Edição 13
Precatórios
5 de março de 2001
Membro do Conselho Editorial, Ministro Aposentado do STJ e Advogado
O Conselho da Justiça Federal, em recente decisao, eliminou alguns entraves ao pagamento dos precatorios judiciais. Tais estorvos encontravam-se na Resolução n° 211/ 99 do proprio Conselho. Tive a honra, como relator, de conduzir o Colegiado à revogação parcial daquele ato normativo. Examinava-se ofício da Ordem dos Advogados do Brasil pedindo a revogação dos artigos 6° e 7° da malsinada Resolução, que disciplina o procedimento dos precatorios. Nos artigos malsinados, a Resolução dispunha:
“Art. 6° – Nos precat6rios de valor superior a R$ 10.000 (dez mil reais), a Contadoria do tribunal devera fazer a analise dos elementos dos calculos objeto da deprecação.
Art. 7° – Os precatórios mencionados no artigo anterior deverao ser encaminhados ao Ministerio Publico Federal para parecer.”
A OAB inspirou-se em requerimento formulado pelo eminente advogado Mauro Lucio Alonso Carneiro. O ilustre causidico considerava odiosa a utilização de artifícios para entravar o pagamento da divida judicial.
Reproduzo, a seguir, o voto com que conduzi a decisao do Conselho. Eis o texto:
“Antes de penetrar a discussao, rogo Iicença para breve dissertação sobre a natureza juridica do precatório. Como se sabe, a execução de sentença condenatória ao pagamento de dinheiro consuma-se por meio de penhora e venda do bem sob constrição. O dinheiro apurado com a alienação e entregue ao exequente, para satisfação do credito.
Essa forma de execução enfrenta dificuldade quando o devedor e Estado, cujos bens sao impenhoraveis. O art. 730 do Código de Processo Civil foi concebido para contornar essa dificuldade. Seu dispositivo regula a execução de quantia certa contra o Estado. Como nao pode determinar penhora, o juiz, a teor do art. 730, deve intimar o Estado devedor, para eventual oposição de embargos, que observarao o procedimento ordinario.
Superados (ou nao opostos) os embargos o Código determina ao juiz que requisite o pagamento. A requisição se faz em precatório (termo que provem do latim precari: pedir), no qual o magistrado determina a reserva, no próximo orçamento, de verba necessaria ao pagamento da condenação. Precatório e, assim, um titulo mandamental, pós-executório. Ao emiti-Io, o juiz da execução determina o futuro pagamento de quantia certa, correspondente ao valor da condenação transitada em julgado. É, assim, mais forte que mera sentença condenatoria ou, mesmo, qualquer titulo executivo. So um juizo e competente para emiti-Io: aquele que julgou o processo de execuçao. A ninguem e licito alterar-Ihe o valor.
A teor do art. 730, a requisiçao e feita por intermedio do presidente do tribunal respectivo. Vale dizer: o presidente do tribunal funciona como simples intermediario do precatório. Sua competencia exaure-se com o simples registro do titulo e atribuição do respectivo numero de ordem. A jurisprudencia do Superior Tribunal de Justiça fixou algumas balizas a serem observadas no trato do precatório. Lembro algumas dessas:
a) as questoes incidentes (indice de atualizaçao da conta exequenda, extinçao da execuçao etc) sao de competencia do juizo da execuçao (Resp 15.032/Garcia);
b) O presidente do tribunal nao pode decidir quanta ao cumprimento do precatório, cabendo-Ihe, somente, o exame das formalidades extrinsecas (Resp 49.340/J.Jesus);
c) Em detectando erros, deve devolver ao juizo da execução (Resp 40.260/Milton) .
Isso ocorre porque o precatório e o resultado de, no minimo, dois processos (ou seja, dois contenciosos): o de conhecimento e o executório (caso nao tenha ocorrido o processo de liquidação), e, normalmente, aquele gerado pelos embargos à execução. Vale dizer, a emissao pressupoe duas sentenças e duas coisas julgadas. Se e assim, nao faz sentido submeter-se o precatório a novo procedimento em que a ordem do juiz e exposta à censura da Contadoria do tribunal e do Ministerio Publico. Tanto cuidado e manifestamente excessivo, quando se leva em conta a circunstancia de que o Estado teve duas ou tres oportunidades para defender suas pretensoes. Encarada sob o foco da autoridade, a submissao do mandado judicial a novo procedimento constitui recalcitrancia, infamante à coisa julgada.
Diga-se o mesmo em relação ao encaminhamento do precatório ao Ministerio Publico Federal, “para parecer” (Res. 211/99, art. 5°). Ora, ” o Ministerio Publico nao esta legitimado para substituir o Estado, nos processos em que este e patrocinado por seu quadro de advogados – entendimento do artigo 82 do CPC”. (Resp 120.479/Humberto).
Vale perguntar: a) se o MP carece de legitimidade para atuar nos processos de que resultou o precatório, como podera faze-Io após extintas essas relações processuais? b) se nao e possivel desprezar a coisa julgada, nem alterar-Ihe a substancia, que utilidade poderia ter o parecer do Ministerio Publico?
Nao vejo, pois, qualquer sentido nos preceitos dos artigos 6° e 7° da Resoluçao 211/99. Deles só pode resultar atraso no cumprimento da condenação – atraso lesivo: a) ao credor que, após percorrer doloroso itinerario, em que ultrapassou varios processos, e submetido a novo e ilegal procedimento, no qual seu titulo e colocado sob censura da contadoria e do Ministerio Publico. Como se nao fosse confiavel e nada valesse a firma do juiz que assinou o precatório; b) ao Poder Judiciario, cujos atos sao postos sob suspeita, reduzidos a ineficacia e submetidos a dupla censura.
Nao fossem esses prejuizos morais, o procedimento criado pela Resolução 211/99 gera, necessariamente, atrasos consequentes do tempo necessario aos pronunciamentos da contadoria e do Ministerio Publico. Observe-se ainda que, tanto a manifestação da Contadoria quanta a do Ministerio Publico devem ser apresentadas as partes, para que sobre elas se manifestem. Somados prazos e atrasos referentes a tantas providencias, constataremos que o pagamento do precatório sofre grande e lesiva protelação. Nao se pode esquecer o prazo fatal para inclusao do precatório no orçamento do ano próximo (Constituição Federal, art. 100, 1°).
A demora causada pela Resolução 211/99, em não raros casos, tem impedido que precatórios sejam apresentados antes do dia fatal (1° de julho) para a inclusão de creditos. Criou-se, assim, em ofensa ao principio constitucional do devido processo legal, novo contencioso, alem daqueles previstos no Código de Processo Civil. Por ultimo, observo que as exigencias da Resolução 211/99 padecem de profunda inconveniência.
Com efeito, vivemos todos em busca de mecanismos capazes de tornar mais rapida a distribuição da justiça. Nao faz sentido alongarmos, desnecessaria e ilegalmente, o tempo de pagamento das condenações judiciais. Nao faz sentido o Poder Judiciario – tao criticado pela lentidao – criar instrumento cujo unico efeito e tornar mais vagarosa a satisfação dos creditos resultantes de suas decisoes.
Como diz vetusta e respeitavel jurisprudencia, a presidencia do tribunal deve Iimitar-se a apuração da regularidade formal do precatório (assinatura, vinculação ao processo de que se originou etc).
Acredito que o Conselho da Justiça Federal, prestigiando essa linha de argumentação contribuiu para restaurar a confiança do Brasil em seu Poder Judiciário.