de cotas seja apenas uma etapa do processo de conscientização. Se não houver esses indicadores que garantem o lugar dos excluídos, não serão escolhidos. Isso não é um delírio, é uma estatística, uma constatação, mesmo com o sistema de cotas quem assiste ainda hoje as TVs brasileiras, as produções nacionais veem a mesma segregação, ou seja, a participação ínfima dos negros nas tramas. Incluem-se aí as peças publicitárias também. Portanto eu acho que como processo o Brasil tem de se acostumar com preto gerente, preto chefe de multinacional no Brasil, preto banqueiro, preto padre, igual foi com a mulher em alguns postos. Há 20 anos não se viam mulheres em postos de gasolina, por exemplo, nem presidente. Então eu espero que um dia a gente possa ter pelo menos meio a meio na parte do que chamam desenvolvimento do Brasil. Considero o racismo o maior atraso do Brasil. Nos faz andar léguas e léguas para trás. Então deixou grandes sequelas. Por que é que muita gente gritou com a nova lei das domésticas? Porque muitos exerciam o sistema escravocrata com elas. Trabalhando desde seis horas da manhã para fazer o café da menina que vai para a universidade até às 22h30 para botar o jantar do patrão que volta da reunião com aquela secretária gostosa. As que dormem no trabalho principalmente eram vítimas dessa mais valia. O Brasil precisa olhar para essa péssima herança que a escravidão deixou. Um dia não precisaremos mais de cotas e a educação que vai dar conta desse recado. Quero viver pra ver.

RJC – Por decisão unânime, o STF acaba de liberar as biografias não autorizadas. Você lançou no ano passado o livro “Fernando Pessoa, o Cavaleiro de Nada” (Editora Record), assumindo a voz – e reconstruindo a história – do escritor português. Fale um pouco da obra e por quem – e como – você gostaria de ser biografada no futuro.

EL – Primeiro quero dizer que adorei a aprovação das biografias. Somos sujeitos em um mundo, nossa existência influente e provoca outras existências. E se alguém quiser contar a história de seu Euclides que foi o pescador mais importante da história da sua infância tem todo o direito de fazer e igual direito tem também quem quer contar a história de Baudelaire ou de Roberto Carlos etc. Escapamos do imaginário do outro, das finas camadas de ilusões que cada narrativa tem vinda dos olhos do narrador. Até para contar a nossa própria história adicionamos umas pequeníssimas alterações de acordo com o nosso desejo, de acordo com nossas dores, de acordo com o que ficou de nossas lembranças que nem sempre nos fixam na casinha certa com seu nome e número. Assim também o fazemos quando falamos do outro. E se passadas licenças poéticas, o narrado ou herdeiros do narrado se sentirem ofendidos e sentir ou sentirem injuriadas esta ou aquela memória ele terá o caminho da justiça para resolver essa jurídica questão chamada injúria, difamação. No meu caso do Fernando Pessoa, ele já é domínio público, graças a Deus, e eu me senti extremamente à vontade em pegar na mão da sua voz para ser minha voz já que tantas vezes eu disse poemas. E foi para citar os poemas dele durante o livro, toda vez que eu precisasse que decidi escrever em primeira pessoa. Foi uma delícia, uma viagem. Tudo que é dele no livro está em itálico mas seus poemas eu os tirei da forma gráfica de poema e os diluí em texto corrido exatamente para não tirar o fluxo da prosa e favorecer a compreensão. Eu quis dar uma fala poética para ele e natural, e cotidiana e ao mesmo tempo portuguesa pra nós no sentido gramatical, mas ao mesmo tempo compreensível. Eu quis com esse livro fazer uma literatura de prosa poética sem perder a força da comunicação, da conversa. Ao tomar essa decisão da primeira pessoa, acabei escrevendo essa história da vida dele de um ângulo ótimo, ou seja, de dentro do coração dele. Ou do que eu acho que é o coração dele. Terminar de escrever esse primeiro romance foi como voltar de um país. Aliás, tenho um grande agradecimento a fazer dentro dessa “viagem”, a Taís do Espírito Santo que é uma digitadora especialíssima do meu pensamento. Para ela inúmeras vezes eu ditei as palavras deste livro, o que fez dela uma primeira leitora/espectadora da trama. Muitas vezes minha inspiração vinha por causa das expectativas dela: “Elisa, eu não tenho nada com isso não, mas eu queria saber, é hoje que o Fernando volta da África”? Essa pergunta fez com que eu respondesse escrevesse o próximo capítulo, ditando o próximo capítulo.

Adorei ter escrito, as pessoas que leem estão adorando. Mia Couto fez um lindo prefácio, poesia pura; Moraes Moreira ficou dizendo que não queria terminar o livro de jeito nenhum, que tinha medo que acabasse; o Carlos Nejar derramou elogios chiquérrimos e, além de tudo, por causa desse livro, onde fui o mais Fernando que eu pude, onde me outrei como tantas vezes faço no meu trabalho como atriz, acabou por me inspirar, por escrever o meu primeiro romance ficcional mesmo. Ele está na fila, estou me preparando para publicar o Vozes Guardadas que é uma coletânea de três livros juntos, da minha produção, principalmente minha produção poética, nesses últimos nove anos, vai sair pela Record e eu estou trabalhando arduamente nele. Depois vem o Parem de falar Mal da Rotina 2, também pela Record. E esse próximo romance que é filho das coisas que Fernando Pessoa me autorizou.