Por um transporte integrado à cidade

16 de setembro de 2015

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Captura de tela 2015-09-16 13.16.50Seminário reuniu especialistas para discutir o planejamento das cidades e buscar soluções para o transporte de alta capacidade

Para o diretor de redação do jornal Extra, Octavio Guedes, “mesmo que esteja em seu carro particular você interage com os ônibus, pedestres e demais meios”. Já o arquiteto e urbanista Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba, lembrou que na capital paranaense o BRT transporta 2,7 milhões de pessoas por dia, enquanto o metrô de Londres transporta 3 milhões. “Mas, detalhe: o custo do BRT é 10 vezes menor”. E segundo o presidente-executivo da Fetranspor, Lélis Teixeira, a questão da mobilidade não é apenas responsabilidade dos especialistas, mas um debate que deve envolver toda a sociedade. “Se pararmos para refletir, perdemos cerca de três anos de vida nos congestionamentos”.

Apontar novos caminhos para a mobilidade urbana, a partir de um panorama do que vem sendo feito nas principais capitais mundiais em termos de transporte de alta capacidade. Este foi o principal objetivo do evento realizado pelo jornal Extra, em parceria com a Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), em 18 de agosto, no auditório da Universidade Estácio de Sá, na Barra da Tijuca. Este foi o primeiro encontro de uma série de quatro eventos programados para os próximos meses. 

Com o título Extra Conect@ – Apontando novos caminhos da Mobilidade Urbana, o seminário reuniu empresários do setor, estudantes, especialistas e teve como palestrantes Clarisse Linke, diretora do Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (ITDP), Jaime Lerner, arquiteto e urbanista, ex-prefeito de Curitiba (PR), e Juan Carlos Muñoz, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile e especialista em sistemas de BRT.

O diretor de redação do jornal Extra, Octavio Guedes, abriu o evento estabelecendo uma comparação entre setores importantes, como saúde, educação e transporte. “Entre todos esses elementos, talvez o transporte seja o mais democrático, porque mesmo que você esteja em seu carro particular você interage com os ônibus, pedestres e demais meios. E talvez por isso seja a política pública que mais gera discussões.”

O presidente-executivo da Fetranspor, Lélis Teixeira, comentou que a questão da mobilidade não é apenas uma responsabilidade dos especialistas, mas um debate que deve envolver toda a sociedade. “Se pararmos para refletir, perdemos cerca de três anos de vida nos congestionamentos.” Teixeira também citou a importância da Lei da Mobilidade Urbana de modo a funcionar como uma diretriz no que tange ao planejamento das cidades, porém foram poucas que elaboraram os respectivos planos de mobilidade. “Apenas 5% das cidades brasileiras já têm o plano. Tivemos recursos em função de Copa do Mundo e Jogos Olímpicos. Será preciso dar continuidade a esses investimentos. Sobretudo, o sistema de transporte, qualquer que seja ele, precisa estar conectado a partir de um planejamento urbano.”

Primeira palestrante do evento, Clarisse Linke apresentou os conceitos de mobilidade urbana sustentável. Ela apresentou comparativos entre cidades como Los Angeles (EUA) e Barcelona (Espanha), respectivamente, um bom e um mau exemplo de planejamento urbano. “Los Angeles está fazendo um novo plano para retomar a cidade em outra escala que permita pedestres e ciclistas navegaram pela cidade, e que esta não seja mais dependente dos carros. Se eles podem fazer isso qualquer cidade não só pode como deve”, disse. Clarisse comentou que, no Brasil dos últimos anos, o que se vê não é falta de recursos, mas de capacidade técnica para o planejamento das cidades e de um arranjo institucional que permita realizar projetos, previamente negociados com a população. “Nossas cidades estão colapsadas e, por isso, precisamos inovar de fato.”

Para isso, ela elenca quatro conceitos básicos a serem trabalhados em termos de mobilidade urbana. O primeiro é que as cidades precisam ser compactadas. Ela cita o caso de Londres, que conseguiu reduzir a expansão urbana focando o desenvolvimento em áreas já ocupadas ou adjacentes, ou seja, locais onde já existia uma infraestrutura consolidada. Clarisse comenta que o ideal é fazer coexistir no mesmo espaço trabalho e moradia para evitar deslocamentos desnecessários. “Quando pensamos no Rio de Janeiro, a questão que vem é: como lidar com os efeitos colaterais do modelo atual da cidade, no qual o uso e a ocupação estão baseados na concentração de recursos, oportunidades e infraestrutura? Como oferecer acesso pleno à cidade para as pessoas que estão espalhadas pela Região Metropolitana?”, questiona. “Devemos enfatizar o modelo de ocupações mais compactas”, diz ela. Ou seja, a ideia é seguir a estratégia internacional para lidar com a questão do transporte e, principalmente, da mudança climática, e que se resume em três palavras: Avoid (evitar/reduzir a necessidade do deslocamento), Shift (mudar/manter os deslocamentos em modelos mais eficientes) e Improve (aprimorar a eficiência energética e a tecnologia veicular).

O segundo conceito básico da mobilidade urbana é que não basta ser compacto, mas tem que ser denso: é preciso otimizar a densidade e a capacidade do transporte. Segundo Clarisse, o ideal é aumentar os índices construtivos ao longo dos corredores de transporte de alta capacidade e limitar a expansão no restante da cidade. “Temos que dispor de áreas de intensificação e de regeneração, requalificar a cidade ao longo desses corredores. O exemplo clássico que temos é o de Curitiba. Também é necessário estimular o surgimento de serviços locais e redes de transporte de alta capacidade através da densidade residencial e de empregos”, alerta.

Um terceiro conceito da mobilidade urbana é o uso misto do solo, fugindo do que a diretora do ITDP define como a “armadilha da cidade modernista”, que promovia uma separação de usos. Um exemplo ideal é Ghangzou, na China, uma área que mistura serviços, comércio e área residencial. “É preciso estimular a diversidade através da variação de formas construídas e de classes sociais, e não cometermos equívocos como a Cidade de Deus, por exemplo. Um bom exemplo no Rio pode ser o Plano de Habitação de Interesse Social do Porto (PHIS-Porto).”

O quarto conceito é o desestímulo ao uso do automóvel. “As cidades colapsaram completamente. É necessário reduzir o número de estacionamentos para desestimular o uso de automóveis particulares nos horários de pico. Ajustar a cobrança de taxas pelo uso do carro segundo hora do dia e destino. Enfim, precisamos repensar nossa cidade do ponto de vista da legislação. E para isso o ideal é ter em mente todos os conceitos citados”, concluiu a palestrante, mencionando a integração intermodal como uma das soluções mais eficientes nesse esquema de coisas. 

A experiência de Curitiba

Segundo palestrante do evento, o arquiteto e urbanista Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba/PR, falou sobre o processo de implantação do BRT naquela cidade, a partir da década de 1970. Hoje, o sistema está presente em diversos continentes devido ao baixo custo e rapidez na implantação, além de oferecer flexibilidade e capacidade de transporte em sua operação. “Já são mais de 300 cidades no mundo incluindo Bogotá e Seul. Em Curitiba, o BRT transporta 2,7 milhões de pessoas por dia enquanto o metrô de Londres transporte 3 milhões. Mas, detalhe: o custo do BRT é 10 vezes menor”.

Segundo Lerner, em se tratando de pensar no futuro de uma cidade, as prioridades normais sempre foram a educação, saúde, atenção à criança e segurança, mas aos poucos nos damos conta de que as coisas estão mudando. “Hoje, outros três pontos são essenciais para pensar o futuro: a mobilidade, a sustentabilidade e a sociodiversidade. Isso, e uma visão integrada da cidade, é o que precisamos ter em conta. A cidade do futuro não será como as que vemos nos filmes, ela já está acontecendo. Se pensamos, uma cidade de 300 anos atrás não era fisicamente tão diferente das de hoje, o que está mudando cada vez mais é relação dessa cidade com os empregos, essa é a grande revolução. Os geradores de emprego estão diminuindo, e vão possibilitar uma melhor relação das pessoas com as cidades.” 

O arquiteto também mencionou como fundamental elementos como solidariedade, visão estratégica, vontade política e saber transformar um problema em solução. “Um exemplo que gosto de dar é o da tartaruga, porque ela é um perfeito modelo unificado de moradia, trabalho e mobilidade. O casco dela é um exemplo de tessitura urbana. Se separarmos a tartaruga em cada uma dessas partes que a compões, ela morre. É isso o que está acontecendo com as cidades quando separamos suas funções. Esse foi um equívoco muito grande que se deu no urbanismo.” 

Ao introduzir o tema da “metronização” dos ônibus – ou seja, o modelo de transporte que se vê na cidade que administrou em três mandatos –, Lerner vaticinou o fim da era do automóvel. “O carro é o cigarro do futuro”, referindo-se às restrições cada vez maiores impostas pela legislação urbana ao hábito do fumo. “Não é que eles deixarão de existir, a maneira de utilizá-lo é que irá mudar. O transporte do dia a dia terá que ser o público, o carro ficará restrito ao lazer e às viagens. Assim como Curitiba, que tem uma estrutura de moradia, trabalho e lazer unificada, o Rio de Janeiro também poderá ter, porque o mesmo processo de metronização vem sendo feito aqui”, previu. 

A vitória do BRT

A terceira e última palestra do evento realizado pelo jornal Extra e Fetranspor foi conduzida por Juan Carlos Muñoz. O especialista chileno defendeu o BRT como ferramenta preponderante para a mobilidade, porque o sistema agrega todos os atributos até hoje vinculados apenas ao metrô. No quesito qualidade, o professor da PUC do Chile e diretor do centro de excelência em BRT local, disse que para melhorar ainda mais o atendimento aos usuários dos sistemas é preciso adicionar recursos extras. “Para que se dê ainda mais qualidade ao BRT, é necessário que haja financiamento por meio de subsídios. Assim poderemos fomentar o uso do transporte de alta capacidade”.

Segundo ele, o BRT está tentando responder a um fenômeno chamado “círculo vicioso de transporte público”. “Na medida em que as cidades têm cada vez mais renda e população, as pessoas compram mais carros e com isso a demanda pelos ônibus cai. Temos mais trânsito, mais demora, o custo de operação do ônibus aumenta, o preço da passagem sobe, as pessoas usam mais os automóveis particulares e assim por diante. Isso acontece em qualquer lugar do mundo. Esse ciclo não afeta tanto o metrô e, por isso, a promessa que temos com o BRT. O modelo funciona como se oferecêssemos um serviço parecido com o metrô.”

Mas porque o metrô funciona e atrai as pessoas, enquanto isso não acontece com os ônibus? A resposta é que o trem subterrâneo é rápido, confortável, confiável e a espera entre as composições é curta. O que fazer para que os ônibus tenham esses atributos? A resposta está no BRT. Para enfatizar, Muñoz mencionou dados relevantes sobre a atuação desse sistema na Colômbia, Brasil, China e Turquia, citando Bogotá como um modelo a ser seguido por diversas cidades. “Curitiba mostrou ao mundo que os ônibus podem operar como metrô. Já Bogotá adaptou o conceito para dar mais capacidade de transporte, podendo carregar até 48 mil pessoas por hora-sentido”. O especialista comentou que, no caso no Rio de janeiro, com os corredores que já existem e os que serão inaugurados em breve, esse sistema poderá levar 2 milhões de passageiros por dia a partir de 2016.”

Mas ele deixa claro que o BRT não é uma solução em si mesma, e sim o elemento de uma rede multimodal. Então é preciso que ele seja também integrado à cidade e que permita, por exemplo, as pessoas estacionarem seu automóvel em algum ponto para continuar seu caminho pelo sistema de transporte público. “É preciso também prover um sistema de prioridades nas vias. Não adianta nada a pessoa ter um meio de transporte fantástico, se ela leva 40 minutos para chegar nesse sistema e 40 minutos para sair dele. O ônibus tem que ter mais prioridade do que carros, táxis e outros meios. Além disso, o BRT tem alguns desafios a vencer, É preciso ser rápido, confiável, não ter condutor, ser confortável, oferecer menor transbordo, estar integrado ao contexto urbano, ter baixas emissões, ser uma boa experiência de viagem e ter conexão multimodal”, concluiu Muñoz. 

Finalizando o evento, os palestrantes participaram de um debate, respondendo às perguntas feitas pelo público. Jaime Lerner aproveitou para ressaltar que a sociedade pode ajudar para que as coisas aconteçam manifestando-se e pressionando os governantes. O importante é que alguém tome a iniciativa de fazer propostas de melhoria, seja o poder público, o setor privado ou os membros da sociedade civil. Ao comentar os planos de mobilidade de longo prazo, o arquiteto também destacou a importância de colocar as mãos na massa o quanto antes. “Para mim, o mais importante é o processo de planejamento, mas não podemos nos condicionar a uma perspectiva futura. Por isso defendo intervenções rápidas, dentro do planejamento, é claro. Sou um obcecado pelo fazer e sei que isso é possível no nosso país. Muitas vezes o processo no Brasil é tão vicioso que nos afasta da possibilidade de intervir”, ensina.